“Não conheço mudanças previstas para o modelo, se é que existem, mas fazem falta. Ou melhor, é preciso que o sistema seja reformado e mude prevendo as ULS e dando espaço ao seu cabal desenvolvimento”, defende António Taveira Gomes. O presidente do conselho de administração da ULS de Matosinhos diz que “a solução ULS” é a que mais tem custado a entender ao Ministério da Saúde, SPMS, ACSS e ARS. “Exige-se resultados tendo em conta a organização, mas todos os sistemas de informação, legislação, contratualização e financiamento, não pensam ULS“.
HealthNews (HN) – A recém-criada Direção Executiva do SNS parece apostada em generalizar o modelo ULS a todo o país. Contra esta opção têm-se manifestado as associações e os sindicatos médicos alegando que, por exemplo, não obstante terem sido criadas em 1999 (a de Matosinhos) até agora não se conhece nenhum estudo que prove que as ULS contribuem para melhorar os cuidados de saúde à população. É assim?
ntónio Taveira Gomes (ATG) – A verdade é que não há qualquer estudo que possa provar seja o que for, até porque não consideram toda a informação pertinente, porque não existe, ou não existe capacidade para a sua análise. É verdade que em muitos aspetos as ULS estão muito longe da realização do seu potencial, e hoje ainda assim continuam: um modelo cheio de potencial por explorar. Um exemplo, de muitos: os sistemas de informação que suportam cuidados de saúde primários e hospitalares não comunicam entre si, e são os mesmos desde a sua criação, o SINUS e o SONHO. Para um modelo como as ULS é uma questão central. Os ACES (agrupamento de centros de saúde) não têm uma base de dados comum, exceto em Matosinhos. A contratualização nunca foi feita para cuidados primários e hospitalares simultaneamente; aliás, a contratualização dos cuidados de saúde primários foi sempre feita diretamente pelas ARS, como com todos os ACES. A forma como as ULS foram criadas, sem negociação prévia e estabelecimento de objetivos e avaliação de resultados pré-definidos, fez com que houvesse logo à partida profissionais que nunca estivessem disponíveis por não acreditarem nas mais-valias, e não fazerem nada por isso. Como escrevia Eça de Queiroz, muitos criticam tudo para justificarem não fazerem nada. Mas é verdade que se não houver as alterações adequadas no sistema, nunca teremos mais-valias com o modelo. Depois, as ULS são um grupo muito heterogéneo. Algumas têm hospitais com significativa diferenciação e complexidade, e no caso de Matosinhos, com uma procura externa significativa, acentuada após o livre acesso e circulação dos utentes, além da referenciação dos utentes da Póvoa de Varzim e Vila do Conde.
HN – Recordo que, em 2015, a ERS realizou um estudo sobre o desempenho das ULS, entre 2011 e 2013, e as conclusões são tudo menos positivas…
ATG – É um estudo que tem uma década, mas é verdade, e seria pouco diferente se fosse hoje! As variáveis são as utilizadas no Sistema Nacional de Avaliação em Saúde (SINAS), da ERS, e o estudo não conta com dados muito relevantes, que não foram fornecidos pela ACSS. Além disso, a adesão a este estudo é voluntária, e há entidades não representadas, o que pode interferir nas conclusões. E há dados muito diferentes, e sem grande sentido na forma como são analisados, mas que podem explicar a falta de resultados positivos. Por exemplo, o número de médicos por mil habitantes varia de 0,54 a 2,87 (ULS Litoral Alentejano, ULS de Matosinhos, respetivamente). Se no Litoral Alentejano há falta de médicos, em Matosinhos estão no número necessário para responder à Póvoa de Varzim e Vila do Conde, além da procura por utentes de muitos outros locais, ou para áreas específicas como Medicina Hiperbárica. O grupo das ULS é muito heterogéneo e pequeno, o que cria diferenças médias que podem ser causadas por questões específicas, sem nada a ver com o modelo.
