Em poucas décadas, a humanidade levou a cabo uma revolução de hábitos ancestrais. A nossa espécie, que até há pouco tempo vivia imersa na natureza, passou a ocupar uma porção desmesuradamente concentrada de território. Passámos, em poucas gerações, de uma espécie generalista, capaz de viver em qualquer parte, a uma espécie capaz de habitar um nicho ecológico específico - a cidade. Esta é revolução comparável à da transição de caçadores-recoletores para agricultores, há 12 mil anos. Uma revolução que o especialista em Neurobiologia Vegetal italiano Stefano Mancuso, analisa no seu mais recente livro, A cidade viva (edição Pergaminho). Na obra, o também professor associado na Universidade de Florença, avalia o “risco terrível” de nos concentrarmos em cidades: “a especialização de uma espécie só é eficaz em ambientes estáveis. Em condições ambientais instáveis, torna-se perigosa. O nosso sucesso urbano exige um fluxo contínuo e exponencialmente crescente de recursos e energia - que, contudo, não são ilimitados. E o aquecimento global pode operar uma mutação fatal das condições das quais a nossa sobrevivência depende. É por isso que precisamos de reintegrar a natureza no nosso habitat”.
Mancuso olha para o ser humano e vê-o “há demasiado tempo, num plano separado do da natureza, esquecendo-se de que reage aos mesmos fatores fundamentais que controlam a expansão de qualquer outra espécie. Concebemos mesmo os espaços que habitamos como estando separados do resto da natureza, contra ela, até. E é por isso que da forma como imaginamos as nossas cidades dependerá uma parte significativa da nossa possibilidade de sobrevivência”.
Ao longo das perto de 150 páginas do seu livro, o autor, eleito pelo jornal La Republica como “um dos 20 italianos destinados a transformar as nossas vidas”, analisa a cidade do futuro. Para Mancuso, a urbe, “seja construída de raiz ou recuperada, terá de ser uma fitopolis, onde as relações entre plantas e animais se reaproximem da harmonia que encontramos na natureza. Nada é mais importante para o futuro da humanidade”.
Da obra, publicamos o excerto abaixo:
A cidade expandida
Numa mão-cheia de anos, se comparados à vida da Terra, a espécie humana tornou-se uma força telúrica capaz de lhe mudar a História. O avanço da nossa espécie e das suas atividades nos últimos dez mil anos mudou o metabolismo energético do planeta com uma força só comparável à colonização da Terra por parte das plantas. Os resultados desta revolução estão, neste momento, totalmente fora das nossas possibilidades de previsão. A verdade é que, embora até o puro bom senso sugira evitar danos excessivos aos nossos ecossistemas, não sabemos o que fazer para limitar o nosso impacto sobre o planeta sem abrandar o crescimento económico; e o facto de parecermos incapazes de colocar travão até ao mais insignificante dos consumos não parece ser o melhor viático para um futuro feliz. Em todo o caso, nada se poderá obter sem inovação, não só tecnológica, mas sobretudo social.
Precisamos de inovar imaginando formas de governo globais que sejam capazes de reduzir ao mínimo o consumo dos bens comuns antes que se aproximem de limiares críticos, os quais, uma vez ultrapassados, já não poderão ser recuperados ou só às custas de grandes sacrifícios. Inventar uma forma de fazer tudo isto, quer na esfera social, quer na tecnológica, é o desafio do nosso futuro.
Quaisquer que sejam as soluções que imaginemos, de uma coisa podemos ter a certeza: para que funcionem, deverão ter um impacto fundamental sobre o modo como funcionam as nossas cidades. Aliás, as cidades são o lugar da nossa agressão ao ambiente, embora ocupem apenas uma porção exígua da superfície terrestre.
