«O sistema é cego mas isso tem de mudar», defende Paula Broeiro. Em conjunto com outros profissionais de saúde, a médica de família da UCSP dos Olivais e professora auxiliar convidada da Nova Medical School, propõe a constituição de USF I (no sentido de Inovação e Inclusão), com equipas multidisciplinares, flexibilidade na contratação e uma abordagem dos utentes em função da estratificação do risco. A atribuição de médico de família será efetuada em resposta às reais necessidades das pessoas doentes e não por questões meramente administrativas.
HealthNews (HN) – Em que consiste o “Plano de Emergência para Resposta às Necessidades de Saúde de Primeira Linha dos Utentes sem Equipa de Família Atribuída”, de que é uma das signatárias, em conjunto com outros profissionais de saúde?
Paula Broeiro (PB) – Atualmente existem em Portugal mais de 1,6 milhões cidadãos sem “equipa de família atribuída“ no Serviço Nacional de Saúde (SNS), para além de uma população que nunca é contabilizada porque não tem residência regular no nosso país. Por exemplo, a maioria das grávidas e crianças que observamos na minha unidade são estrangeiras. Como não têm uma inscrição ativa no centro de saúde, não contam como “doentes sem médico”.
Preocupado com a situação, um grupo de médicos e de enfermeiros de família juntou-se para apresentar uma proposta à Direção Executiva do SNS que visa mitigar este grave problema social e de saúde.
A proposta baseia-se na experiência da UCSP dos Olivais, iniciada em 2016, com um modelo de organização diferente que visa responder às necessidades dos utentes sem médico de família, à qual se seguiram, com outra dimensão, as “Vias Verde” de Almada e do Seixal.
Quando iniciei a minha atividade na UCSP dos Olivais, tínhamos 4 000 utentes sem médico de família atribuído. Neste momento, são cerca de
13 000, apesar da equipa, com três médicos seniores, ter sido reforçada com colegas que não tiveram lugar nas unidades de saúde familiar (USF) ou porque queriam trabalhar em part-time, ou porque tiveram problemas de saúde ou simplesmente porque não se reveem no atual modelo organizativo das USF.
Neste momento somos 12 médicos de Medicina Geral e Familiar (sete a tempo parcial), três clínicos gerais, também em part-time, nove enfermeiros e cinco secretários clínicos.
Assim, temos colegas que não são especialistas e que, por esse motivo, não têm lugar nas USF; outros estão a tempo parcial, o que as USF de origem também não aceitam porque complica o seu modelo organizativo; e ainda uma colega avençada…Ou seja, incluímos diversas formas de contratos não contempladas nas atuais USF.
O mundo mudou. Os meus colegas mais velhos por vezes dizem que os jovens de hoje não são iguais aos de antigamente. Pois não! Provavelmente, são iguais aos nossos filhos. Enquanto que, para a geração mais velha, ter um trabalho estável e um bom salário era o suficiente, agora há jovens que, por vezes, preferem receber menos, ter uma organização que os acolhe e tempo para si próprios e para a família. Esta é uma realidade que não tem sido valorizada pelas políticas de Saúde.
HN – Para além da jubilação dos médicos de família, há outros motivos para o aumento do número de utentes sem médico?
PB – Com a pandemia, muitas pessoas que nunca tinham vindo ao centro de saúde, passaram a estar inscritas, e há que considerar a questão da imigração. Felizmente, na UCSP Olivais abrangemos duas freguesias: a dos Olivais, mais envelhecida, e a do Parque das Nações, onde existem muitas pessoas beneficiárias de subsistemas de saúde, como a ADSE, ou de seguros de saúde. Muitos utilizam os serviços pontualmente, por aspetos que só o Serviço Nacional de Saúde pode dar resposta. Por exemplo, a vacinação Covid e as baixas médicas, que só eram passadas pelos centros de saúde.
Neste momento, penso que falta coragem política para perceber que não podemos oferecer tudo a todos, com o risco de duplicação para uns e ausência de cuidados a outros.
Provavelmente, temos de oferecer aquilo de que as pessoas precisam. Alguns só precisam dos centros de saúde para resolver questões pontuais, enquanto as pessoas com problemas de saúde crónicos mais ou menos complexos, precisam de ter continuidade de cuidados. No entanto, o sistema é cego.
Por isso, em 27 de março passado, na conferência da NOVA School of Business and Management intitulada Designing the future in Healthcare, propusemos um modelo de organização diferente a que chamámos “USF I”, no sentido de “Inovação e Inclusão”.
