Há dias em que consumo horas a olhar para o Senhor Rodolfo. Uns dias pela leveza de me limitar a observá-lo, outros por me forçar a esmiuçar uma metáfora que me custa a distanciar. Hoje foquei-me nesta última. Se calhar é importante salientar que o Senhor Rodolfo é um gato, baptizado pelas suas semelhanças físicas com um senhor cá da terra.

O Senhor Rodolfo passou a tarde a brincar com umas borboletas, daquelas muito bonitas mas que têm um voo todo tosco. Estas mariposas são como aquelas modelos que se esbardalham numa passerelle hipotecando, de imediato, toda a sua beleza por estragarem a única coisa que deveriam fazer em condições: andar para a frente.

Passou para as moscas e depois para as traças. São graus de exigência diferentes e ele sabe-o. Que eu contasse matou duas borboletas, quatro moscas e seis traças. As outras deixou-as em estado Cavaco - meias vivas, meias mortas, para gáudio do felino.

A sua irracionalidade permite-lhe fazer isto porque, para todos os efeitos, ele será sempre um felino

Isto não torna o meu gato num assassino, torna-o num artista. Encarem-no como um toureiro de insectos, um apaixonado pela sua arte. Tenho cá para mim que se ele falasse, arranjar-me-ia oitenta e oito desculpas para se justificar e continuar a carnificina para seu próprio prazer. Como dono do Senhor Rodolfo, tenho de sair em sua defesa: ele não as mata, brinca com elas. Não tem culpa é que elas, por mero acaso, morram no fim da brincadeira. E caramba, quanto a isto não há nada a fazer. As moscas iam necessariamente morrer, talvez porque são moscas e ninguém aguenta muito tempo a almoçar e jantar poio fora de casa. As moscas, se não morrerem de velhice ou após serem toureadas por um gato, vão morrer de enjoo pela monotonia das refeições. Ah, já para não falar da halitose que lhes compromete a vida social. O meu gato apenas foi o responsável por lhes conferir dignidade à morte, é que ser mosca não é fácil. Mas ser gato doméstico também não. Têm aquelas unhas afiadas que lhes comprometem a adolescência e a exploração total do seu corpo de gato sob pena de, à mínima investida, ficarem com o órgão sexual todo trucidado, como se o tivessem colocado numa liquidificadora. Podem, porém, lamber o próprio sexo, mas Deus concedeu-lhes uma língua com a consistência de uma lixa, o que torna qualquer momento de higiene íntima num trabalho de carpintaria, devido ao lustro que puxam ao marsápio. Já para não dizer que, por norma, acabam capados, a invejar o fim que deram às moscas.

O Senhor Rodolfo anda mortinho por passar num canal de televisão a tourear moscas, borboletas e traças. Como dono, e conhecendo bem a sua personalidade, tenho quase a certeza de que se iria refugiar na tradição e na arte para perpetuar esta sua brincadeira com os insectos. Pode ser um caminho fácil e até redutor para com aquilo que é, de facto, tradicional, artístico, histórico e bonito de se manter num futuro em que a sociedade evoluiu ao invés das suas práticas. Mas, caramba, ele é um gato. A sua irracionalidade permite-lhe fazer isto porque, para todos os efeitos, ele será sempre um felino.

Estou certo de que o Senhor Rodolfo inventaria uma solução para inverter estas tendências. Conhecendo-o como conheço, era menino para inventar um espectáculo tradicional que consistiria na arte de lidar com toureiros bravos, tanto a pé quanto a cavalo. É que se isto for bem instaurado hoje, daqui a 100 anos nem nós nem o meu gato estaremos cá e isto vira facilmente tradição.

E não me lixem, as tradições são para manter.