No capítulo anterior vimos como o impacto sobre o planeta de cada habitante de uma cidade ocidental rica pode ser comparado, e sobretudo visualizado, com o de um primata de 15 toneladas. Uma imagem aterradora, se multiplicada pelo número de cidadãos ricos do planeta. Mas se quisermos ter uma ideia estritamente quantitativa do impacto das cidades, as descrições já não bastam e temos de recorrer aos números. E os dados dizem-nos que mais de 70% do consumo mundial de energia e de 75% do consumo de recursos naturais está a cargo das cidades. Tal como a emissão de cerca de 75% de CO2 e a produção de 70% de resíduos. Um estudo de 2021sobre as emissões de gases de efeito de estufa por parte de 167 cidades distribuídas por todo o planeta demonstrou que 25 megalópoles são responsáveis pela produção de 52% das emissões de gases de efeito de estufa. As cidades asiáticas emitem a maior parte desses gases e a maior parte das cidades dos países desenvolvidos produzem emissões per capitasignificativamente mais elevadas do que as dos países em vias de desenvolvimento. A energia consumida pelos edifícios de todos os tipos (residenciais, institucionais, comerciais ou industriais) contribui com uma produção de gás de efeitos de estufa entre 60% e 80% para as emissões totais nas cidades norte-americanas e europeias, ao passo que num terço das cidades mais de 30% das emissões totais deriva do transporte por estrada. São dados que explicam de forma bastante clara quais são os verdadeiros responsáveis pelo aquecimento global do planeta. Se pensarmos que daqui a 25 anos as cidades serão chamadas a albergar mais dois mil milhões e meio de pessoas, parece evidente que não é possível imaginar nenhuma solução séria para os problemas ligados ao nosso impacto que não preveja uma revolução urbana.
O problema deste ponto de vista parece duplo: as cidades, de facto, são a principal fonte do nosso impacto sobre o planeta e das alterações ambientais que daí advêm, e ao mesmo tempo são o ponto mais vulnerável da humanidade sobre o qual atuam essas mesmas alterações. Tentarei simplificar o discurso, tomando como exemplo o aquecimento global, a principal e mais perigosa das alterações induzidas pelo homem no nosso ambiente.
Como calculo que todos saibam – recordo-o brevemente mais por dever do que por necessidade –, o aquecimento global deve-se às emissões de gases de efeito de estufa, o mais significativo dos quais, devido às quantidades produzidas pelas atividades humanas, é o CO2. Devido às emissões destes gases, a sua concentração na atmosfera do planeta aumenta, impedindo que este arrefeça. Assim, a temperatura média aumenta a uma velocidade nunca sentida: estamos já com mais 1,5 °C face à temperatura do período pré-industrial e as previsões para o fim do século dizem-nos que o aumento se situará algures entre 2 e 3 °C. Do que deriva este aquecimento não há qualquer dúvida. O que ainda não sabemos com razoável certeza é quais serão as suas consequências para o planeta e sobretudo para as cidades, o nosso novo nicho ecológico, o lugar onde até ao fim do século viverão bem mais de sete mil milhões de pessoas. O motivo de incerteza está relacionado com o facto de a temperatura influenciar qualquer processo que ocorre no planeta, seja físico, químico, biológico ou ecológico.
Assim, é muito difícil provar o que acontecerá, por exemplo, ao clima do planeta, à circulação atmosférica, ao ciclo da água, ao nível dos mares e dos gelos, com o detalhe necessário. De uma coisa, contudo, podemos estar certos. Os locais onde estas alterações causarão mais danos são precisamente as cidades. Muitíssimas cidades do planeta já enfrentam as consequências do aquecimento global e no futuro as coisas só poderão piorar. Os fenómenos atmosféricos que hoje provocam precipitações, incêndios, tempestades e secas tenderão a aumentar a sua incidência, em número e em intensidade, com consequências diretas sobre a população e sobre a economia das cidades. Pensemos, por exemplo, na intensidade e duração das ondas de calor, um fenómeno que nos últimos anos ocorre com renovado vigor. As ondas de calor são períodos caracterizados por condições meteorológicas extremas nas quais se registam temperaturas muito elevadas durante vários dias consecutivos, associadas com frequência a forte humidade e ausência de ventilação. A onda de calor que atingiu o continente europeu durante o verão de 2022 provocou 61 672 vítimas, sobretudo pessoas idosas e frágeis, mortes por complicações cardiocirculatórias. Um estudo de 2017 estima que, mesmo que conseguíssemos limitar a subida da temperatura média até ao fim do século em apenas 2 °C face ao nível pré-industrial – perspetiva quase irrealizável –, o número de pessoas expostas nas cidades aos efeitos de ondas de calor mortais ultrapassaria os 350 milhões. Os centros urbanos, de facto, são muito mais quentes do que as áreas rurais circundantes, como vimos algumas páginas atrás, aludindo ao fenómeno das ilhas de calor.
