Não obstante a hemofilia estar identificada desde o século XIX, mantém-se como uma doença desconhecida para muitos de nós. Quer explicar-nos o que é a hemofilia, quais os tipos e os graus de gravidade?
A hemofilia é uma doença da coagulação identificada há mais de cem anos, em que as pessoas apresentam uma deficiência num fator de coagulação. Este fator é necessário quando nos cortamos, ou existe algum traumatismo, para se formar um coágulo e parar a hemorragia. No caso das pessoas com hemofilia, a hemorragia não para por faltar esse fator de coagulação.
Em termos de gravidade da doença, existem três graus de gravidade. Chamamos hemofilia grave, quando por e simplesmente não há fator VIII (hemofilia A) ou fator IX da coagulação (hemofilia B). Se o fator estiver presente no sangue em níveis que variam entre 2 % e 5%, estamos perante um caso de hemofilia moderada. A diferença entre estes dois tipos de gravidade é que, se não fizerem tratamento de prevenção, as pessoas com hemofilia grave, sangram de forma espontânea, podendo estar a dormir e, no dia seguinte, acordarem com uma hemorragia. No caso das pessoas com hemofilia moderada, estas têm tendência de sangrar após pequenos traumatismos.
Já na hemofilia ligeira, em que os níveis de fator estão entre os 5% e os 40%, os indivíduos costumam ser diagnosticados numa fase tardia, por vezes, já na idade adulta, por exemplo quando são operados e sangram. Ou seja, na hemofilia ligeira a hemorragia ocorre em caso de lesão grave, traumatismos maiores ou cirurgias.
Tem dados que nos permitam perceber a prevalência da doença no nosso país?
Em Portugal, segundo dados dos últimos censos, estima-se que existem cerca de mil pessoas com hemofilia. Contudo, nem sempre todas as pessoas com hemofilia estão registadas na Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas.
A que sintomas devemos estar atentos que nos permitam indiciar a presença da doença hemofílica?
A maior dificuldade é que a maioria das pessoas diagnosticadas com hemofilia não tem história na família por isso, como em qualquer doença, não reconhecem os sinais. É sempre mais fácil para alguém com história familiar estar atento aos sintomas. No caso de a grávida saber que é portadora de hemofilia, podemos saber se o bebé vai ter esta patologia e assim preparar o parto com o mínimo de risco possível.
Quando não sabemos que tem hemofilia, o diagnóstico é feito em várias fases da vida. Conforme já referi, se forem casos de hemofilia ligeira, podem até ser diagnosticados na adolescência ou até na idade adulta.
Na hemofilia grave é muito raro que o diagnóstico seja tardio. Dos doentes que acompanho, lembro-me de dois casos que foram diagnosticados entre os dois e os três anos de idade, mas é raríssimo que uma situação grave seja diagnosticada tão tarde. E, quando isso acontece, é por ser uma doença rara e, apesar de as mães procurarem ajuda médica e dizerem que a criança tem determinados sintomas, nem sempre se percebe logo que é hemofilia. Em termos de sintomas, na hemofilia grave o que é habitual é surgirem habitualmente no primeiro ano de vida. O sintoma que é característico da hemofilia é acontecerem hemorragias para dentro das articulações, principalmente no joelho, cotovelo ou tornozelo, hemorragias essas que são muito dolorosas porque ocorrem no interior de um espaço fechado. Além das articulações, os hematomas nos músculos das pernas, braços, tórax e abdómen são também muito frequentes. É muito habitual o diagnóstico acontecer na altura em que começam a gatinhar, porque é quando eles começam a ficar com hematomas visíveis nos joelhos ou nos tornozelos. Em casos graves, o simples ato de pegar no bebé pode provocar hematoma nos braços ou nas costas. Se a pessoa não tiver histórico de hemofilia na família, não consegue perceber de imediato que aquilo é um problema e acabamos por diagnosticar mais tarde.
