Enriquecer a alimentação simplificando-a. As duas premissas podem, aparentemente, viver em polos de compatibilidade. Contudo, o que Margarida Vieira, nutricionista, nos apresenta no seu livro “4 estações, 1000 combinações” (editora Nascente) é a fórmula que concilia uma alimentação mais rica e, em simultâneo, limpa do excesso de informação “vazia” que circula atualmente.  Margarida Vieira dá-nos essa simplificação nos termos que acompanham a Alimentação Saudável e que cumpre três requisitos: “Variada, equilibrada e completa”.

É numa viagem de conhecimento, selecionando 50 alimentos e enquadrando-os nas respetivas estações do ano, que a Mestre em Nutrição Clínica e Doutorada em Estudos da Criança, nos convida a enriquecermos a nossa alimentação, reencontrando a sazonalidade (um morango saberá sempre melhor em agosto), derrubando mitos (porquê oito copos de água por dia?), afastando modas (não há superalimentos) e recordando-nos que é na complementaridade dos alimentos que reside a mais-valia. E isto partindo de uma prova elementar: Cada alimento é único nas suas características o que nos traz uma riqueza infinita à mesa.

Conversamos com Margarida Vieira e percebemos que no livro que entrega aos escaparates estão “muitos anos de trabalho”. Obra que nasce “da necessidade que tinha de investigar e de educar. Precisamos de cidadãos esclarecidos. Com isto temos uma sociedade mais responsável”, substancia a também criadora do site "Stop Cancer Portugal".

“A alimentação saudável tem de cumprir três requisitos: ser variada, equilibrada e completa” - Nutricionista Margarida Vieira
créditos: Monika Grabkowska

Uma das mensagens que nos transmite no seu livro “4 Estações, 1000 Combinações” é a de que não há superalimentos. Quer pormenorizar?

Não há superalimentos mas sim combinações poderosas de alimentos. É nessa sinergia nutricional entre diferentes alimentos que encontramos a sua capacidade funcional. Quando conhecemos os alimentos e entendemos as suas qualidades nutricionais, compreendemos que todos eles são únicos nas suas características. Nenhum alimento em si e isoladamente nos fornece todos os nutrientes essenciais.

Um dos aspetos a reter é que na alimentação temos combinações poderosas. Exemplo disto é a Dieta Mediterrânica e a sua capacidade preventiva face ao cancro, doenças coronárias e cardiovasculares.

Existe a tendência para considerar que a alimentação é um pouco como a medicação. As pessoas querem encontrar nos alimentos um medicamento e, como sabemos, a realidade não é esta.

O que, no fundo, temos de reter é que os conceitos base da nutrição são imutáveis. Ou seja, aquilo que podemos definir como alimentação saudável não muda com o passar dos anos. Contudo, a investigação aprofunda determinados aspetos.

Alimentação Saudável tem de cumprir três requisitos: Ser variada, equilibrada e completa. Se conseguirmos isso no prato, numa refeição, num lanche, por exemplo, temos uma alimentação saudável.

Pegando nas suas palavras, o que podemos entender por alimentação saudável?

O meu maior mentor e de quem fui aluna ainda nos anos de 1980, o Professor Emílio Fernando Peres, foi o pioneiro do curso de Ciências da Nutrição no Porto. Um homem com grande capacidade de comunicar, passava-nos conceitos basilares de forma muito simples. Um deles, o da Alimentação Saudável, tem de cumprir três requisitos: Ser variada, equilibrada e completa. Se conseguirmos isso no prato, numa refeição, num lanche, por exemplo, temos uma alimentação saudável. Mais tarde vim a dar a mesma disciplina do Professor Emílio Peres, Alimentação e Nutrição Humana. Na primeira aula passava estes princípios do meu mentor.

“A Alimentação Saudável tem de cumprir três requisitos: Ser variada, equilibrada e completa”. Nutricionista Margarida Vieira
Margarida Vieira, autora do livro "4 Estações, 1000 Combinações", doutorada em Estudos da Criança, na especialidade de Saúde Infantil, pela Universidade do Minho.

Não obstante fazer o elogio da complementaridade entre os alimentos, também lhes marca bem a diferença. Não há alimentos iguais, certo?

É verdade, agora repare na riqueza que isto permite. Imagine que não gosta de laranja e adora quivi, procurando-o para ter um aporte de Vitamina C. As duas frutas são semelhantes e encontram-se no mesmo grupo na Roda dos Alimentos. Mas se me cingir apenas a uma delas, estou a cortar na diversidade que referi porque entre elas há gradientes muito diferentes de outros nutrientes como vitaminas, minerais, fibras e fitoquímicos. Ou seja, se por um lado não há superalimentos, por outro cada um dos alimentos tem o seu lugar na dieta humana. É esse o objetivo da alimentação saudável, a mistura de toda esta diferença.