A descoberta da diferença de temperatura entre cidade e campo deve-se a um farmacêutico londrino, Luke Howard, que em 1820 publica The Climate of London, o primeiro texto a tratar do clima urbano. Nele Howard, após ter registado durante nove anos as temperaturas no centro de Londres e nos campos imediatamente circundantes, assinala e explica pela primeira vez o fenómeno pelo qual a temperatura da cidade é mais alta do que a das áreas rurais e como, aliás, esta diferença é maior durante a noite. Pois bem, hoje, devido às ilhas de calor, calcula-se que, a nível global, a temperatura nos centros urbanos seja mais alta, em média, 6,4 °C (embora se trate de um dado muito variável em função da posição geográfica da cidade, das suas características de construção e sobretudo da dimensão e distribuição das áreas verdes).
O facto de as cidades serem assim tão mais quentes do que o ambiente circundante deve-se sobretudo à natureza artificial e impermeável da maior parte das superfícies urbanas. A falta de solo permeável, de facto, impede a evaporação da água e o consequente arrefecimento do ambiente. Além disso, na cidade muitas superfícies são escuras (pensemos no asfalto, mas não só), absorvendo assim uma maior quantidade de radiação solar, e são construídas com materiais que têm propriedades térmicas não favoráveis. Se acrescentarmos a isto que uma parte significativa da energia utilizada na cidade pelos edifícios, pela indústria ou pelo trânsito de veículos é libertada sob a forma de calor residual, que a geometria dos edifícios funciona como barreira à passagem do vento e que as propriedades radiantes da atmosfera são alteradas pela poluição, torna-se claro o motivo pelo qual as cidades estão a ficar cada vez mais quentes. Ora, se somarmos os efeitos da ilha de calor urbano à perturbação do clima devido ao aquecimento global, torna-se evidente que as cidades, sobretudo as situadas a latitudes ou altitudes não favoráveis, já são agora e tornar-se-ão nas próximas décadas lugares onde a vida será cada vez mais difícil.
Ter modelos fiáveis sobre como evoluirá o clima urbano nas próximas décadas torna-se, por isso, fundamental, se quisermos tentar imaginar soluções. Existem laboratórios que fazem precisamente simulações para prever qual será o clima das nossas cidades nas próximas décadas.
Antes de mais, pode ser útil conhecer o que escreve a esse propósito o Urban Climate Change ResearchNetwork (UCCRN), um consórcio de mais de 1200 investigadores que se dedicam ao estudo da evolução do clima nos centros urbanos. Em 2018 o UCCRN publicou um relatório5 recheado de informações que tentarei resumir em poucas linhas. Atualmente 350 cidades da Terra vivem condições de calor extremo, ou seja, períodos de pelo menos três meses em que a média das temperaturas máximas não desce abaixo dos 35 °C. Em 2050 estas cidades serão 970. Hoje 200 milhões de pessoas nas cidades vivem em condições de calor extremo, serão mil e seiscentos milhões em 2050. Catorze por cento da população urbana vive hoje em condições estivais de calor intenso; em 2050 esta quota subirá para 45%. Ainda até 2050, mais de 650 milhões de pessoas, que vivem em mais de 500 cidades, poderão sofrer uma descida de pelo menos 10% da disponibilidade de água doce; dois mil e quinhentos milhões de pessoas, que vivem em 1600 cidades, poderão sofrer uma descida de pelo menos 10% dos rendimentos nacionais das principais culturas; mais de 800 milhões de pessoas, que vivem em 570 cidades costeiras, estarão em risco de inundações. É uma lista bastante impressionante, a que os autores deram o apropriado título de The future we don’t want, (O futuro que não queremos).