O diagnostico é um fator fundamental para iniciar o tratamento de uma doença para a qual ainda não existe cura. Como é feito este diagnóstico?
Como disse anteriormente, a criança aparece com hematomas e dores nas articulações, o que não é habitual acontecer num bebé. Se forem feitas análises de coagulação os resultados aparecem alterados, e se depois se dosear os fatores VIII e IX percebe-se que estes não existem ou estão diminuídos. Outras vezes, há crianças com dois ou três anos de idade que precisam de ser operados às amígdalas ou aos ouvidos e, nessa altura, também podemos ver que as análises estão alteradas e suspeitar que pode ter uma doença da coagulação. Nestes casos, se ninguém reparar que estão alteradas, as crianças podem ter complicações hemorrágicas nas cirurgias. É importantíssimo fazer o diagnóstico, porque os hemofílicos graves e uma parte dos moderados deviam fazer um tratamento de prevenção. Este tratamento de prevenção chama-se profilaxia, em que os doentes fazem regularmente uma terapêutica para não sangrarem espontaneamente. Habitualmente, os ligeiros não precisam de fazer essa prevenção porque eles já têm algum nível de fator que os protege.
Do diagnóstico ao tratamento. Quais são os tratamentos que os doentes hemofílicos encontram no nosso país considerando os diferentes graus da doença?
Felizmente, em Portugal, existe tudo aquilo que está aprovado para o tratamento da Hemofilia. O que há para tratar a hemofilia A ou B são os chamados concentrados de fatores de coagulação. Estes concentrados correspondem a frasquinhos que contêm o fator VIII ou fator IX e precisam de ser injetados regularmente na veia para que as pessoas não tenham menos de 1 ou 2% de fator. Existe também um tratamento subcutâneo, que se usa na hemofilia A, e permite prevenir as hemorragias, imitando a ação do fator oito na coagulação (fator que a pessoa com hemofilia A não tem) e evitando as hemorragias. Há algumas inovações a nível internacional como a terapia génica, que altera o gene e faz com que a pessoa com hemofilia passe a produzir fator ausente. Parece algo complicado, mas é possível vir a estar disponível em Portugal nos próximos anos. Há duas ou três terapêuticas que estão em investigação e também devem aparecer nos próximos dois ou três anos no sentido de prevenir hemorragias e tratar.
Para além do tratamento quais as principais recomendações de estilo de vida a que deve obedecer o doente hemofílico?
Os primeiros anos do diagnóstico são a fase mais importante, em que temos uma relação muito próxima com as crianças e as suas famílias, porque é quando nós tentamos dar as recomendações que consideramos importantes. O que mais queremos é que eles tenham uma vida com qualidade e igual a qualquer criança e, nessa primeira fase, chamamos muito à atenção os sintomas a que têm de estar atentos. Por exemplo, se uma criança pequenina cai a correr e bate de cabeça, é sempre um motivo para ir ao hospital, pois pode ter uma hemorragia intracraniana. É importante reforçar que se as hemorragias forem acontecendo ao longo dos anos, a partir de uma idade muito jovem (20-30 anos ou até antes), começam a ter alterações que nunca mais desaparecem, como dificuldade em movimentar-se. Caso exista a necessidade de serem operados, temos de ser informados e tem de ser num hospital que assegure tratamentos para pessoas com hemofilia. Quando vão viajar têm de levar a sua terapêutica, confirmar quais são os hospitais que existem nesse país e se asseguram tratamento para a hemofilia.
O intervalo da profilaxia pode variar e, no caso dos fatores VIII e IX de longa duração, o tratamento dura mais tempo. Na hemofilia B (ausência de fator IX) há pessoas a fazerem de duas em duas semanas o tratamento. No caso da hemofilia A, o tratamento pode ser feito a cada três dias, duas vezes por semana ou até apenas uma vez por semana. No caso do produto subcutâneo, o tratamento pode ser desde semanal a até mensal e a proteção mantém-se estável.
