HealthNews (HN)- O subfinanciamento dos recursos das escolas médicas é um dos problemas maiores que apontam ao atual quadro de funcionamento das Escolas de Medicina. Como se repercute esse impacto no dia-a-dia.

Vasco Cremon de Lemos (VCL) – Este subfinanciamento, no dia-a-dia, acaba por se repercutir de várias formas, sendo que um dos principais impactos acaba por ser junto do nosso ensino clínico. Isto porque o subfinanciamento leva à subcontratação de tutores, o que leva a que haja cada vez mais estudantes para o mesmo número de tutores. Isto leva, por um lado, a uma menor oportunidade de praticar gestos clínicos e uma menor oportunidade de contacto com doentes. Por outro lado, do ponto de vista do doente, leva a uma degradação da qualidade da prestação de cuidados, porque o doente está a ser observado, não por um médico e um estudante, mas por um médico e três estudantes ou, em muitos casos, por um médico e 10 estudantes, num consultório ou numa enfermaria, o que, naturalmente, acaba por criar desconforto. Consideramos que não é ético por parte do sistema de saúde fazer isto aos seus doentes. Acaba por pôr em causa algumas das premissas deontológicas às quais estamos obrigados.

HN- A pressão pelo aumento do numerus clausus é outro dos aspetos negativos que vos levou a avançar para uma posição pública. As Escolas estão no seu limite no que respeita a número de alunos que podem receber?

VCL- Acredito que sim. Para termos mais estudantes precisamos de ter condições para os receber. Neste momento, temos auditórios sobrelotados nas escolas médicas, em que nem todos os estudantes que lá estudam têm lugar para se sentar. Portanto, estarmos a acrescentar estudantes faz com que estas infraestruturas não sejam suficientes. Temos um número de tutores também sobrelotado. E temos, no Porto e em Lisboa, centros hospitalares que acabam por ser divididos por duas ou por três faculdades. Eu, estudante da Nova, posso partilhar estágio, no hospital, com a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e, em breve, com Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa. Portanto, sim, as faculdades estão já sobrelotadas em termos de espaço, condições e docência, mas também os nossos locais de estágio acabam por estar muito sobrelotados com estudantes.

HN- Não há falta de médicos em Portugal? Pelo que nos vão contando as notícias, parece haver. Estamos perante um problema de número ou de gestão de recursos?

VCL– Eu diria que o problema é a gestão de recursos. Somos um dos países do mundo que mais forma médicos, que tem mais estudantes de Medicina e em que mais estudantes de Medicina terminam o seu curso; portanto, a formação de médicos, de facto, não é um problema em Portugal, nem tem sido nos últimos anos. O problema está na gestão de recursos. A questão que nós colocamos muitas vezes é: os médicos existem; é preciso saber onde é que eles estão. E quando falamos de falta de médicos em Portugal, importa aqui reforçar que geralmente nos referimos a falta de médicos no SNS, não a falta de médicos per si. Portanto, importa fazer uma reflexão maior sobre o futuro da medicina, e mais para a frente, num período profissional, e não tanto num período pré-graduado, enquanto somos estudantes.

HN- Novas escolas e escassez de recursos humanos: De que forma têm sentido o impacto da abertura de novas escolas de Medicina?

VCL– Em relação às novas escolas, acho que difere um pouco, porque depende de que nova escola estamos a falar. Abrir uma nova escola privada ou uma nova escola pública poderá ter implicações diferentes nos recursos e no subfinanciamento, porque uma escola médica privada, suponho eu, acaba por não ter tanto o problema do subfinanciamento como uma escola médica pública.

Se existe um hospital em Lisboa, existem três escolas médicas e vão passar a existir quatro, esse hospital vai ter de ser dividido por mais escolas médicas; ou seja, vai fazer com que aquele rácio de que eu falei de estudante-tutor seja cada vez mais agravado e se registe cada vez mais uma degradação do nosso ensino clínico.

HN- Mas os privados não estão a receber também estudantes de Medicina?

VCL- Estão. Nós, estudantes das escolas médicas públicas, fazemos estágios em unidades hospitalares privadas, da mesma forma que quem está no ensino privado irá fazer estágios nas unidades privadas, mas também em unidades hospitalares públicas.

HN- O que pretendem afirmar quando assinalam uma “Violação dos direitos da pessoa doente: reserva, privacidade e maleficência”? Qual é a gravidade que isso atinge?

