A casa estava assim, intacta. Como a deixaste (ou como a deixaram, já não se lembra). Aquela amnésia dissociativa permite-lhe estar e alimenta-lhe as funções vitais. E ele ali anda, umas horas melhor, outras pior, com picos tão abruptos que quase chegam a interferir com a sua personalidade. Olha em volta e as coisas mantêm-se iguais, tal e qual como as deixou. Não lhes toca porque sabe que ainda podem ter a sua mão e permite-se fitar.

Perecer leva-nos quase tudo. Quando é um dos nossos – pensa – só leva uma parte. Quando é alguém de quem gostamos muito, leva-nos quase tudo. As memórias, essas, são fiéis e têm o poder de nos reportar a um passado feliz. O problema é que a cabeça é traiçoeira e filtra-nos o pensamento, permitindo-nos subsistir de forma (mais ou menos) saudável. A certa altura lembra-nos sempre dos mesmos momentos (felizes, leia-se!), as mesmas passagens, aquelas em que sorrimos sempre na mesma parte. É quase redutor pensar que tudo se resume a meia dúzia de excertos.

O tempo torna-se comparativo. “Há umas horas isto não estava assim”, transitando para dias, semanas, meses, anos, até que se vai dissipando, tornando-se no amigo capaz de nos fazer conciliar com tudo, até connosco.

A história associada às coisas dá-lhes vida e estas tornam-se pequenos fragmentos que a fazem permanecer cá

Antes, os objectos não passavam disso mesmo. Agora sabe que presenciaram tanto quanto ele e isso une-os, talvez por isso não consiga desfazer-se de nada. Todo o lixo que ali está é, neste preciso momento, essencial e deve permanecer com a mesma inércia de sempre. Com a diferença de que ele agora a aprecia. Juntos enceraram a estante, naquele tempo em que meteram na cabeça que queriam dar vida às coisas antigas, porque velhos são os trapos, aqueles que também não quer deitar fora. A mesma estante que sustentou, anos a fio, fotos antigas que se foram substituindo. Não é desrespeito pelo passado é só porque a vida foi acontecendo.

O problema de ver alguém partir, é o significado que deixou no que fica

O problema de ver alguém partir, é o significado que deixou no que fica. Quem vir de fora, acha que aquelas malas ao canto são apenas umas malas ao canto, que aqueles lençóis não passam disso mesmo ou que aquele carro é um simples meio de transporte. A história associada às coisas dá-lhes vida e estas tornam-se pequenos fragmentos que a fazem permanecer cá. As malas deixam de ser meros objectos ao canto, para se tornarem memórias físicas daquela viagem em que nos declarámos naquela praia com areia grossa, em Espanha. Os lençóis passam a fazê-lo sorrir, por se lembrar do quanto ela os odiava por serem polares: “não gosto de dormir dentro de um peluche”. O carro deixa de ser um meio de transporte para ser a vida entre viagens. O poder de um objecto inanimado o fazer chorar, sorrir ou mesmo fugir, mantém-no vivo com a dor de quem não queria. Pior vai ser se não perpetuarem os significados e a mala voltar a ser uma mala, os lençóis voltarem a ser meros lençóis e o carro se tornar num desvalorizado meio de transporte.

O problema dele ser português é este: poder falar em saudade. Julga sempre que as outras línguas vivem com menos dor por não lhe conhecerem a palavra. É como se o facto de não terem como se referir a ela não lhes avive o sentimento.

Por ora, resta-lhe manter tudo igual e perpetuar aos outros o significado das coisas, sem falar na saudade que teima em aparecer e obnubilar-lhe a vista. Já eu, vou fazer o mesmo com a promessa de que ajudarei a manter as coisas nos mesmos sítios, perpetuando-lhes aquele significado. Encontramo-nos em breve, com a mesma casa arrumada.