Ainda neste contexto, acabamos por ver promovidos alimentos de outras latitudes. A distância carrega-os de uma carga quase mística. Será que precisamos de ir tão longe para encontrarmos o equilíbrio que foca?

Não me parece. Sou apologista dos produtos locais. Hoje em dia temos uma segurança alimentar muito boa, mesmo no que respeita à produção agrícola, temos uma legislação muito apertada. Por vezes, se a ´máquina` não funciona é porque não há fiscalização apertada. Por exemplo, em relação a produtos da América Latina, será que sabemos em que condições alguns deles são produzidos? Hoje fala-se muito da chia. Contudo, entre nós, temos ingredientes com as mesmas qualidades nutricionais da chia.

a alimentação saudável
créditos: Alin Luna

Ainda no campo do saudável. Podemos colocar os alimentos numa escala de muito ou pouco saudável?

Saudável não vem com a classificação de muito ou de pouco. A Comunicação Social passa muito essa mensagem. “Aquilo é muito saudável”, “não faças isso porque é pouco saudável”. Um erro. Ou é saudável, ou não é.

O meu objetivo com o livro que agora publiquei não é mostrar o que está errado, é dar uma oportunidade às pessoas que querem ler e aprender.

No que respeita à alimentação, foca no seu livro uma “espécie de aprendizagem coletiva” e arrisca mesmo a chamar de “patetas” algumas formas de promoção nutricional. Estamos perante riscos?

Algumas são patetas, outras podem passar para outra categoria. Não quis ser muito agressiva, mas, convenhamos, há mensagens que são perigosas. O meu objetivo com o livro que agora publiquei não é mostrar o que está errado, é dar uma oportunidade às pessoas que querem ler e aprender. As pessoas não aprendem pelo “não”, antes mostrando como se faz. O meu doutoramento foi na área dos Estudos da Criança. Devemos pensar como as vamos educar e fazê-lo é mostrar-lhes um caminho. É um grupo vulnerável, mas interessante, porque são eles que têm o futuro deste país.

Exatamente e dois grupos particularmente sensíveis quando tocamos em questões alimentares são as crianças e os jovens. As nossas crianças estão com excesso de peso. É sinal de que temos descurado a alimentação dos mais novos?

Há famílias que têm uma dinâmica muito saudável. Não sinto isso como uma questão social ou económica. Não posso generalizar. Tenho de falar pela minha experiência e, na minha prática clínica e escolar, encontro muitos pais preocupados, a quererem mudar, um fator que não está relacionado com a classe social. A minha tese de doutoramento centrou-se no desenvolvimento de um programa educativo para a prevenção da obesidade. E, digo-lhe, os resultados foram extraordinários. Não pensaria alcançar tanto. Não pensava, à partida, que estando 45 minutos com pré-adolescentes, conseguiria mudar alguma coisa, mas isso aconteceu, nos comportamentos e na antropometria. Todas aquelas crianças e famílias estavam focadas na mudança. O que é necessário é que isso continue.

Aliás, gostaria de dar continuidade a este trabalho, mas é muito difícil em Portugal. As portas não se abrem. As pessoas falam muito de percentagens, de obesidade, de problemas, mas para lá das palavras, estas questões têm de ser resolvidas. Por exemplo, com programas operacionalizados em continuo. No meu caso tive um programa de um ano. Abri o caminho. Agora, é preciso continuar.

Fala no consumo obstinado de água. E neste contexto refere “a água que se come”. Gostaria que comentasse.

Se praticarmos uma alimentação saudável, mais de metade da água que temos de ingerir ao longo do dia já se encontra nas frutas, saladas, legumes e sopas. Não estou a afirmar que não devemos beber água, antes que deve haver complementaridade. Quando me perguntam se é necessário beber um litro e meio de água por dia, ou oito copos, como se assumiu ser a quantidade certa, a minha resposta é: ´Primeiro tem de comer`. Claro que, se a pessoa tiver uma atividade exercida ao sol, num escritório com ar condicionado, ou vai ao ginásio, terá de reforçar o consumo de água. Agora, não devemos estar obcecados na contagem das garrafas de água.

Se praticarmos uma alimentação saudável, mais de metade da água que temos de ingerir ao longo do dia já se encontra nas frutas, saladas, legumes e sopas.

