A legalização do testamento vital (TV), em julho de 2014, assinala «um salto democrático e civilizacional» no nosso país, considera Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética e coautor do TV. «Trata-se da possibilidade de cada um exercer os seus direitos humanos básicos e fundamentais. A sua principal vantagem é de liberdade e de cidadania», justifica.  Permite que indiquemos antecipadamente se queremos ou não que certas medidas terapêuticas sejam administradas em circunstâncias em que não estejamos capazes de expressar a nossa vontade, por exemplo, no contexto de doença terminal ou acidente.

Envolve vantagens para quem o assina, mas também para a família (que sofre com o estado em que o doente se encontra) e até para os profissionais de saúde, ajudando-os a decidir em momentos críticos. «Todos ganham», sintetiza. O documento «pode ser revogado a qualquer momento. Mas deve pensar bem, com maturidade e tempo, e elaborá-lo o mais racionalmente possível», com a ajuda do médico especialista em medicina geral e familiar, até porque «o risco ou a consequência natural é antecipar o momento da morte». Conheça os tópicos sobre os quais terá de decidir e o que a sua decisão poderá significar:

«Não ser submetido a reanimação cardiorrespiratória»

A reanimação cardiorrespiratória tem lugar, explica Rui Nunes, «quando o coração e os pulmões deixam de funcionar, transitoriamente, (por exemplo, em consequência de uma reação a um medicamento ou a um enfarte), o que não significa que a pessoa tenha morrido. É feita através de manobras médicas que, frequentemente, permitem oferecer muitos anos de vida útil. Mas há casos pontuais em que reanimar a função cardíaca e pulmonar é mais prejudicial do que benéfica», sublinha.

«Por exemplo, no caso de um doente terminal, fazê-lo só causa sofrimento, a ele e à família», elucida. O especialista sublinha a importância do aconselhamento médico no preenchimento do TV. «As pessoas poderão indicar que não querem ser reanimadas se tiverem uma doença fatal, mas ninguém no seu juízo pleno e informado vai indicar que não quer ser reanimado se tiver uma paragem cardiorrespiratória devido à reação a um medicamento», refere ainda.

Os potenciais riscos desta manobra devem ser conhecidos. «Geralmente, a pessoa fica bem», assegura Rui Nunes. Podem existir sequelas de uma reanimação cardiorrespiratória, sobretudo «devido à doença que está na sua origem e não devido à reanimação. A grande linha divisória não deve ser o tipo de sequelas que podem ocorrer mas se a reanimação permite que a vida continue com qualidade ou não. Se permite, deve ser feita», opina.

«Se não, está apenas a prolongar-se fisiologicamente a vida durante minutos ou horas e, aí, não deve ser feita. Em casos muito excecionais, a reanimação cardiorrespiratória pode resultar em morte cerebral, mas a maior parte dos casos vegetativos permanentes não são consequência da manobra», refere ainda o especialista.

«Não ser submetido a meios invasivos de suporte artificial de funções vitais»

Estes meios englobam todo o «material médico utilizado em doenças que possam pôr em risco as funções vitais, desde intubações até a alimentação e hidratação artificiais ou perfusões endovenosas. Graças a elas, há doentes em estado vegetativo durante anos. O tronco cerebral, que controla as funções vitais, como pulmões e coração, está funcionante, mas o cérebro (responsável pela cognição pela vida de relação) está destruído e não há nada que reverta a situação», realça.

«É um dos casos em que o TV tem mais aplicação. Está a prolongar-se a vida em estado vegetal mas nunca mais vai haver pessoa humana», acrescenta ainda Rui Nunes, que aponta os potenciais riscos destes meios. «Podem ser considerados meios desproporcionais de tratamento em doentes em estado vegetativo. Os órgãos estão a trabalhar e a ser alimentados exogenamente e, quando isso deixar de acontecer, a pessoa morre», alerta.

«A questão é se vamos deixar passar dez ou 15 anos ou se vamos tomar a decisão mais cedo. O principal problema são as consequências do prolongamento da vida em sofrimento e sem qualidade. Isto aplica-se também, por exemplo, quando uma pessoa tem cancro terminal, com grande dor e sofrimento», afirma ainda o especialista.

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«Não ser submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que visem retardar o processo natural de morte»

Estas medidas, que podem ser aplicadas durante vários anos, permitem a alimentação e hidratação através da administração de suplementos ou soro por via de um cateter ou sonda nasogástrica, prolongando a vida. A importância do TV, neste caso, é sublinhada pelo especialista. «A questão é se, em determinadas circunstâncias, nomeadamente no estado vegetativo permanente, esta medida não deve ser considerada desproporcionada», refere.

«Na maior parte dos casos, está a prolongar-se a vida sem que a pessoa tenha opinado e está a prolongar-se uma situação que não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Esta deve, pois, ser uma decisão pessoal e tomada quando se está em condições de o fazer», adverte Rui Nunes. «Considero que não existem vantagens na aplicação destas medidas que prolongam a vida mas com grande sofrimento, sobretudo para a família e, eventualmente, para a própria pessoa, porque não sabemos se, apesar de o córtex cerebral estar destruído, não há sofrimento», opina ainda.

«Participar em estudos de fase experimental, investigação científica ou ensaios clínicos»

Concordar com este item significa que «em situação de incapacidade, está disponível para participar em estudos que visam aumentar o conhecimento (investigação científica) e podem implicar manipular o corpo humano (estudos de fase experimental) ou testar novos medicamentos (ensaios clínicos). Se houver rigor científico, há vantagens em participar que não são de interesse particular, nomeadamente aumentar o conhecimento científico para próximos doentes nas mesmas circunstâncias», diz Rui Nunes.

