
Comecemos pelo essencial: o que é o lipedema e de que forma se distingue de outras condições como a obesidade ou a retenção de líquidos, com as quais é muitas vezes confundido?
O lipedema é uma doença crónica que afeta principalmente mulheres e que se traduz numa acumulação anormal de gordura subcutânea, geralmente nas pernas e nas ancas, e que não desaparece com dieta ou exercício físico. É também conhecida como a “doença das pernas gordas” porque, muitas vezes, estas mulheres têm a parte superior do corpo mais magra e a parte inferior desproporcionalmente aumentada, o que pode ser confundido com excesso de peso localizado.
A confusão com obesidade, linfedema ou retenção de líquidos acontece porque, à primeira vista, todas estas condições podem parecer muito semelhantes. Todas envolvem um aumento de volume em certas partes do corpo, especialmente nas pernas e, por vezes, nos braços. No entanto, são problemas diferentes e com causas distintas.
O linfedema está relacionado com problemas no sistema linfático. A linfa não consegue drenar corretamente e acumula-se nos tecidos, provocando inchaço — normalmente mais visível no dorso do pé ou nas mãos, o que não acontece no lipedema.
Já a obesidade é um aumento generalizado da gordura corporal, associado a um excesso de calorias e, muitas vezes, a hábitos de vida menos saudáveis. Ao contrário do lipedema, a gordura da obesidade pode ser reduzida com dieta e exercício.
A retenção de líquidos, também conhecida como edema, é a acumulação excessiva de líquidos nos tecidos do corpo, causando inchaço, geralmente em áreas como pernas, pés, tornozelos, mãos e abdómen.,
Por partilharem sintomas tão semelhantes, é fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos aos sinais específicos de cada condição, para se evitarem diagnósticos errados. O diagnóstico correto evita frustrações e permite oferecer o tratamento mais adequado a cada pessoa.
Sabemos que é uma doença crónica, de origem hereditária e sem cura. Porque é que o diagnóstico é tão difícil e frequentemente tardio, levando muitas mulheres a anos de sofrimento sem resposta?
O lipedema só foi reconhecido enquanto doença distinta pela OMS em 2019, por isso, o conhecimento que existe sobre a doença ainda é escasso. E é exatamente por partilhar tantos sintomas aparentemente iguais com outras doenças, que é tão difícil o diagnóstico. Para um diagnóstico mais certeiro, é fundamental conhecer muito bem o histórico do paciente e realizar os exames certos, como é o caso da ecografia à base de inteligência artificial, como temos na MS Medical Institutes, o que nos permite ter uma noção clara das diferentes camadas de pele e gordura.
O atraso no diagnóstico revela-se mais um peso a suportar ao longo da vida da mulher, uma vez que a frustração com a sucessão de dietas ineficazes gera desgaste e uma enorme pressão emocional.

Estima-se que cerca de um milhão de mulheres em Portugal possam estar afetadas por lipedema. Apesar destes números, continua a ser uma doença quase invisível no discurso público e até médico. O que explica este silêncio?
Estes números, apesar de já serem elevados, estão certamente subdiagnosticados. E o que a torna “quase” invisível no discurso público é o facto de ser bastante recente e ainda existir muito desconhecimento em torno da mesma. Com base na minha experiência, posso afirmar que o preconceito associado à mesma também tem um peso significativo. Ou seja, é uma doença que ainda está muito associada à estética e à aparência, mas essa ideia não podia estar mais errada.
O lipedema é uma doença crónica, hereditária e que não tem cura. O seu tratamento requer uma abordagem multidisciplinar e um compromisso vitalício por parte de quem sofre desta doença e a quer manter controlada. Associar o lipedema a apenas uma questão estética é muito redutor e injusto para quem sofre das limitações físicas e emocionais que a doença acarreta.
O lipedema só foi reconhecido enquanto doença distinta pela OMS em 2019, por isso, o conhecimento que existe sobre a doença ainda é escasso.
Para uma mulher que desconfia estar a sofrer de lipedema, qual deve ser o primeiro passo? A quem deve recorrer e que sinais devem levantar suspeitas?
Os primeiros sinais da doença podem surgir na puberdade, com as primeiras mudanças hormonais. Uma altura que coincide com a adolescência e todos os desafios inerentes à idade. Ao tornar esta doença cada vez mais pública, queremos ajudar as mulheres logo desde os primeiros sinais, a desconfiarem que as mudanças do seu corpo podem não ser normais. Sobretudo se também existirem casos de lipedema na família. Quanto mais informadas as mulheres estiverem, mais fácil será o diagnóstico e mais cedo começam os tratamentos, com o objetivo de evitar a evolução contínua e descontrolada da doença. Em caso de suspeita, o meu conselho para estas mulheres é que não aceitem o diagnóstico mais fácil. Confiem no instinto e procurem um profissional que as possa ajudar e acompanhar ao longo do processo.
