Como cirurgião geral do Serviço Nacional de Saúde britânico, Karan Rajan fez todo o tipo de intervenções, da vesícula aos intestinos: não existe orifício no nosso corpo que ele não tenha investigado, nem partes da nossa anatomia que não tenha cortado e suturado. Chegou à conclusão de que as pessoas sabem muito pouco sobre a própria saúde e que o “Dr. Google” não resolve todos os problemas. Por isso decidiu usar as redes sociais para partilhar informações cientificamente comprovadas, aproveitando para acabar com alguns mitos.
Em pouco tempo conquistou mais de sete milhões de fiéis seguidores, sobretudo no TikTok, tornando-se num dos mais conhecidos médicos do mundo. Em Este Livro Pode Salvar a Tua Vida (edição Lua de Papel), o autor recorre a um discurso claro e sem tabus, para abordar desde a cor ideal da língua à flatulência habitual dos seres humanos (no mínimo 14 puns por dia, 99 por cento dos quais, felizmente, inodoros). No livro, o autor explica o funcionamento do corpo por dentro e por fora. Apresenta soluções para vários problemas, do nariz entupido à perda de olfato, e ensina exercícios simples que ajudam, por exemplo, a proteger os olhos de longas horas de leitura ou a melhorar o equilíbrio.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
O inferno do olfato
O nariz é um desastre. Tal como qualquer outro tubo, fica entupido, tem fugas e exige limpeza regular. Também sangra, pulveriza jatos super-rápidos de ranho e nascem-lhe uns tufos de pelo muito chatos. O cérebro odeia tanto o nariz que nos engana para fingirmos que ele não existe. Isto é conhecido como cegueira por desatenção e resulta numa incapacidade para vermos aquilo que está mesmo à frente… do nosso nariz. Claro que agora que falei nisso é provável que não consiga deixar de reparar nele. Sempre teve esse aspeto?
Quer tenhamos vergonha da protuberância olfativa que temos na cara, ou a consideremos um dos nossos melhores atributos, este equipamento influencia a nossa memória, a aprendizagem, a vida e os relacionamentos.
O nariz é, muitas vezes, relegado para a ignomínia de se tornar um ponto de apoio para os óculos ou uma conduta para inalar substâncias ilícitas e medicação. Apesar desta falta de respeito, tem imensas responsabilidades, desde a respiração ao olfato e ao paladar, passando pela fala e a produção de vogais e consoantes nasais. Em conjunto com as trompas de Eustáquio, o nariz desempenha um papel vital no equilíbrio da pressão mantida em torno do tímpano.
Também tem uma abertura secreta para escorrer o excesso de lágrima, através dos ductos nasolacrimais, e é por isso que o nariz fica a pingar quando choramos. Por fim, quando somos crianças, o nariz proporciona uma capacidade extra de armazenamento. Mas não está concebido para esse propósito, claro. Enquanto médico, perdi a conta ao número de vezes que tive de extrair pequenos objetos deste orifício com dupla canalização.
Como porta de entrada para o reino vital da respiração, há muita coisa dependente do nariz. Quando não está a expelir líquidos ao espirrarmos, ou a manter os nossos entes queridos acordados quando ressonamos, está a ajudar a inspirar oxigénio ao ritmo de 9 litros de ar por minuto. Ao mesmo tempo, purifica cada inspiração ao produzir muito muco para filtrar compostos nocivos e inimigos microscópicos. O nariz é mesmo a desvalorizada Amazónia da nossa anatomia e, tal como aquela preciosa floresta tropical, não temos em consideração o papel vital que ele desempenha na nossa existência.
Mais curto, mais fino, mais elegante, mais bonito...
Sendo a característica mais marcante da nossa cara, o nariz vinga -se desta falta de respeito manipulando friamente a autoestima, a confiança e a autoimagem de milhões de pessoas em todo o mundo. Esta fixação nasal é música para os ouvidos dos cirurgiões plásticos e de otorrinolaringologia, que realizam dispendiosas rinoplastias a pacientes que esperam melhorar a sua qualidade de vida.
Podem ficar surpreendidos por saber que as rinoplastias não são uma moda nova. As origens do procedimento remontam à Índia e ao século VI a.C. Na altura, Sushruta, um praticante de Ayurveda, realizou uma tentativa rudimentar de cirurgia reconstrutiva para ajudar as pessoas a quem tinham cortado o nariz como forma de punição por atos criminosos. O trabalho dele estava tão à frente do seu tempo que o procedimento não foi adotado durante muitos séculos, sendo privilegiadas máscaras especiais que as pessoas podiam usar para esconder o que restava do nariz, e que se tornaram especialmente pertinentes na Europa do século XVI, quando a sífilis atacou e apodreceu estes apêndices. Só no final do século XIX é que John Roe, um otorrinolaringologista norte-americano, reintroduziu a rinoplastia como uma cirurgia estética para melhorar a aparência de um nariz perfeitamente normal.