Existe depois uma série de laboratórios espalhados entre universidades e centros de investigação de meio mundo que, usando robustos modelos climáticos, nos tentam indicar qual será o clima das cidades num horizonte temporal normalmente limitado aos próximos trinta anos. O ETH de Zurique fá-lo através de um sistema simples mas, creio, eficaz: para cada cidade que escolhermos indica outra que hoje tem o clima mais semelhante ao que a cidade em questão terá em 2050.Descobrimos assim que em2050, em média, as cidades terão os climas que têm hoje cidades situadas a cerca de mil quilómetros a sul. As condições climáticas de Roma em 2050 serão semelhantes às da atual Izmir, Londres terá o clima que hoje tem Barcelona, Paris o de Istambul e Madrid será parecido Com Marraquexe. Para quem está interessado na sorte das cidades dos Estados Unidos, a universidade de Maryland criou um serviço análogo, mas limitado a 540 cidades norte-americanas e com um horizonte mais distante, 2080. Também aqui não há qualquer surpresa: o clima das cidades será muito semelhante ao que hoje têm cidades situadas 800 km mais a sul, com grandes alterações, além das temperaturas, também das precipitações e da humidade.
São inúmeras as universidades que nestes últimos anos têm criado sistemas para divulgar com simplicidade e impacto o que acontecerá às nossas cidades. A intenção é tornar evidente ao maior número possível de pessoas o futuro climático dos nossos centros urbanos. Os resultados, apesar dos esforços, não parecem ser suficientes, pelo menos a julgar pelo facto de a (grande) maioria das pessoas continuar a não ter qualquer interesse – ou ser cética – pelo argumento inerente ao aquecimento global.
De qualquer modo, ainda que possamos prever com uma boa margem de confiança o que acontecerá às nossas cidades daqui aos próximos trinta ou cinquenta anos, há que responder à pergunta mais importante: o que podemos fazer para tornar as cidades mais resistentes a estas já inevitáveis alterações? E, sobretudo, o que está a ser feito? Comecemos por esta última pergunta que, infelizmente, é a mais fácil de responder.
Na grande maioria das cidades nada está a ser feito: comportamo-nos como se o fenómeno não existisse. Em algumas cidades estão a ser criados planos de ação que preveem quase sempre sistemas de alerta precoce, alterações dos horários de trabalho ao ar livre e, em alguns casos, a construção de refúgios refrescantes que permitam aos cidadãos terem pausas para se refrescarem. Por fim, poucas administrações iluminadas estão a enfrentar o problema pela raiz, tentando arrefecer, tanto quanto possível, as cidades em si. É o caso de Seul que, para reduzir ao mínimo as suas ilhas de calor e a poluição causada por poeiras finas, plantou 16 milhões de árvores, e a tentativa de capitais europeias como Paris ou Berlim de tornar o mais permeável possível a sua superfície urbana, substituindo espaços impermeáveis por espaços verdes e estendendo as soluções para tornar verdes os telhados ou as superfícies dos edifícios. São práticas que permitem reduzir o efeito das ilhas de calor e que, ao mesmo tempo, permitem à cidade adaptar-se às fortes chuvas que caracterizarão cada vez mais o nosso futuro. Enfim, é possível fazer algo prático e rapidamente: basta querer. Trata-se quase sempre apenas de plantar o máximo de árvores que se possa tornando permeável a maior superfície possível das cidades. E, contudo, quantas são as cidades que estão realmente a fazer algo deste ponto de vista? Pouquíssimas. Quase todas se limitam a intervenções de fachada cuja real validade é inversamente proporcional à sua eficácia mediática.
Dito isto, como em todos os outros aspetos relativos às nossas estratégias de resposta à crise ambiental, o estudo de como se estão a adaptar os outros seres vivos poderia dar-nos pontos de vista esclarecedores. E então: o que estão a fazer todos os outros habitantes da nossa casa comum? Como respondem as espécies aos problemas do aquecimento global? Se tivéssemos de dar uma resposta seca, só poderia ser: com as migrações.
A História da Terra, quando observada na sua longa duração, foi uma contínua sucessão de mudanças do clima, da tectónica e dos oceanos, cuja vida sempre respondeu através da capacidade das espécies de modificar a sua distribuição. Cada espécie, seja animal, no curso da sua vida, ou vegetal, geração após geração, tenderá a mudar-se dos lugares mais hostis para os mais aptos à sobrevivência. Trata-se de uma regra geral e que não admite derrogações: quando as condições ambientais pioram, os seres vivos migram em busca de condições melhores.
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