«Sex, sexuality, and gender have far-reaching implications for health and disease. It is worth reflecting on this to see how they may affect our clinical work, our teaching, and our research. »1
O título, manipulado para obter mais atenção2, e a citação selecionados não deixam transparecer o teor desta reflexão partilhada. As palavras selecionadas pertencem a uma das poucas referências nacionais sobre o impacto das questões de género no ensino, prática e investigação em medicina em Portugal. Neste momento, consigo adivinhar e sentir o sururu sobre o termo ‘género’ com a polarização do costume: a favor ou contra. O binarismo, este ou qualquer outro, é redutor e não ajuda na abordagem ao tema. Evitar as questões de género na medicina portuguesa só perpetua os problemas existentes (desigualdade, preconceito, por exemplo), impede a sua análise e consequente debate e progresso, essenciais à prestação dos melhores cuidados de saúde no contexto social e económico atual. Volto atrás para expressar a minha preocupação quando determinado tema, com diferentes abordagens, abunda nas publicações estrangeiras e é escasso ou nulo nas nossas. Ao longo da minha vida pessoal e profissional, fui “colecionando” os seguintes: erro em medicina, problemas de adição em profissionais de saúde e preconceito de género. Cada um terá os seus assuntos de estimação, estes são os meus.
A falta de publicação nacional não significa nunca que o assunto não existe, mas sim que não é abordado, reconhecido ou valorizado. Perdendo-se oportunidades de aprendizagem, treino e investigação. O “erro em medicina” já foi abordado em jornadas, congressos, livros, mas ainda não se ensina como lidar com ele, aprender e mudar, em vez de o esconder. Prevenir em vez de punir. Deste modo, quando perguntamos a qualquer médico ou médica sobre um determinado assunto menos frequente, poucos dizem «não sei o que isso é» e «como posso saber mais». Fomos educados e treinados para mantermos uma sabedoria científica inabalável e autoritária, quase no absurdo «nunca me engano e quase não tenho dúvidas». Nada mais errado. A humildade da aprendizagem, condição absolutamente necessária, nunca nos deveria abandonar. Perante a impossibilidade, confirmada e aceite, de acompanhar o progresso científico, a classe médica encapsula o seu conhecimento, não o partilhando – outra condição também necessária – com outras ciências, nomeadamente as sociais e muito menos com as vulgares vozes não diferenciadas, as populares, aquelas a quem presta cuidados. Eis um dos caminhos que abrimos escancaradamente para a procura das “medicinas alternativas” que criticamos, com custos diretos e indiretos ainda pouco definidos, mas enormes para cidadãos em particular e para o país, em geral. Polémico? Não creio.
Agora, é a minha última oportunidade para não perder mais leitores, entre os que acham realmente que vou falar de sexo e tabus.
O que me trouxe até estas linhas é o ruído à volta da “violência obstétrica”. Não vou analisar e discutir o projeto de lei, a resolução da assembleia da República e muito menos o parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, especificamente. O que proponho é abordar a questão em si, com uma lente diferente, a das questões de género. Porque é disso que se trata. Ou seja, a violência obstétrica é uma violência de género. Acontece às mulheres, porque são mulheres. Aqueles seres que se querem passivos, cujos corpos servem um propósito social que todos cobramos («quando é que casas e tens filhos?»), “fadas de lares” imaginados e felizes para sempre. A sociedade admira a mulher que é astronauta, mas questiona o seu papel de mãe enquanto o faz. Ao homem sentado a seu lado, essas questões não se colocam por serem irrelevantes apesar de ser pai também. A mulher grávida vai parir e entrega-se aos outros, não tem alternativa, que lhe cortam os elos com a família e o mundo que conhece e lhe dá segurança. Em nove meses, houve pouco tempo para conversar com ela sobre os procedimentos a que vai ser submetida, como decorre um trabalho de parto normal ou como é quando as coisas correm menos bem ou mesmo mal. Fica isolada, numa cama, rodeada de pessoas que nunca viu, cheia de medos, obrigada a aceitar o que lhe dizem, porque “eles” é que sabem o que é melhor para ela, embora nunca lhe tenham dito nada. Nem com licença, obrigado, desculpe, tentarei ser breve… Ela sabe que eles olham, mas não vêm nada do seu corpo desnudo, disforme e que dói. E é aqui que ela deve ser submissa e suportar todas as manobras, todas as palavras de gente para quem «é mais um dia igual aos outros», e que para ela será sempre uma data marcada na vida e no calendário porque nasceu-lhe um filho, ou não.
O que despoletou esta necessidade de falar sobre o assunto foi a própria negação. Não admitir a sua existência é a manobra mais retrógrada que se pode arranjar. Quando um grupo, geralmente maioritário e privilegiado, patriarcal e conservador, não quer enfrentar um problema, a simples nomeação do mesmo torna-se ela “o” problema… Da mesma maneira, discutir a adequação do termo ‘violência’ pode ser ofensivo e inútil. Há que aceitar a conotação social e política de ‘violência’. A Organização Mundial de Saúde tem uma definição própria de ‘violência’ onde tem cabimento o conceito de ‘violência obstétrica’. Em vez de questionar a pertinência da palavra, talvez fosse mais útil alargar o seu âmbito, substituindo o “certo” ou “errado” por uma definição mais lata, sendo a violência um resultado de normas sociais e relações de poder. A questão central é assim a falta de poder das mulheres durante o parto. O poder está do lado da instituição e dos seus representantes, com o autoritarismo do saber científico, por vezes acompanhado por sexismo e racismo. A violência estrutural é assim aplicada, insidiosamente e em silêncio, confiando na incapacidade das mulheres, as vítimas, de reconhecer os padrões desviantes e, como tal, na improbabilidade de serem denunciados e muito menos provados. A descredibilização das vítimas e dos seus relatos3 é outra manobra menos elegante de quem tem o poder e o privilégio. Mesmo que escassos, os relatos devem ser ouvidos e valorizados, porque sabemos que o reconhecimento dos atos desviantes é difícil e a sua consciencialização também. Diminuí-los à luz da falta de objetividade e de conteúdo científico é só patético.
A criminalização dos profissionais surge, neste contexto, como uma ameaça aos utentes dos serviços, numa lógica simplista que visa a ausência de denúncia – se houver um caso de violência obstétrica, um profissional é culpado, logo haverá menos pessoas para tratar os restantes, logo surgirão os verdadeiros casos de violência. Errado, porque a criminalização não resulta da violência obstétrica, é sim um produto defensivo e hostil de uma engrenagem que reage com incredulidade, suspeição e destruição dos testemunhos da violência de género.
A minha opinião não é uma ‘encomenda’ ou o resultado de estudos exclusivos. A quem tiver interesse em saber mais, uma simples busca proporciona referências abundantes para níveis diferentes de envolvimento, mas nunca para negar.
Creio que o silêncio não é a solução. A medicina portuguesa necessita de humildade para abordar este tema. Necessita igualmente de partilhar conhecimento com as ciências sociais. Tem que integrar no ensino pré e pós-graduado as questões de género, bem como na prática clínica e na investigação. Ignorá-las é um desrespeito para todos os que precisam de cuidados de saúde.
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