A Hemofilia tem coexistido com vários mitos que ajudaram a cristalizar ideias equívocas sobre esta patologia no seio da sociedade. Hoje já é possível desmistificar a Hemofilia sem repetir as assunções do passado.
Os avanços da medicina e da ciência dotaram esta patologia rara de um manancial de conhecimento e de um arsenal de recursos terapêuticos que permite a quem com ela convive levar uma vida plena. O que antes era uma doença pode hoje ser visto como uma condição. Quando perfeitamente controlada, a Hemofilia não representa constrangimento à vida nem aos sonhos.
Por ser uma condição genética ligada ao cromossoma X (e não ao Y), congénita e, em 70% dos casos, hereditária, que se manifesta como uma dificuldade na coagulação do sangue, a Hemofilia surge quase exclusivamente nos homens, embora também existam casos, muitos raros, nas mulheres.
Um homem com Hemofilia passará o seu gene às filhas, mas não aos filhos. As mulheres que têm o gene da hemofilia são chamadas portadoras (podendo ter sintomas ligeiros de Hemofilia) e podem transmiti-lo aos seus filhos. Se isso acontecer, os rapazes terão hemofilia. Em 30% dos casos não existe historial familiar.
Uma pessoa com Hemofilia que tenha uma hemorragia poderá sangrar durante mais tempo do que uma pessoa que não tenha Hemofilia, devido aos baixos valores de factor de coagulação presentes no seu organismo. Um simples corte não representa grande problema, mas uma hemorragia interna numa articulação ou num músculo pode originar danos permanentes. É fundamental que a pessoa com Hemofilia tenha acesso à terapêutica com factores de coagulação em regime profiláctico para impedir que estas hemorragias ocorram.
Acesso à terapêutica em modelo de proximidade
A chave para uma vida absolutamente normal passa pela gestão regrada e constante do tratamento profiláctico, que deve ser decidido num âmbito de uma relação médico-paciente de confiança mútua. Ajustada a cada indivíduo, a profilaxia, seja num modelo intravenoso ou subcutâneo, é administrada pelo próprio no conforto do seu domicílio.
Os medicamentos para a gestão da Hemofilia são de dispensa hospitalar, e as pessoas com Hemofilia, ou os pais, têm de se deslocar às unidades hospitalares onde são seguidas para levantarem a terapêutica. Isto implica visitas mensais ou de três em três semanas aos hospitais, com impacto no dia-a-dia de cada um, afectando muitas vezes o decorrer normal de uma jornada de trabalho quando, por exemplo, a pessoa tem de fazer algumas centenas de quilómetros até ao hospital. É inegável que o acesso à terapêutica tem influência na adesão à profilaxia e, por arrasto, no seu sucesso.
Por essa razão, a APH tem vindo há anos a defender um modelo de acesso em proximidade que permita às pessoas com Hemofilia receber a terapêutica directamente no seu domicílio ou, se o preferirem, na farmácia mais próxima. Só agora, em contexto pandémico, é que este modelo começa a dar os primeiros passos.
Dos cinco centros de referência para o tratamento da Hemofilia existentes em Portugal, os hospitais de Santa Maria e São José em Lisboa, o CHUC de Coimbra e o Santo António do Porto começaram a facultar o acesso à terapêutica na farmácia comunitária ou diretamente no domicílio. Até agora, só o modelo desenvolvido pelo São João do Porto, o “PharmaDrive”, continua à mesma a obrigar os pacientes ou pais a deslocarem-se ao hospital. Noutras unidades hospitalares espalhadas por todo o país, e que também servem as pessoas com Hemofilia, as disparidades no acesso à terapêutica são ainda mais evidentes.
Na semana em que se consciencializa a sociedade para as temáticas da Hemofilia, esta é uma situação que urge resolver para que haja equidade no acesso à terapêutica e para que nenhuma pessoa com Hemofilia seja penalizada por ser seguida no hospital x, e não no y.
Um artigo de Nuno Lopes, Presidente Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas.
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