O impacto do lipedema vai muito além da aparência física. Que tipo de limitações funcionais e efeitos psicológicos têm sido mais evidentes nas doentes com quem contacta?
Existem diversos riscos associados, sejam eles diretamente ligados às limitações físicas da doença ou às limitações de ordem psicológica. Entre esses riscos, destaco o desenvolvimento de linfedema (lipo-linfedema), uma das complicações mais comuns do lipedema avançado. Esta condição ocorre quando o sistema linfático se torna incapaz de drenar adequadamente os líquidos, resultando em inchaço adicional nas extremidades. Pode agravar a mobilidade e o desconforto.
Também destaco as dificuldades de mobilidade. À medida que o lipedema progride, o aumento do volume das pernas pode causar dificuldades locomotoras. A dor e o peso das extremidades afetadas podem limitar a capacidade de caminhar ou realizar atividades diárias, resultando numa diminuição significativa da qualidade de vida.
Acrescento a esta lista a dor crónica e a sensibilidade aumentada, uma vez que a pele e os tecidos subcutâneos podem tornar-se muito sensíveis ao toque, e a pressão nas áreas afetadas pode ser dolorosa. Esta dor crónica pode também ter um impacto emocional, levando à ansiedade ou depressão.
A pele das áreas afetadas pelo lipedema pode ser mais suscetível a infeções, como a celulite (uma infeção bacteriana da pele). Isso ocorre porque o acúmulo de líquido pode criar um ambiente propício ao crescimento de bactérias, especialmente em casos avançados.
A fadiga e a exaustão são outros aspetos a destacar. Devido ao peso adicional nas pernas e ao esforço necessário para realizar atividades físicas, muitas pessoas com lipedema relatam fadiga crónica. Este sintoma pode dificultar ainda mais a prática de exercícios e contribuir para um ciclo de inatividade e agravamento dos sintomas.
Saliento também os problemas posturais e articulares. O excesso de peso nas pernas e nas ancas pode levar a problemas posturais, sobrecarregando as articulações, especialmente os joelhos e as ancas. A longo prazo, isso pode resultar em dores articulares, artrite precoce e desgaste da cartilagem.
Finalmente, a limitação física e as questões emocionais podem levar ao isolamento social. Muitas pessoas com lipedema sentem-se constrangidas com a aparência do corpo e evitam participar em atividades sociais, o que pode agravar os problemas psicológicos.
Os primeiros sinais da doença podem surgir na puberdade, com as primeiras mudanças hormonais. Uma altura que coincide com a adolescência.
Muitas mulheres relatam a sensação de viverem “em dois corpos” — uma parte superior magra, uma parte inferior desproporcional. Como é que esta vivência afeta a autoestima, a saúde mental e até a vida social das pacientes?
Quando não diagnosticado, o lipedema causa problemas psicológicos e emocionais, pela incompreensão que gera. A falta de resultados visíveis afeta negativamente a autoestima e o bem-estar emocional das pessoas que sofrem da doença. O impacto estético, associado ao inchaço desproporcional das pernas e ancas, pode provocar sentimentos de vergonha ou ansiedade social, fazendo com que a pessoa se isole. Além disso, o fracasso em perder peso nas áreas afetadas, mesmo com dieta e exercício, pode gerar frustração.
Existem diferentes tipos e estádios de lipedema. Pode explicar-nos de forma resumida como se classificam e por que razão esta diferenciação é importante para o tratamento?
Existem, de facto, diferentes tipos e estádios de lipedema, e essa classificação é fundamental para orientar o diagnóstico, monitorizar a progressão da doença e, sobretudo, definir o plano de tratamento mais adequado.
Assim, o lipedema pode ser classificado em diferentes tipos consoante as regiões do corpo afetadas: O Tipo I: afeta sobretudo a região dos quadris e nádegas. O Tipo II: estende-se até às coxas, incluindo joelhos. O Tipo III: envolve as pernas até aos tornozelos. O Tipo IV: afeta também os braços. E, finalmente, o Tipo V: forma rara, em que há predomínio nos gémeos (panturrilhas).
Cada tipo pode apresentar diferentes níveis de impacto funcional e estético, e a sua localização pode influenciar as opções terapêuticas, especialmente no que diz respeito a intervenções cirúrgicas.