Nariz versus boca
Embora o nariz, as narinas e a cavidade nasal sejam estruturas essenciais para permitir as nossas aventuras respiratórias, existe um outro concorrente a esta posição – a boca. Na batalha entre os dois orifícios da cara, porém, só há um vencedor óbvio, por diversas razões.
Quando não está a brilhar como equipamento respiratório, a boca tem outra ocupação. A sua função principal envolve comer e beber. Quando assume o papel adicional de respirar, pode rebentar o caos sob a forma de engasgamento. Além disso, o nariz tem a capacidade incomum de humedecer o ar que entra, de servir como filtro e também de aquecer o ar antes de ele chegar aos pulmões. A boca tem capacidades limitadas a estes níveis e, embora seja possível sobrevivermos a respirar desta forma, os pulmões não vão ficar contentes.
Talvez a questão mais importante tenha a ver com o facto de ninguém querer ser visto como alguém que respira de boca aberta. Além do estigma social, isso gera uma bola de neve de consequências que podem, com o tempo, modificar, para pior a forma da nossa cara. Primeiro que tudo, os músculos das bochechas têm de trabalhar mais, o que coloca mais pressão sobre as mandíbulas superior e inferior. Ao longo do tempo, isto pode estreitar o formato da cara e as arcadas dentárias. O que significa que existe menos espaço na boca para a língua, que descai em vez de ficar na sua posição natural de descanso, contra o céu da boca. Isto pode ser uma preocupação sobretudo nas crianças, porque se a língua está caída na boca isso prejudica o desenvolvimento da zona média da cara.
O que quer dizer que alguns jovens que respiram de forma crónica pela boca podem acabar por ter faces mais estreitas e até problemas respiratórios e infeções.
Aprender a partilhar
O nosso nariz e as suas estruturas adjacentes são os canais de entrada e de saída dos pulmões. Portanto, sim, são inesperadamente importantes, mas aquilo que me desaponta é que os canais são apenas um e só um. Isso significa que não podemos ter um abastecimento contínuo de ar. Ao invés, somos forçados a aprender a partilhar as narinas entre as forças da inspiração e as da expiração. Não seria mais sensato ter um sistema de via única, como o trato digestivo, para evitar a acumulação de pó? Mais uma vez, é desaconselhável imaginar a vulgaridade do que aconteceria se o canal alimentar partilhasse a mesma rota para a entrada e a saída.
Também temos de prestar alguma atenção à localização e estrutura do nosso nariz. Um aspeto particular, que à primeira vista parece ser um exemplo de mau design, é o facto de ser uma protuberância na cara. Isto expõe o nariz a todo o tipo de perigos, desde as quedas de cara no chão às cabeçadas. Isto mesmo antes de falar do frágil suporte cartilaginoso que o nariz usa para se agarrar ao crânio. Se o nariz for atacado, voluntariamente pelos nossos dedos ou por objetos estranhos voadores, suscetível a fugas, sob a forma de sangramento. Felizmente, podemos influenciar a nossa anatomia para desligar a mangueira ou, pelo menos, para reduzir o fluxo.
Quando era miúdo nunca fazia amizade com crianças que visse a enfiar o dedo no nariz ou a comer o seu repugnante conteúdo. Afinal de contas, eu não me considerava nenhum monstro. A minha relação com o nariz tornou -se ainda mais particular durante uma viagem de família a Florença, quando tinha 11 anos. Sem qualquer aviso, num dia quente, com um gelado na mão, as minhas narinas começaram a pingar. Quando olhei para baixo, percebi que não era calda de morango que tinha no gelado de baunilha, mas sim o meu próprio sangue.
Tinha começado a vazar, do nada, e o simples facto de eu me lembrar deste pequeno incidente de forma tão clara, é bem exemplificativo do quanto me posso passar por causa deste apêndice. (Eu sei que não querem ouvir isto de um cirurgião, e foi por isso que me especializei em cirurgia do sistema digestivo).
Salve-se quem puder
A forma mais simples de pararmos a hemorragia é apertar o nariz, sentarmo-nos direitos e depois inclinar a cabeça ligeiramente para a frente, para que o sangue não escorra pela parte de trás da garganta. Isto é exatamente o contrário do muito propagado mito urbano de que devemos inclinar a cabeça para trás, o que faz muito pouco para reduzir o fluxo de sangue e aumenta o risco de engasgamento quando o sangue corre para a goela (o sangue é um excelente laxante, portanto, isto pode ser acompanhado por uma diarreia horas mais tarde). Quando apertamos a parte mole na ponta do nariz, conhecida como área de Little, ou plexo de Kiesselbach, pressionamos as artérias que estão provavelmente a causar o sangramento.
