Captei-lhes a conversa enquanto trabalhava na sala ao lado. Duas crianças, do alto dos seus 6 anos, em pura catarse mental despoletada pela pintura de desenhos: “Que tipo de médico é o teu pai?” perguntou ela. “Acho que é dos que põe as pessoas a dormir” solta ele. “A sério? E depois quem é que as acorda?”... (e o barulho da televisão impede-me de perceber o resto da conversa). A resposta pueril do meu filho de 6 anos à sua amiguinha tem tanto de genuíno, como de revelador da imagem que a população em geral (e aquela, em particular que é submetida a cirurgia - cerca de 600.000 portugueses por ano) tem da função dos médicos anestesiologistas (vulgarmente conhecidos por anestesistas): colocar doentes “a dormir” para serem operados.
Esta impressão simplista associa-se a uma certa aura de invisibilidade, potenciada pelo uso de máscaras faciais e toucas: quase todos os doentes recordam o nome ou a face do seu cirurgião, mas poucos se lembrarão do nome ou face do seu anestesista. Perdem-se também conta ao número de vezes que ouvimos os doentes dizer-nos, mal nos apresentamos: “eu não tenho medo de ser operado, tenho é de ser anestesiado”. O “medo de ser anestesiado” significa frequentemente o “medo de sentir dor” ou o “medo de acordar a meio da cirurgia” ou, no extremo oposto, o “medo de não acordar mais”.
Desde a antiguidade que se realizam cirurgias invasivas e dolorosas, de amputações de membros a drenagens cerebrais, mas cujo êxito estava diretamente relacionado quer com a tolerância do doente à dor, quer com a rapidez do cirurgião
Todos estes medos e anseios compreendem-se perfeitamente porque, aos olhos do cidadão comum, o ato de anestesiar alguém “adormecendo-lhe” os sentidos, tirando-lhe o controlo da sua vontade e consciência, controlando-lhe as funções vitais por máquinas especializadas que apitam e exibem gráficos indecifráveis com linhas coloridas, permitindo-lhe que tolere durante horas um procedimento invasivo e doloroso e depois recupere com o mínimo de desconforto, ainda por cima por alguém que se apresenta com a face semi-oculta com uma máscara, assume laivos de mistério, ciência oculta, quase feitiçaria aborígene. Contudo, esta ciência (cada vez menos) oculta é um dos ramos mais recentes e que mais rapidamente evoluiu na Medicina moderna.
Desde a antiguidade que se realizam cirurgias invasivas e dolorosas, de amputações de membros a drenagens cerebrais, mas cujo “êxito” estava diretamente relacionado quer com a tolerância do doente à dor, quer com a rapidez do cirurgião. Existem relatos históricos de experiências horríveis sofridas pelos doentes que chegavam a preferir a própria morte, à dor infligida pela cirurgia. Para atenuar este sofrimento usavam-se uma panóplia de técnicas, todas de eficácia duvidosa e muito variável, que iam da embriaguez com álcool à perda de consciência por exsanguinação, da aplicação de plantas (papoila, folhas de coca mastigadas ou raízes de mandrágora) à imobilização forçada (era normal haver equipas de 4 ou 5 ajudantes só para manietar o doente) ou ao simples pedaço de madeira para morder. Era o tempo da “aguentocaína” - aguentar a dor até passar.
Porém, a 16 de outubro de 1846 algo aconteceu que marcou a história da Medicina. Nessa manhã de sexta-feira, há 172 anos, no Massachusetts General Hospital, em Boston, EUA, pela primeira vez se demonstrou eficazmente o uso do éter (produto sintetizado cerca de 300 anos antes) para anestesiar um doente para remoção de um tumor do pescoço, sem que este, após recuperar a consciência, referisse dor ou sofrimento. Este acontecimento, há muito aguardado pela comunidade médica, foi tão marcante e revolucionário que, em menos de um mês e em pleno séc. XIX (sem redes sociais, “lives” de Facebook, Whatsapp ou comunicações satélite) a proeza atravessou o Atlântico e foi repetida no Reino Unido.
Desde então a descoberta da Anestesia moderna, considerada uma das dez mais importantes em toda a história da Medicina, representou um salto quântico na humanização dos cuidados de saúde e possibilitou a evolução das próprias especialidades cirúrgicas pela realização de cirurgias cada vez mais complexas e demoradas e consequente melhoria das condições de ensino e transmissão de conhecimento. Por tal, o dia 16 de Outubro é anualmente comemorado como o Dia Mundial da Anestesiologia.
Da simples função de “adormecer” doentes, evoluiu-se para um conceito muito mais abrangente do médico especializado em zelar pela segurança clínica e conforto do doente submetido a qualquer procedimento invasivo ou doloroso, mediante a avaliação e optimização do estado de saúde antes da cirurgia, da adequada monitorização e equilíbrio das funções vitais durante a cirurgia e adequada recuperação do estado clínico após a cirurgia. Contudo, as funções atuais de um anestesiologista não se esgotam no trabalho no Bloco Operatório. A sua atividade estende-se aos Cuidados Intensivos, ao tratamento da Dor, à presença em situações de emergência médica ou sempre que haja necessidade de mitigar o sofrimento e o desconforto de um doente, resultante de procedimentos invasivos (como por exemplo, em colonoscopias ou broncoscopias) ou nas situações “naturais-mas-muito-dolorosas” de dores de trabalho de parto - e os leitores não imaginam quão gratificante é ver o rosto aliviado de agradecimento de uma grávida a quem debelamos as excruciantes dores de parto, por via de uma epidural.
Sempre focada na melhoria contínua dos seus processos pela análise de resultados obtidos, na incorporação da inovação tecnológica nas suas técnicas, nos fármacos e nos equipamentos utilizados e na humanização dos cuidados centrados na segurança e no conforto do doente, a Anestesiologia tornou-se numa das atividades humanas mais seguras da atualidade, com o nível de risco de eventos adversos comparável ao de outras “high reliability organizations” como a aviação civil ou a indústria nuclear.
Contudo, o risco associado a qualquer ato anestésico depende quer do tipo de cirurgia, quer das doenças associadas de cada doente. Por tal, é muito importante que todo o doente proposto para uma cirurgia programada seja observado previamente numa consulta de Anestesiologia, para que possa ser avaliado e otimizado na sua condição clínica, mas acima de tudo, para que possa falar com o seu médico anestesiologista, esclarecendo todas as dúvidas, todos os “medos”, discutindo os riscos das diferentes opções técnicas, para depois se definir um plano anestésico adequado e personalizado. Tudo para que a segurança e o conforto façam parte da experiência irrepreensível de qualquer doente cirúrgico e para que cada vez mais pessoas (sejam crianças de 6 anos ou graúdos com muitas décadas) possam conhecer e confiar no seu médico anestesiologista como o “farol” que as cuidará e guardará na sua “travessia” cirúrgica.
Um artigo do médico Vítor Pinho Oliveira, Anestesiologista no Centro Hospitalar Tondela-Viseu e no Hospital CUF Viseu.
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