VCL- Nós consideramos que talvez atinja níveis de gravidade um pouco elevados. Um doente está numa situação de vulnerabilidade quando está num hospital e o que se passa é que nós, por vezes, temos um médico a observar esse doente, ou uma equipa de profissionais de saúde, e 10 estudantes a acompanhar um tutor. Estamos a falar de 10 pessoas a ter de fazer os mesmos gestos clínicos no mesmo doente, a ter de fazer as mesmas perguntas ao mesmo doente. Achamos que isto acaba por degradar os seus cuidados médicos no sentido da forma como a pessoa se sente no hospital. Acreditamos que a pessoa sairá de lá igualmente bem cuidada e com resultados eficazes, no entanto terá uma experiência no Serviço Nacional de Saúde, que é onde isto acontece mais, que não é ética. Enquanto estudantes de Medicina não nos sentimos bem a perpetuar uma prestação de cuidados não ética aos nossos doentes. Para além disto, acreditamos que isto poderá ter implicações no futuro. Estamos a falar de um curso de seis anos em que o objetivo é ter uma grande prática clínica, uma grande oportunidade de praticar gestos. Quanto mais estudantes tivermos para o mesmo número de doentes, menos gestos cada um de nós praticará. Se houver duas análises para fazer a um doente e nós formos quatro estudantes, dois de nós não irão fazer. Portanto, quantos mais formos, menos estudantes praticarão gestos clínicos ao longo do curso.

HN- Existem propostas para resolução destes problemas de que temos vindo a falar?

VCL- Sim. Antes de mais, assumimos desde logo que não sabemos tudo e que também precisamos de discutir com o governo para chegarmos a propostas realistas, para também conseguirmos perceber para onde podemos caminhar. Achamos que os caminhos poderão ser vários. Um deles poderá ser o aumento do financiamento do Estado proporcional ao aumento do número de estudantes que é obrigatório. Se o Estado nos obriga a aumentar os estudantes, também tem de aumentar o financiamento, de forma proporcional, e não da forma que tem acontecido. É necessário que este aumento seja feito com base nas necessidades do país e, também, com base nas capacidades. Aqui é necessário ver o corpo docente da faculdade, o corpo discente da faculdade, mas também as infraestruturas da faculdade, porque este financiamento pode ter que ser acompanhado de remodelações das infraestruturas das universidades que precisam. E é necessário, também, um maior investimento na investigação. Uma das formas que temos de colmatar este aumento de estudantes acaba por ser a simulação médica e a prática clínica orientada sem doentes. Esta prática clínica necessita de um grande investimento inicial, um financiamento em infraestruturas tecnológicas, em recursos humanos capacitados para tal. É necessário investir numa série de coisas, para que este aumento do numerus clausus possa ser feito de forma ponderada.

HN- Qual o peso dos Problemas de Saúde Mental na comunidade estudantil? Existe algum estudo que reflita essa situação?

VCL- Existe, sim. A ANEM tem um estudo designado Burnout Buddy. É um estudo em que auscultámos os estudantes sobre o que eles sabiam do burnout e quantos estudantes é que tinham ultrapassado o burnout. Foi um estudo que acabou por abranger 1600 estudantes, o que dá mais que 10% da nossa comunidade estudantil. No entanto, temos conhecimento de outros estudos feitos por outras associações académicas que relatam dados semelhantes. De facto, aquilo que a nós chegámos é que a maioria dos estudantes sentem burnout ou sintomas de burnout ao longo do curso. Isto é algo que nos preocupa. Ainda que nos preocupe ainda mais a percentagem de estudantes que não consegue aceder a cuidados de saúde mental através das instituições de ensino superior, dependendo, então, dos seus meios financeiros, porque o SNS também não consegue, infelizmente, suprir estas necessidades, pela falta de psicólogos que ainda existe no nosso SNS. Portanto, estes estudantes acabam por ficar dependentes das suas condições financeiras. Estamos a falar de estudantes na maioria dos casos deslocados, portanto, que já têm um gasto adicional na sua vida. Estarmos aqui a pôr uma variável tão grande como a condição financeira, quando consultas de psicologia não são baratas em Portugal, é uma coisa que para nós é muito relevante. Por vezes o acesso existe, as universidades acabam por ter disponível um psicólogo clínico para a sua comunidade académica, a questão está na rapidez desta resposta. Por vezes estamos semanas ou meses à espera de uma resposta por parte da universidade. Compreendemos que a culpa não está nos profissionais que já lá existem, os casos são muito superiores à resposta que eles conseguem dar, e portanto é necessário aumentar o número de psicólogos e o número de prestadores de cuidados de saúde mental, bem como incrementar políticas que promovam o bem-estar e saúde mental, apostando na prevenção da saúde mental e não apenas numa correção dos casos em que a saúde mental já está degradada.