Se o sangue continuar a correr apesar desta pressão, pode -se enrolar um pequeno pedaço de papel e colocá-lo na área entre a gengiva e o lábio superior. Isto faz ainda mais pressão nos vasos sanguíneos que abastecem o nariz.
Se tudo falhar, não há como errar com o uso de gelo. Quando embrulhado num pano e encostado à narina que está a sangrar, causa uma vasoconstrição e um aperto dos vasos sanguíneos, para reduzir o esguicho.
De vez em quando, se o nariz estiver irritado ou for invadido por objetos estranhos, mesmo tão aparentemente inócuos como o pólen, o nariz pode panicar. Nesse caso, produz mais muco do que é habitual, deixando-nos com um “nariz a pingar” ou um igualmente intrigante “nariz entupido”, como se um bloqueio nasal com o intruso aprisionado lá dentro resolvesse a situação.
Jardinagem de interior
Um dedo enfiado pelo nariz acima não causa risco de danos na mucosa. Também pode apanhar alguns preciosos pelos nasais e arrancá-los. Embora possamos sentir alguma satisfação orgásmica ao erradicar uma destas ervas nasais, o reverso da medalha é que nos pode matar.
O problema de fazermos a jardinagem do nosso próprio nariz é que provavelmente não nos apercebemos das diferentes variedades de ervas. As pequeninas são as ciliadas, e movimentam o muco para o fundo da garganta, para o engolirmos. Nham. As maiores e mais corajosas, que esticam a cabeça para fora, são conhecidas como vibrissas. Estas servem como porteiras, para desencorajar a entrada de visitantes indesejados. Arrancar qualquer pelo pela raiz resulta numa pequena abertura que pode permitir a entrada de micróbios e, potencialmente, causar uma infeção. Tal como acontece quando se espreme uma borbulha ou quando um piercing infeta. E uma infeção perto do nariz tem um potencial minúsculo para se espalhar da cara para o cérebro (não fica longe), pois está no “triângulo do perigo”. Esta área estende -se desde a cana do nariz até aos cantos da boca e tem uma ligação direta ao cérebro, graças ao seio cavernoso: uma rede de veias por detrás das cavidades oculares que ajudam a escoar o sangue do cérebro.
Ora, é provável que NÃO se morra por causa de espremer uma borbulha, mas para sermos rigorosos, é possível.
Num cenário extremamente raro, uma infeção aqui pode levar a uma “trombose séptica do seio cavernoso”, um coágulo sanguíneo infetado no nosso seio cavernoso, que pode causar problemas de saúde que vão dos abscessos cerebrais aos danos nos nervos faciais ou até AVC.
Toca a descongestionar
Para quem, por vezes, sofre com congestão nasal, a ciência tem alguns truques. Um descongestionante nasal contém um químico que é um vasoconstritor. Este estreita os vasos nos tecidos eréteis). Pode parecer uma comparação aleatória, mas para alguns amantes, o ato de coito provoca congestionamento nasal, conhecido como rinite da lua de mel.
Se preferir não usar químicos para desbloquear um nariz entupido, pode colocar uma toalha por cima da cabeça e respirar suavemente o vapor de uma taça de água quente (mas não a ferver), ou usar um aparelho de irrigação nasal, a que por vezes se chama neti pot. Um aviso que deixo acerca deste tipo de irrigação é que se deve evitar usar água fria da torneira, para evitar o risco de entrarem patogénicos no sistema de circulação sanguínea nariz -cérebro. Já houve casos de naegleria fowleri (uma ameba que come o cérebro) que entraram pelo nariz, portanto, descongestione com cuidado.
Salve-se quem puder
As prateleiras da farmácia podem estar cheias de produtos descongestionantes, mas é sempre possível optar por uma alternativa caseira que é muito mais segura: a hortelã. O ingrediente ativo é o mentol, que atua como um desentupidor natural de narizes.
Em alternativa, podemos sempre dar uma ajudinha à nossa estranha anatomia do nariz por forma a respirarmos melhor. Basta empurrar a língua contra o céu da boca ao mesmo tempo que se faz pressão entre as sobrancelhas durante vinte segundos. A aplicação de uma força ligeira em ambas as áreas ao mesmo tempo mobiliza o osso vómer, que percorre as passagens nasais. Este movimento afrouxa a congestão e permite aos seios nasais escoá-la.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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