A evolução do lipedema é também dividida em três estádios principais, baseando-se na textura e consistência do tecido adiposo. Desta forma, no Estádio I, verificamos a pele ainda lisa, mas o tecido adiposo apresenta nódulos finos, tipo "grão de arroz". No Estádio II, a pele apresenta irregularidades visíveis (aspeto acolchoado), presença de nódulos de gordura mais grosseiros. Já o Estádio III, revela deformações significativas da silhueta, com grandes massas de gordura e comprometimento da mobilidade.Por fim, o Estádio IV, corresponde ao lipolinfedema — quando há associação com linfedema secundário.
Porque é importante a diferenciação?
diferenciação é crucial por várias razões. O diagnóstico diferencial ajuda a distinguir o lipedema de outras patologias, como a obesidade ou o linfedema.
O planeamento terapêutico envolve uma abordagem conservadora — drenagem linfática, terapia de compressão, dieta e exercício — que pode ser suficiente nos estádios iniciais. Contudo, em estádios mais avançados, pode ser necessário recorrer à lipoaspiração especializada.
Por seu lado, o prognóstico permite compreender o tipo e estádio da doença, avaliar a sua progressão e impacto funcional, além de contribuir para a educação do doente sobre a evolução do quadro clínico.
A avaliação deve ser realizada por um profissional com experiência em doenças do tecido adiposo, uma vez que o lipedema continua a ser frequentemente subdiagnosticado.
O tratamento não cura, mas permite controlar a progressão da doença e recuperar qualidade de vida. Em que consiste o tratamento ideal e como se articula o plano entre nutrição, fisioterapia e eventual cirurgia?
O tratamento do lipedema baseia-se na conjugação de três modalidades principais: tratamento nutricional, fisioterapia/tratamento desportivo e tratamento cirúrgico. A omissão de qualquer uma destas componentes pode comprometer o sucesso do tratamento e inviabilizar os resultados desejados.
Devido ao desconhecimento da doença, muitos diagnósticos de lipedema não são corretamente realizados, sendo frequentemente recomendado apenas um plano nutricional. Esta abordagem, por si só, pode resultar na perda de peso nas zonas não afetadas, acentuando ainda mais a desproporção entre a parte superior e inferior do corpo.
No âmbito cirúrgico, o tratamento do lipedema consiste na remoção do tecido adiposo doente, que é mais fibroso e compacto do que o normal. As áreas a tratar são particularmente delicadas, exigindo, por isso, um conhecimento profundo das técnicas adequadas, de forma a evitar danos nos tecidos saudáveis.
A técnica mais avançada atualmente disponível é a lipoaspiração PAL supertumescente com radiofrequência bipolar fracionada, um tratamento eficaz oferecido pelo Instituto Português do Lipedema. Este procedimento, também conhecido como SAFEST Lipo, foi desenvolvido e publicado por mim (ver artigo) numa das revistas científicas mais prestigiadas da área da cirurgia plástica. Esta técnica inovadora permite remover o tecido adiposo afetado e tratar simultaneamente a flacidez da pele, proporcionando alívio dos sintomas e uma melhoria significativa da mobilidade e da qualidade de vida.
No que diz respeito à componente desportiva e à fisioterapia, recomenda-se a drenagem linfática manual ou mecânica, terapias descongestionantes e/ou terapia complexa descongestiva. Embora não sejam curativas, estas abordagens devem ser mantidas de forma contínua e indefinida.
O lipedema não tem cura, mas a qualidade de vida das pacientes pode melhorar significativamente se seguirem um plano de tratamento completo e mantiverem, ao longo da vida, cuidados específicos que ajudem a manter a doença controlada.
O tratamento do lipedema baseia-se na conjugação de três modalidades principais: tratamento nutricional, fisioterapia/tratamento desportivo e tratamento cirúrgico.
Em relação ao tratamento cirúrgico, muitas mulheres têm dúvidas: é seguro? É definitivo? E qual o tempo de recuperação realista?
De um modo geral, sim, a cirurgia para tratamento do lipedema é segura, desde que realizada por equipas experientes e com formação específica na abordagem cirúrgica desta patologia. Ao contrário da lipoaspiração estética convencional, este procedimento é mais delicado, pois tem como objetivo preservar as estruturas linfáticas e minimizar o risco de linfedema secundário.
Ainda assim, como qualquer intervenção cirúrgica, acarreta riscos, entre os quais se incluem infeções, hematomas, irregularidades cutâneas ou alterações da sensibilidade. Por esse motivo, uma avaliação pré-operatória cuidadosa e uma preparação adequada são fundamentais para reduzir a probabilidade de complicações.
Os resultados da cirurgia podem ser duradouros, embora não necessariamente definitivos. O tecido adiposo removido não volta a formar-se, mas o lipedema é uma condição crónica, com componentes hormonais e inflamatórias. Assim, se não houver um controlo eficaz de fatores como o peso, a inflamação ou as alterações hormonais, a doença pode continuar a progredir noutras zonas do corpo. Além disso, mesmo após a cirurgia, muitos doentes necessitam de manter terapias de suporte, como o uso de meias compressivas ou a drenagem linfática, para preservar os resultados obtidos.
