As questões em torno da sexualidade representam um tema incontornável na história da humanidade, quer devido à sua constante negação ou repressão, quer à sua excessiva exposição.

Já na esfera privada, é esperado que qualquer um de nós, ao longo do percurso de vida, se tenha deparado com desafios, incertezas e experiências em torno da sua sexualidade, inevitavelmente devido aos aspectos vivenciais do seu próprio corpo e do Outro. Os receios, as dúvidas, as crenças enviesadas e os mitos acerca da sexualidade continuam, hoje e sempre, bem presentes na mente humana.

Se abordar a sexualidade no ser humano e no desenvolvimento normativo já comporta alguma dificuldade, compreender como é vivida e expressa em pessoas com um diagnóstico do Espetro do Autismo é exponencialmente mais complexo. Os estereótipos acerca das pessoas com uma Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) tendem a representar estas pessoas como alguém que tem pouco ou nenhum interesse em relações sociais e românticas, e, por conseguinte, são percecionadas muitas vezes como assexuais. Porém, a evidência empírica e científica contradiz estas crenças demonstrando que as questões em torno da sexualidade também importam às pessoas do espetro. Na verdade, sabe-se que estas pessoas relatam um interesse global em comportamentos sexuais quer solitários quer diádicos semelhantes a outras pessoas sem esta perturbação.

Assim, a dúvida impõe-se. Quais as diferenças entre as pessoas do espetro comparadas com as outras no âmbito das vivências e dos comportamentos sexuais? Desde logo, importa clarificar que nem todas as pessoas pertencentes ao espetro do autismo possuem as mesmas características, interesses, preferências, pelo que se torna difícil traçar perfis específicos. Por sua vez, as próprias capacidades e funcionamento cognitivos variam muitíssimo entre pessoas que pertencem a este quadro. De acordo com a literatura, pensa-se que jovens com mais dificuldades ao nível do funcionamento cognitivo têm mais problemas relacionados com a comunicação e com aptidões sociais, e apresentam mais comportamentos sexuais não-normativos (e.g., parafilias).

Por sua vez, vários estudos preliminares evidenciam que as pessoas com este diagnóstico, especialmente as mulheres, demonstram uma maior diversidade em termos de orientação sexual. Já os homens com PEA tendem a ter um menor número de relações sexuais ou românticas. As experiências sexuais prévias são frequentemente solitárias (e.g., masturbação) e nalguns casos existem outros problemas sexuais associados, tais como a hipersexualidade, a assexualidade ou a disforia de género, percebidos como tendo impacto negativo na vida de muitos destes jovens.
Sabe-se também que, apesar das pessoas com uma PEA demonstrarem interesse em relações sexuais e íntimas, recebem menos educação sexual e, quando recebem, ela tende a não ser ajustada às suas necessidades e características.

Na prática, estes jovens representam um grupo com alguma vulnerabilidade nesta área, devido a inúmeros desafios com que se deparam diariamente. Por exemplo, dificuldade em encontrar um parceiro/a devido às limitações que têm na interação social, dificuldades na tomada de decisões e na comunicação pragmática, leitura enviesada das pistas sociais, maior nível de ingenuidade e interpretação literal, ou barreiras e constrangimentos associados às hipersensibilidades sensoriais.

Deste modo, apesar de existirem alguns dados fornecidos pela literatura científica que nos permitem compreender melhor a vivência das relações amorosas e da sexualidade em pessoas com PEA, esta continua a ser uma área pouco explorada em termos científicos e clínicos. Mais ainda, é uma área que traz consigo problemas e dúvidas na prática e vida diária de jovens com PEA e suas famílias. Por exemplo, muitos adolescentes e jovens adultos com PEA tendem a focar-se em temas sexuais do seu interesse e repetem-nos até à exaustão e/ou abordam-nos de forma inadequada (e.g., com pessoas ou em contextos não apropriados).

Nestes casos, é importante dar respostas ajustadas, educar para a sexualidade (e.g., fomentando o uso de terminologia correta) e ouvir as questões e comentários que têm a dizer, tendo o cuidado de redirecionar a conversa para tópicos neutros sempre que necessário. Pode igualmente ser benéfico clarificar posteriormente que se trata de um assunto considerado “privado”, pelo que não deve ser abordado com todas as pessoas e em todos os lugares.

Alguns jovens também têm comportamentos sexuais em contextos e locais inapropriados (e.g., masturbação na escola ou com a porta aberta), possivelmente devido a uma combinação de fatores como hipersensibilidades sensoriais, impulsividade e dificuldade em antecipar o efeito que o seu comportamento pode ter nos outros. Por esse momento, é essencial evitar ralhar, castigar e muito menos humilhar. É igualmente importante não reagir de forma agressiva, tentar dar a menor atenção possível ao comportamento no momento e conversar mais tarde acerca da importância da sexualidade para o nosso crescimento, mas também da necessidade de ajustá-la a contextos, locais e momentos apropriados (e.g., casa-de-banho, porta fechada, comportamentos de higiene). Se estes comportamentos se tornarem difíceis de controlar, é fundamental encontrar outras estratégias (e.g., reduzir a tensão física apertando uma bola de borracha).

Um desafio para alguns jovens com PEA é a dificuldade em compreender as fronteiras entre o seu espaço e o dos outros. Por vezes surgem problemas de inadequação na forma como comunicam (e.g., enviar SMS de teor sexual a alguém sem que haja proximidade suficiente ou fazer comentários considerados ofensivos pelos outros) ou como se comportam sexualmente (e.g., tocar na perna ou no traseiro de outra pessoa sem que haja sinais de consentimento e aproximação prévios). Por esse motivo, é importante que sejam treinadas, explicadas e partilhadas noções basilares: a aceitação, o consentimento, a permissão, a aproximação sucessiva, a leitura de pistas sociais de modo a clarificar que determinados comportamentos são considerados inaceitáveis quando não autorizados ou contextualizados. Se alguém tiver sido ofendido, é relevante incentivar o jovem a pedir desculpa e esclarecer a sua posição. Mas para que tudo isto seja possível, o tema da sexualidade deve ser abordado de forma natural e recorrente, havendo espaço para ouvir o que o jovem sente e pensa.

Em suma, tal como nos jovens sem PEA, estes apresentam um vasto leque de vivências e comportamentos que variam entre o normativo e o atípico. Porém importa salientar que existem particularidades importantes que importa compreender e temos o dever de ajustar quer ao nível da educação sexual quer da própria intervenção com estes jovens (e.g., ajustar estratégias à percentagem elevada de raparigas com PEA que apresentam maior diversidade ao nível da orientação sexual ou à maior dificuldade em ter uma relação amorosa).

Tal como qualquer pessoa, os jovens com PEA querem sentir-se aceites, desejados e amados, só precisam de compreender um pouco melhor a forma “como” tudo acontece. O amor, a intimidade e a sexualidade para eles representa todo um mundo novo, confuso e complexo ao qual desejam pertencer. Nisto, tal como em tantas coisas, são exatamente iguais a todos nós.

Ana Beato – psicóloga clinica e terapeuta sexual

Pedro Rodrigues - psicólogo clínico