HN – De acordo com esse estudo, “o tempo médio de internamento até à alta, nos utentes das ULS foi superior ao dos hospitais não integrados em ULS”. E também “o número de cirurgias em ambulatório em percentagem do total de cirurgias foi mais baixo nos hospitais pertencentes às ULS versus hospitais não ULS? O mesmo quanto aos atrasos nos pagamentos a fornecedores….
ATG – O tempo médio de internamento é maior, mas as ULS têm menos médicos hospitalares. Muitas vezes sucede que os hospitais das ULS têm de referenciar doentes para níveis de maior complexidade, e a resposta nem sempre é otimizada, já que aqueles níveis “têm os seus doentes”, e a resposta tarda, frequentemente. A ambulatorização dos procedimentos cirúrgicos, ao contrário do que parece, exige diferenciação e casuística extensa, o que na maior parte dos hospitais das ULS pode não ser o caso. Depende ainda dos serviços que cada ULS tem, como oftalmologia, otorrinolaringologia, cirurgia plástica, entre outros. Ou seja, comparamos variáveis com grande diferença de partida. Todo o SNS está subfinanciado, o que naturalmente atinge as ULS. Aliás, o modelo de financiamento per capita veio trazer mais contingências, que dependem da complexidade dos hospitais e dos fluxos de utentes. Todo o SNS tem de estar a funcionar em rede de forma a integrar as ULS como mais-valia.
HN – Enquanto responsável pela ULSM, quais os resultados positivos que destacaria?
ATG – A ULSM tem um caminho pioneiro, de desenvolvimento significativo na integração de cuidados (o grande objetivo das ULS). Criou múltiplas aplicações, antecipando modelos de integração vertical. Internalizamos muitos MCDT, desenvolvemos um ambiente integrado no sistema de informação com acesso a todas as aplicações a partir dos cuidados de saúde primários e hospitalares, temos equipas mistas em várias áreas, como doentes crónicos complexos (em que fomos pioneiros), desenvolvemos circuitos para análises clínicas em que o doente vai fazer colheita à sua unidade de saúde de proximidade, e o seu médico, dos cuidados de saúde primários ou hospitalar, recebe os resultados (e o doente também tem acesso no seu computador ou telemóvel). Temos um plano integrado de cuidados para os doentes mais complexos, editável pelos clínicos, e em que o doente participa valorizando o impacto de cada doença na sua qualidade de vida. Os indicadores referidos em vários estudos, que traduzem a efetiva integração de cuidados, têm resultados favoráveis. Temos dados de saúde gerados durante mais de vinte anos, num ambiente único só possível neste modelo de ULS, disponíveis para estudos de grande escala que podem gerar evidência a partir de dados do mundo real. Iniciámos estudos a este nível com publicações várias a nível global, participação em consórcios internacionais, entre outras. Nesta altura, a ULSM é uma instituição de referência a nível global nesta matéria, o que resulta da integração de toda a informação clínica.
HN – Uma das bandeiras das ULS, é a de que permitem ganhos ao nível da coordenação entre Cuidados de Saúde Primários e Hospital, nomeadamente com redução de hospitalizações desnecessárias. A verdade é que no referido estudo, aponta-se que a única ULS a revelar melhores resultados nesta área foi a do Baixo Alentejo. Afinal, onde está a vantagem da integração entre CSP e hospitais?
ATG – É preciso perceber que as pessoas que residem nas regiões em que há uma ULS cumprem ou não as recomendações como todas as outras. Quando avaliamos os utilizadores frequentes do Serviço de Urgência verificamos que muitos também utilizam frequentemente os cuidados de saúde primários, mesmo onde há ULS. Em muitos locais e populações, a intervenção tem de ser, como verificamos, também sobre determinantes de saúde, que a ULS não resolve isolada. Depois, a criação das ULS não garante o recrutamento dos profissionais necessários (aliás, o mesmo estudo até o mostra), o que acaba por fazer com que o único local para prestação de certos cuidados seja o hospital. Note-se que cinco das ULS estão no interior do país. É óbvio que o apoio de proximidade familiar e institucional é muito mais complicado. O que seria muito mais relevante, era saber que melhorias se registaram nas áreas onde foi introduzido este modelo, em relação ao estado prévio. E há ainda os internamentos sociais, por falta de resposta de outras entidades.