«Mas há também casos em que a investigação tem benefício terapêutico para o próprio doente», acrescenta. «A pessoa é livre de não querer participar mas considero que, eticamente, não o deveria fazer. Se todos usufruímos da investigação que tem sido feita, então todos devemos contribuir», refere ainda, sem deixar de evidenciar os potenciais riscos destes estudos.

«Estas iniciativas são supervisionadas por comissões de ética para que o risco seja o menor possível. Um cientista só pode propor um projecto de investigação se daí derivar benefício para o doente ou para a sociedade e se a relação risco/benefício for sempre muito a favor do benefício», opina o especialista.

«Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental»

Aderir a um tratamento em fase experimental significa submeter-se à toma de um medicamento ou a um tratamento cirúrgico ainda sob investigação científica. A probabilidade de êxito é superior à de um ensaio clínico, fase laboratorial anterior a este tipo de tratamento. «O benefício potencial é o do doente ganhar com aquele tratamento experimental, nomeadamente em caso de doença terminal para a qual não há alternativa», esclarece Rui Nunes. Tal como outros, também estes tratamentos encerram potenciais riscos.

«Podem não surtir o efeito desejado, envolvendo riscos para a saúde e antecipar a morte, por exemplo quando se trata de uma técnica cirúrgica. Contudo, nenhum médico propõe um tratamento se não tiver uma razoável presunção que será benéfico», sublinha o especialista. «Interromper tratamentos que se encontrem em fase experimental ou a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos, para os quais tenha dado prévio consentimento», diz. É uma salvaguarda para casos em que ocorre «o agravamento do estado de saúde e a situação de incapacidade de um doente que aceitou participar neste tipo de tratamentos ou programas.

Por exemplo, uma pessoa com doença de Alzheimer pode aceitar participar num ensaio clínico de um medicamento mas decidir que não quer continuar a participar no estudo caso a sua situação se agrave e fique incapaz. Como, nessas circunstâncias, não terá possibilidade de o dizer, fá-lo desta forma, através do testamento vital», esclarece Rui Nunes. A incapacidade do doente é diagnosticada, por exemplo, através da análise da história clínica, da capacidade do discurso, da consciência ou de ressonância magnética.

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«Não autorizar administração de sangue ou derivados»

A administração de sangue ou derivados tem lugar, sobretudo, quando há hemorragia, por exemplo, em contexto de cirurgia ou em situações de urgência e não fazê-lo pode significar a morte. As principais razões que motivam a não autorização da sua realização são religiosas. Os riscos da administração de sangue continuam a gerar dúvidas e inseguranças. «Faz-se a triagem e o estudo de sangue, não existindo casos recentes de contaminação de doenças. Em Portugal, é seguro fazer-se uma transfusão de sangue», desmistifica o especialista.

«Receber medidas paliativas, hidratação oral mínima ou subcutânea»

Estas medidas relacionam-se com «cuidados integrais que se prestam às pessoas quando já não há a possibilidade de cura, aliviando o sofrimento. São cuidados físicos, psicológicos, espirituais e de acompanhamento em que não se vai curar a doença (a morte vai acontecer num prazo relativamente precoce) mas em que se pode dar qualidade de vida, espiritual e fisicamente», explica Rui Nunes. Se a vantagem em receber estas medidas está relacionada com a melhoria do «conforto e prolongamento da vida, a desvantagem é intrínseca à própria criação do TV, ou seja, está em causa prolongar artificialmente a vida», refere.

4 outros cuidados de saúde que também pode definir no Testamento Vital:

1. «Serem administrados os fármacos necessários para controlar, com efetividade, dores e outros sintomas que possam causar-me padecimento, angústia ou mal-estar».

2. «Receber assistência religiosa quando se decida interromper meios artificiais de vida».

3. «Ter junto de mim, por tempo adequado e quando se decida interromper meios artificiais de vida, a pessoa que designo».

4. «Recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos».

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Factos legais que deve saber:

- Exceções

«O médico deve respeitar o conteúdo do TV, mas poderá não o fazer quando se comprovar que o paciente não desejaria manter o conteúdo do mesmo, quando for evidente que se encontra desatualizado face ao progresso dos meios terapêuticos e quando o conteúdo não corresponder às circunstâncias que o paciente previu no momento em que o elaborou», refere Rui Nunes.

- Contestação

Progenitores, cônjuge e filhos do outorgante do TV podem impugná-lo.

- Urgências

«Se o acesso ao TV implicar uma demora que agrave os riscos para a saúde ou vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de o considerar», adverte o especialista.

- Objeção de consciência

«O médico pode exercitar este direito quando for solicitado para cumprir o disposto no TV, recusando a prática de ato médico que entre em conflito com a sua consciência filosófica, ética, ou religiosa», afirma ainda.

- Procurador de cuidados de saúde

Nomeado pelo doente, pode ser chamado a decidir em seu nome ou garantir que o TV é cumprido. «Pode, porém, renunciar a esses poderes representativos, devendo informar, por escrito, o outorgante do TV», conclui.

Texto: Catarina Caldeira Baguinho com revisão científica de Helena Pereira de Melo (professora de Direito da Saúde e da Bioética, subdiretora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, co-autora do Testamento Vital) e Rui Nunes (professor catedrático e diretor do Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, administrador da Fundação Ciência e Desenvolvimento e coautor do Testamento Vital)