O António é português e é adepto da tradição. Os mais próximos chamam-lhe "canhoto", não porque o seu lado dominante seja o esquerdo, mas porque, em pequeno, sempre quis ter uma alcunha. Apostou, na segunda classe, um Tazo dos raros como conseguia escrever o seu nome com a mão esquerda e ganhou. Nunca mais fez nada à esquerdino, mas foi o suficiente para ser baptizado.

Hoje em dia mantém-se adepto de tradições e é daquelas pessoas que, em conversa, conhece sempre alguém com o mesmo problema que está em discussão:

- Há um primo do sogro do meu tio que tem um joelho que não dobra. Dizem que é muito raro. Acontece num em cada dez milhões.

- Curioso. A enteada do meu bisavô tinha isso. Devia ser a número dois desses dez milhões. Gabavam-lhe a anca até ela começar a caminhar e perceberem que afinal não era sexy, tinha era a dobradiça perra.

Quando não conhecia ninguém com o problema em questão, forçava outra mazela e monopolizava o diálogo:

- O avô do Guilherme tem uma doença crónica raríssima que quando o ataca, tem de fazer medicação e ficar por casa. Condiciona-lhe a vida toda.

- Pois, por acaso isso já não sei. Mas o meu primo Tiago também não anda nada bem. Anda sempre a chorar da vista. Não consegue sair de casa porque não vê nada. Já para não falar na vergonha. É tanta a água nos olhos que há dias saiu de guarda-chuva e estava céu limpo. Já lhe disse que deve ser das alergias, dá-lhe sempre na Primavera. Disse-lhe que é crónico porque todas as Primaveras não se vai safar daquele chafariz ocular. Foi ao médico ontem. Disse-lhe que passava a vida a chorar da vista e saiu de lá com um antidepressivo.

- A sério? E agora?

- Agora? Agora continua a chorar das vistas mas já não se importa, está todo feliz. Até estive a ver o que ele trouxe do médico e, na minha opinião, não é dos mais recentes, mas ele já não o larga.

- O antidepressivo?

- Não. O guarda-chuva. Ainda continua a sair com ele com o céu limpo mas já não tem vergonha. Só se ri.

O António é daquelas pessoas que usa óculos e compete com terceiros para saber quem é que vê pior:

- Quantas dioptrias tens?

- Tenho 3 no esquerdo e 2 no direito.

- Ah, então vês bem. Eu tenho 7 num e 6 noutro. Sem óculos não vejo nada, queres que te mostre?

Tira os óculos e vai às marradas aos postes só para ganhar o desafio.

Já para não falar no prazer de acumular patologias.

- Sofres de quê?

- Miopia.

- Só?! Eu tenho miopia, astigmatismo e um clio de 87.

O questionário torna-se tão extenso que, quando me perguntam se vejo mal ao perto ou ao longe, a minha resposta é sempre:

- Ao longe. Eu daqui para Coimbra não vejo nada - e remato o assunto.

O António queria que o seu primo Tiago tivesse cataratas. Acha o nome luxuoso, talvez pela alusão às Cataratas do Niágara. Dá a ideia de que, quem as tem, fica com a remela a fazer rafting. Certamente que, se fosse o António a tê-las, pediria ao médico:

- Doutor, se me for operar às cataratas, anestesie o castor que está a fazer um dique nas minhas pestanas. É que, com a lista de espera do SNS, já me afeiçoei ao bicho e não quero que ele sofra.

Depois é só aguardar que o António consulte o Dr. Google para saber que doenças transmitem esses mamíferos roedores e deixar que o tempo se encarregue de as somatizar.