Considera que estamos obcecados em contar calorias?

No meu site, “Stop Cancer Portugal” tenho um artigo “Calorias, pequenas peças de um puzzle gigante”. Porque lhes chamo de pequenas peças? Porque nos focamos nelas, quando há tantos aspetos em que nos devemos focar. Há que começar a conhecer os alimentos de um ponto de vista diferente, não apenas qual a quantidade de energia que eles transportam. Cada vez precisamos de menos energia, somos mais sedentários.

Há grupos de pessoas que vivem numa obsessão com a energia. Quando optamos por fazer uma alimentação saudável como atrás referi, com vegetais e frutas, não temos de nos preocupar com as questões energéticas. Dão-nos a energia de que precisamos sem exageros.

“A Alimentação Saudável tem de cumprir três requisitos: Ser variada, equilibrada e completa” - Nutricionista Margarida Vieira

Uma questão que acaba por se ligar a outro “monstro sagrado” dos nossos tempos a palavra Dieta…

Genericamente, as pessoas associam o termo Dieta a restrição. Não é verdade. Só aplico dietas restritivas no que respeita a determinados nutrientes e a pessoas com patologias específicas. Quando falamos de prevenção, penso que devemos falar de alimentação saudável, ou melhor de estilo de vida saudável.

Quase todos conhecemos a Roda dos Alimentos. Contudo, tendemos a esquecê-la no dia a dia, embora as regras para a seguirmos sejam simples, certo?

A Roda dos Alimentos é o corolário do que tenho afirmado. Precisamos de refeições completas e, para isso, o prato tem de apresentar as recomendações diárias dos diferentes grupos alimentares e do peso proporcional para cumprirmos a alimentação saudável que referi. Neste contexto, há que consumir a porção de alimentos e origem vegetal adequada, ou seja, que preencham 50% do prato. Aqui incluímos as leguminosas, os hortícolas, os tubérculos e derivados, as frutas, os cereais.

Atualmente, exageramos na proteína animal e nos hidratos de carbono. No prato da maioria das crianças e dos adolescentes raramente existe cor. Aliás, vão ao fast food e não vemos cor no prato, quando muito a cor será a do logótipo da empresa.  E, assumamos, ninguém vai a esses estabelecimentos por causa da salada. Se não houver uma oferta de vegetais e fruta adequada, rapidamente as crianças esquecem a alimentação saudável. Não vamos buscar a diversidade alimentar às proteínas ou aos hidratos de carbono, mas sim aos vegetais e à fruta. Repare a variedade de vegetais e o manancial que aqui temos.

Atualmente, exageramos na proteína animal e nos hidratos de carbono. No prato da maioria das crianças e dos adolescentes raramente existe cor

roda dos alimentos
Roda dos Alimentos. créditos: @Direcção-Geral da Saúde

Estruturou o seu livro seguindo a lógica das quatro estações no calendário, mas também alimentares. Parece que nos esquecemos delas, certo?

Respeitando os alimentos na sua estação do ano, vamos ao encontro da tal diversidade incrível que os ciclos da natureza nos dão e com um teor nutricional muito superior. Como bem sabemos, consumir morangos comprados em outubro não nos saberá como o consumo em agosto. O mesmo é válido para um pêssego vendido em dezembro e que viajou meio mundo para cá chegar. Agora, pense num pêssego das Beiras adquirido na sua época, em julho. Julgo que mesmo para as crianças e adultos acaba por ser uma má experiência. Vão achar que aquela fruta não é saborosa e, provavelmente, não repetem o consumo.

No fundo, nem sequer damos tempo aos alimentos para darem o seu melhor. Estamos a acelerar muito e, também, preocupados em acelerar a forma como confecionamos as refeições. Falta partilha. Todas as culturas se sentam à mesa.

Porque escolheu, em concreto, os 50 alimentos que figuram no seu livro?

Quando entendemos que podemos fazer mil combinações, cada pessoa pode personalizar como melhor lhe parecer. Se começarmos a consumir os vegetais e a fruta ao longo do ano, aproveitando os seus ciclos, veja-se a quantidade de combinações que alcançamos. Agora, se comer laranja 365 dias por ano, que combinação tenho? A vitamina C, alguma fibra, minerais. Mas, ficamos só por aqui? O objetivo do meu livro é que cada leitor encontre as suas combinações. Estão neste livro muitos anos de trabalho e nasceu de uma necessidade que tinha de investigação e de educação.


Entrevista inicialmente cedida em março de 2020.