HN – Têm razão os médicos de família quando, desde o início, apontaram que este modelo não iria aportar nenhum valor acrescentado?
ATG – Os médicos de família, nomeadamente nas Unidades de Saúde Familiar, modelo B, no modelo de contratualização atual, não têm qualquer vantagem direta em estar numa ULS. Se o principal critério fosse a criação de valor na vida das pessoas, e elas estivessem realmente no centro, tudo seria bastante diferente. A Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-NA) tem manifestado a sua discordância em relação ao modelo ULS, e a não alterar nada em relação ao estado atual, terão razão. Além disso, a integração vertical de cuidados é possível sem ULS, e até muito mediatizada por quem queira mostrar que as ULS não funcionam.
HN – Um estudo mais recente e que incidiu sobre os potenciais ganhos económicos e em saúde do modelo ULS em cinco destas unidades, concluiu que “pela análise dos dados da ACSS, IP e da ERS parece haver evidência de que o modelo organizativo em ULS não traduz na prática ganhos económicos e em saúde”. Qual a realidade na ULSM?
ATG – Não traduz ganhos nem perdas, sendo um modelo administrativo mais simples. A realidade da Unidade Local de Saúde de Matosinhos é muito particular. É a única ULS que coincide com um concelho. Também é a única que se situa numa área metropolitana, com um hospital de média/elevada complexidade, com intensa disputa de profissionais por parte de outros do SNS e fora dele, com áreas de excelência e de referenciação para todo o território (Medicina Hiperbárica, Cirurgia da Parede Abdominal Complexa, entre outras). Toda a medicina laboratorial está internalizada, bem como parte da imagem médica; temos serviços transversais a toda a ULS, como a Saúde Mental, Cuidados Paliativos, Nutrição, Serviço Social, etc., com muita da sua atividade desenvolvida nas unidades de cuidados de saúde primários. Muita da simplificação do percurso do utente, e da comodidade que proporciona, pode gerar mais custos diretos, e as vantagens económicas e outras vão refletir-se a outros níveis, não avaliados. Mais um exemplo a demonstrar como não se pode gerar ganhos: vários programas financiados obrigam a um número de consultas e MCDT a realizar em meio hospitalar, sob pena de perda de financiamento (ex: bombas de insulina, infeção VIH); o que for realizado de forma integrada com o ACES “não conta”. Ou seja, temos todo o sistema a funcionar como “não ULS” e depois queremos ver diferenças, sem nunca o ter revisto de forma a permitir o desenvolvimento das ULS. É o próprio sistema a estabelecer à partida que as ULS não serão diferentes, porque não vamos deixar.
HN – Este estudo conclui ainda que “na génese das ULS está o objetivo de criar uma melhor interligação dos diferentes níveis de cuidados”, mas que este modelo de governação não aporta este “valor acrescentado que teoricamente previa”. É assim em Matosinhos?
ATG – Em Matosinhos criamos valor com o facto de sermos uma ULS, mas não todo o valor teoricamente previsto. O objetivo é interessante, mas é preciso que o SNS passe a contar com as ULS. Quer dizer, a criação de um modelo administrativo, que não tem autonomia para fazer a contratualização com os seus cuidados de saúde primários, favorecendo a integração, não tem um sistema de informação comum, tem o seu hospital acessível, como todos, para os utentes de qualquer região, o que o torna igual aos outros em listas de espera para consulta e para cirurgia, ainda por cima financiado por capitação (acabando por exigir da ULS de Matosinhos uma espécie de saúde de baixo custo), e com todo o SNS montado em cuidados primários e hospitalares (conceitos que já não fazem sentido em oposição), é um exercício que só serve para dar razão a quem diz que não aporta nenhum valor acrescentado. Depois há a forma como a maioria dos cidadãos tem o seu percurso no sistema, de sentido único, sem redundâncias. O exemplo recente da pandemia e do processo de vacinação, deixou clara a vantagem do modelo, nomeadamente para as pessoas.