Portanto, não se trata de uma cura, mas sim de uma estratégia eficaz para o controlo a longo prazo da doença. O tempo de recuperação varia consoante a extensão da cirurgia, a técnica utilizada e a resposta individual de cada paciente. De forma geral, as primeiras duas semanas são marcadas por repouso relativo, dor moderada, inchaço e hematomas, sendo essencial o uso contínuo de compressão e a realização de drenagem linfática. Entre a segunda e a sexta semana, é possível retomar gradualmente a atividade leve, embora o edema possa persistir. A recuperação funcional completa costuma ocorrer ao fim de dois a três meses, com estabilização dos resultados entre seis a doze meses após a intervenção.
É fundamental que a doente esteja bem informada e tenha expectativas realistas. Quando bem indicada e executada, a cirurgia pode proporcionar melhorias significativas ao nível da dor, mobilidade, autoestima e qualidade de vida.
É possível viver com lipedema de forma funcional e com autoestima? Que tipo de mudanças no estilo de vida são indispensáveis e quais os erros mais comuns que devem ser evitados?
Sim, é possível viver com lipedema de forma funcional e com boa autoestima, sobretudo quando existe um diagnóstico precoce e é implementado um plano de cuidados adequado. Algumas mudanças no estilo de vida são indispensáveis para o controlo da doença e para a melhoria da qualidade de vida. A prática regular de atividade física adaptada, como caminhadas ou hidroginástica, aliada a uma alimentação equilibrada com perfil anti-inflamatório, pode fazer uma diferença significativa. O uso diário de peças de compressão, como meias ou leggings específicas, e a realização de drenagem linfática manual, bem como os cuidados regulares com a pele, são também componentes essenciais do tratamento não cirúrgico.
Por outro lado, é importante evitar alguns erros comuns que podem comprometer o bem-estar da pessoa com lipedema. Um dos equívocos mais frequentes é confundir lipedema com obesidade e adotar dietas restritivas ineficazes, que não só não resolvem o problema como podem agravar o quadro clínico. Ignorar os sintomas, assumindo que são normais ou relacionados apenas com o excesso de peso, pode atrasar o diagnóstico e dificultar o tratamento. Da mesma forma, muitas pessoas evitam o exercício físico por receio da dor, o que acaba por favorecer o agravamento dos sintomas. Outro aspeto frequentemente desvalorizado é o impacto psicológico do lipedema — o apoio emocional e psicológico é fundamental para lidar com as alterações da imagem corporal, a dor crónica e os desafios sociais associados à doença.
Com acesso à informação correta, acompanhamento especializado e um compromisso com o autocuidado, é perfeitamente possível manter uma vida ativa, saudável e com qualidade, mesmo convivendo com o lipedema.
O que é que ainda falta fazer, em Portugal, para que o lipedema seja reconhecido e tratado com a seriedade que merece — quer no Serviço Nacional de Saúde, quer na sensibilização social e médica?
Em Portugal, ainda há um caminho importante a percorrer para que o lipedema seja plenamente reconhecido e tratado com a seriedade que merece. No contexto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), persiste a ausência de reconhecimento oficial do lipedema como uma doença crónica, o que dificulta significativamente o acesso ao diagnóstico, ao tratamento adequado e ao acompanhamento multidisciplinar. A inexistência de protocolos clínicos específicos contribui para diagnósticos errados ou tardios, comprometendo a eficácia das intervenções. Além disso, tratamentos eficazes como a lipoaspiração terapêutica, mesmo quando clinicamente indicados, não são comparticipados, o que limita o acesso das doentes a opções que poderiam melhorar substancialmente a sua qualidade de vida.
No plano da sensibilização social e médica, a desinformação e o estigma continuam a ser barreiras relevantes. Muitas mulheres vivem durante anos sem diagnóstico, sendo frequentemente classificadas como “obesas” ou “sedentárias”, o que agrava o impacto físico e emocional da doença. Há também uma clara lacuna na formação médica, nomeadamente nas áreas da medicina geral e familiar, endocrinologia, medicina física e de reabilitação, e cirurgia, o que dificulta a identificação precoce e a abordagem adequada dos casos.
Torna-se, por isso, urgente promover campanhas de sensibilização pública que informem a população, combatam o preconceito e incentivem o diagnóstico precoce. Reconhecer o lipedema como uma doença real, crónica e debilitante é um passo essencial para garantir um tratamento digno, acesso equitativo aos cuidados de saúde e melhores condições de vida para todas as pessoas que vivem com esta condição.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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