Relativamente à rotina diária, é fundamental que eles percebam durante quanto tempo estão protegidos e que saibam se e quando têm de fazer o tratamento novamente. Temos rapazes que jogam futebol profissional e que fazem a administração do fator no balneário antes do jogo. Quando medicados, durante umas horas, são pessoas com a coagulação normal e fazem os treinos ou jogos como se não tivessem hemofilia.
No fundo, como profissionais de saúde, aconselhamos como se podem proteger para não ter problemas, mas não proibimos porque isso funciona, geralmente, ao contrário do que é desejável.
Em 2023, a Federação Mundial da Hemofilia estabeleceu como tema para o Dia Mundial da Hemofilia o “acesso ao tratamento e a prevenção das hemorragias”. Quão grave podem ser estas hemorragias, nomeadamente em questões menos óbvias, como por exemplo no caso das articulações?
O que caracteriza os hemofílicos e que há uns anos era frequente, chama-se artropatia hemofílica, ou seja, quando uma articulação sangra a primeira vez, dificilmente volta a ser exatamente igual ao que era. Portanto, se sangrar uma vez, duas vezes, três vezes ou dez vezes, essa articulação vai ficar com alterações na cartilagem e, até mais grave, pode causar alterações nos próprios ossos. Ao fim de uns anos, o que acontece é que as articulações começam a ficar deformadas e depois pessoa não consegue fazer os movimentos, começando a coxear e a necessitar de cadeiras de rodas, canadianas ou bengalas. Ou seja, a profilaxia que atualmente as pessoas com hemofilia fazem, tem como objetivo proteger as articulações, para que não fiquem com sequelas graves, que não lhes permitem fazer coisas simples como pentear-se.
Para além da hemofilia há outras coagulopatias congénitas que afetam ambos os sexos que queira aqui identificar?
Falámos da hemofilia, mas esta patologia nem sequer é a mais frequente. Há uns anos, muitas pessoas com hemofilia ficavam com graves deformações e, infelizmente, muitas pessoas morriam com hemorragias que não se conseguiam controlar, daí que se tenha dedicado tanta atenção à hemofilia. Outra razão é o facto de agora já conseguimos prevenir isso e, portanto, fala-se muito disso, mas há outras doenças.
A hemofilia afeta, quase exclusivamente, os homens, havendo muitas poucas mulheres com hemofilia grave. Aliás, penso que haja apenas uma portuguesa com hemofilia grave. No entanto, há mulheres (por exemplo, mães, irmãs ou outras familiares de pessoas com hemofilia) portadoras de hemofilia. Estas mulheres podem ser portadoras com um nível de fator normal e têm uma vida normalíssima, apenas transmitiram a doença ou podem ser portadoras, com fatores de 15 ou 20% e que, por isso, têm uma hemofilia ligeira. Nestes casos, nas cirurgias é importante que as mulheres sejam tratadas, e também podem ter que ser tratadas durante a gravidez e parto.
As restantes coagulopatias congénitas atingem os dois sexos, como é o caso da doença do Von Willebrand (DVW), que é uma doença em que o defeito está no fator de Von Willebrand. Esta doença tem muitos tipos e subtipos, e é muito mais frequente do que a hemofilia. Mesmo em termos de consulta no nosso Centro, existem mais pessoas com DVW do que com hemofilia. Alguns casos da DVW, nas suas formas graves podem necessitar de fazer um tratamento de prevenção das hemorragias à semelhança do que acontece na hemofilia. Existem ainda outras patologias, que são os défices raros de outros fatores da coagulação, como o fator VII, o fator XI ou o fibrinogénio. Nestes défices de fatores da coagulação, felizmente, as formas graves são muito raras, mas pode ser necessário fazer também profilaxia. Para finalizar, temos ainda as doenças por alterações das plaquetas, que são outros constituintes do nosso sangue, essenciais para não sangrarmos, e merecem o devido tratamento.
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