HN – Outra das críticas apontadas às ULS é a de que “o número de queixas aumentou em todas as ULS” bem como “o tempo médio de permanência no internamento”, os “custos associados à medicação” e “o número de urgências hospitalares”. Há aqui algum ponto que mostre que com as ULS se conseguem obter vantagens e maior coordenação de cuidados?
ATG – A maior coordenação de cuidados acontecerá se modificarmos a contratualização, se os programas, sistemas, financiamentos forem favoráveis à integração de cuidados e compatíveis com as ULS. No modelo atual, sem sistemas compatíveis, sem iniciativas que valorizem a integração de cuidados, que valorizem os profissionais das ULS, envolvendo-os e motivando-os, tanto uns como outros – utentes e profissionais – ficam frustrados e defraudados em relação à expectativa criada. Daí as queixas … O Hospital Pedro Hispano é o único hospital de todo o sistema de saúde português que tem muito mais elogios que reclamações (a fonte é a mesma ERS). Algumas das razões para isso têm relação com a integração, como na Obstetrícia ou na Pediatria.
A demora média aumentou porque os casos mais simples são tratados em ambulatório (em Matosinhos fazemos cirurgia da obesidade em ambulatório com a imediata consequência do aumento do número de dias de internamento, pois aí estarão apenas os casos “complicados e mais demorados”, por exemplo). Os custos associados à medicação teriam de ter uma análise mais detalhada. As urgências são um bom exemplo: temos cada vez menos doentes com prioridade azul e verde, de Matosinhos, mas mais procura fora de área (de Matosinhos), logo o resultado global é termos mais doentes no Serviço de Urgência. Temos uma coordenação excelente, nomeadamente com as Equipas de Cuidados Continuados Integrados (ECCI), Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), e em todas as áreas, havendo como disse um conjunto de serviços que são transversais aos cuidados hospitalares, primários e continuados.
HN – Não sendo assim, quais as mudanças que estão previstas para o modelo das ULS, se é que existem? Na de Matosinhos, por exemplo…
ATG – Não conheço mudanças previstas para o modelo, se é que existem, mas fazem falta. Ou melhor, é preciso que o sistema seja reformado e mude prevendo as ULS e dando espaço ao seu cabal desenvolvimento. Em Matosinhos, o que propomos é a criação de uma ULS modelo B, ou seja, uma ULS dotada, de raiz, de condições de autonomia que lhe permita desenvolver todos os processos e ter retorno pelo cumprimento dos objetivos de integração, à semelhança do que se passa com as USF modelo B. De preferência, no contexto de uma reforma do SNS.
HN – Uma nota final….
ATG – A solução ULS é a solução que mais tem custado a entender ao Ministério da Saúde, aos SPMS, ACSS e ARS. Para não dizer que alguns responsáveis destas entidades “não gostam” ou são “contra” as ULS. Exige-se resultados tendo em conta a organização, mas todos os sistemas de informação, legislação, contratualização e financiamento, “não pensam ULS”. Ou seja, havendo um modelo estabelecido, que pode não ser perfeito, se em vez de trabalharmos nele valorizando e desenvolvendo as oportunidades que cria, contribuindo para a sua melhoria, pelo contrário, simplesmente o criticarmos, conseguiremos certamente demonstrar o nosso ponto, visto que trabalhamos para ele: o modelo não acrescenta nada (porque não deixamos!). Podemos desenvolver outro modelo, mas se não mudarmos de atitude em relação às inovações (desenvolvidas de forma colaborativa), criando condições para o seu desenvolvimento, ouvindo quem tem experiência do seu exercício, nunca qualquer modelo será bom, e a primeira coisa que conquistará (antes mesmo de nascer) são detratores. Mas, mais que tudo, e como muitos têm dito, faz falta uma reforma do SNS.
Entrevista MMM
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