HN- Que iniciativas a plataforma “A tua voz. O teu diagnóstico” tem agendadas para fazer valer os seus pontos de vista?

VCL- A principal iniciativa que nós tivemos foi uma auscultação aos estudantes de Medicina, que se chamou “A Tua Voz, o Teu Diagnóstico”. Através desta campanha, o que nós fizemos foi recolher vinhetas clínicas. A ideia das vinhetas nasceu do facto de estarmos habituados a ver os nossos doentes com uma vinheta clínica. O que nós fizemos foi fazer uma vinheta clínica ao nosso curso de Medicina. Os estudantes, puderam, livremente, escrever aquilo que consideravam sobre o seu curso de Medicina, os principais problemas e soluções e um plano terapêutico para o nosso curso, porque consideramos que o curso de Medicina, por vezes, está doente e é necessário tratá-lo. Portanto, fizemos um diagnóstico ao nosso curso e estamos agora a apostar no seu tratamento. Assinámos mais de 900 vinhetas a nível nacional, com estudantes a dar o seu contributo de forma livre. Já analisámos a maior parte delas e agora iremos reunir com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que é o órgão que nos tutela, para conseguir discutir com eles soluções. Aqui é que é a parte relevante. O nosso objetivo não é só expor problemas, nós queremos ser parte da solução. Queremos ajudar e trabalhar com o Ministério, dar o ponto de vista dos estudantes de Medicina na procura de soluções para melhorar a formação na Medicina, porque acreditamos que isto se irá repercutir, no futuro, num melhor sistema de saúde e numa melhor prestação de cuidados de saúde. Paralelamente a isto, estamos a desenvolver algumas outras iniciativas juntamente de órgãos específicos. Por exemplo, fomos recentemente recebidos na Assembleia da República, na Comissão Parlamentar de Saúde, para discutir o estatuto do estudante de Medicina, em conjunto com o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, algo que consideramos também muito relevante quer para o acesso a equipamentos de proteção individual, quer para o acesso aos registos clínicos de forma controlada, algo que ainda não é possível atualmente, mas que acreditamos que o será brevemente. Por outro lado, temos outras “guerras” sobre a prova nacional de acesso, nomeadamente a redução de locais, porque a prova nacional de acesso, o antigo Harrison, para entrar na especialidade, realizava-se em vários locais do país que atualmente foram reduzidos para apenas três, tendo-se mantido os locais nas ilhas. Acreditamos que isto também cria injustiças junto dos estudantes que, para fazer a prova mais importante da sua vida nesta fase em que nos encontramos, têm de se deslocar centenas de quilómetros. Isto era uma coisa que não acontecia no tempo do Harrison e que acaba por trazer encargos quer financeiros, quer temporais, quer de desgaste mental e emocional para aquele dia que já é um dia stressante per si.

HN- Quanto à prova de acesso em si, há coisas que devem ser alteradas?

VCL- A prova nacional de saúde sofreu uma remodelação muito grande em 2018. Portanto, é uma prova ainda muito recente. Acreditamos que sim, que há coisas a melhorar na prova, nomeadamente as questões logísticas. Já falei dos locais, mas posso também falar no custo da prova nacional de acesso, que era gratuita até 2018 e que atualmente tem um custo de 90 euros. Achamos que é necessária uma reflexão maior quando à prova, também em conjunto com quem já a fez – perceber a perspetiva que têm da prova. A prova nacional de acesso é uma prova de seriação, uma prova que vai do 0 ao 150, com o objetivo de seriar estudantes. O que temos verificado ano após ano é que as notas nunca chegam ao 150 e que também raramente chegam ao 0. Ou seja, de 150 lugares que temos para seriar, estamos a usar apenas 70/80 lugares. Isto faz com que existam estudantes muito condensados na mesma nota. Ou seja, a prova não está a seriar esses estudantes, está apenas a dizer que cerca de 30 estudantes estão na mesma nota e eles terão de ser seriados posteriormente pela sua média. Isto é um problema que a partir 2024 poderá ficar um pouco dissolvido com a adição da média a valer 20%. A prova vai passar a valer apenas 80%. No entanto, achamos que é necessário refletir aqui no porquê de as notas estarem a ter um espectro cada vez menor, porque, de facto, o espectro da PNA tem sido menor ano após ano, este último ano foi o pior, com a nota mais alta a ficar nos 120 e poucos. Ou seja, estamos aqui com 20 lugares que seriam úteis para seriar os 3000 estudantes a ficar vagos. É necessário que os estudantes consigam chegar ao espectro e é preciso perceber o porquê de isto não estar a acontecer.

Entrevista de Miguel Mauritti

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