A ideia é criar alguma priorização na atribuição da equipa de saúde. Se não temos médicos de família, também não estamos a rentabilizar as outras profissões de saúde: enfermeiros especialistas de Saúde Materna e Infantil, psicólogos, nutricionistas…Contudo, se conseguíssemos diversificar a equipa, poderíamos assegurar a continuidade de cuidados.
Por outro lado, como referi, muitos médicos jovens preferem trabalhar a tempo parcial. Num sistema de contratação mais flexível, haveria a possibilidade de constituir micro equipa e os utentes saberiam que seriam esses profissionais a assegurar-lhes a continuidade de cuidados.
Na doença aguda, se for uma questão de maior intimidade, é natural que as pessoas prefiram o seu médico; mas se for uma questão pontual, qualquer médico a pode resolver.
Ao querer atribuir um médico às pessoas saudáveis e àquelas que não precisam de nós porque têm outros recursos de saúde para além do SNS, estamos a falhar nas pessoas de mais idade ou de maior complexidade clínica porque não conseguimos abranger toda a gente..
Se nos organizássemos no sentido de identificar as pessoas que necessitam de continuidade de cuidados, provavelmente conseguiríamos dar os melhores cuidados a todos os que deles precisam. Isso implica mudar a forma de pensar e transformar o corporativismo das profissões em trabalho colaborativo, embora admita que é difícil porque temos muitas estruturas representativas das profissões da Saúde que não conseguem dialogar entre si.
HN – Existem modelos organizativos internacionais que sustentem as USF I?
PB – Sim, não estamos a inventar a roda. Para organizar as equipas das USF I e ir ao encontro das novas gerações, baseámo-nos nas “group practices” do Reino Unido, mas adaptando-as à realidade portuguesa.
Em vez de uma inscrição por médico de família, faríamos a inscrição por equipa de família, numa organização em torno de micro equipas de saúde. Teríamos um espaço dedicado à “consulta do dia”, que garantiria o acesso da população aos cuidados de saúde e serviria de ponto para a triagem das pessoas que, eventualmente, necessitem de continuidade de cuidados.
HN – Entraríamos, assim, num processo de estratificação do risco?
PB – Temos de fazer a gestão e o planeamento em Saúde em função do risco. As pessoas saudáveis poderão precisar de nós somente numa situação de doença aguda autolimitada; os doentes de baixa complexidade como, por exemplo, aqueles que têm uma única doença crónica, poderão ser capacitados para a gerir, necessitando somente de cuidados médicos pontuais. Já os doentes de complexidade moderada a elevada precisam de cuidados profissionais multidisciplinares, continuados e integrados e, portanto, deverão ter prioridade na atribuição de uma equipa de saúde.
HN – A UCSP dos Olivais poderia ser uma candidata ao modelo experimental USF I?
PB – Poderia. Estamos dispostos a estabelecer parcerias com a Academia para avaliar a eficiência do modelo e o seu valor social. Mas teríamos de ter as condições que reclamávamos para a resposta aos doentes sem médico: a agilidade da contratação, não só de médicos mas das outras profissões da Saúde, um acréscimo salarial de 60% para ganhar atratividade ou um modelo misto que associe o desempenho a um salário fixo.
Fizemos as contas: se, com os médicos que temos atualmente, passássemos a USF I e um rácio de um médico para 1,6 enfermeiros, com psicólogos, nutricionistas e terapeutas, conseguíamos abranger a população dos Olivais e do Parque das Nações, sem gastar mais do que uma USF Modelo B. Só com os outros recursos adicionados aos médicos existentes e à estratificação do risco.
HN – Tem havido reações às USF I?
PB – Sim, sobretudo da Academia porque, por um lado, desbloqueia a questão de transformar um salário médico por um equivalente de tempo médico. Por outro lado, traz para as USF as outras profissões da Saúde. Não encarece e, pelo contrário, dignifica os cuidados.
Com o envelhecimento da população, temos de trabalhar em equipa cada vez mais, numa postura colaborativa. A minha área de doutoramento está relacionada com a multimorbilidade. Nesse âmbito, acompanhei o trabalho das equipas de Cuidados Continuados Integrados. Na casa dos doentes, precisamos todos uns dos outros. É esse trabalho colaborativo que deve prevalecer em todas as áreas dos serviços de saúde.
HN – Já apresentaram as vossas propostas ao Ministério da Saúde?
PB – Sim, em dezembro do ano passado recebemos a visita de membros do gabinete do ministro da Saúde na UCSP dos Olivais. Ficaram entusiasmados, perceberam as virtudes do modelo mas penso que as nossas propostas poderão esbarrar no Ministério das Finanças, apesar da possibilidade de garantir cuidados de saúde ao máximo de pessoas possível ter um valor social e de saúde que não se mede em euros.
A autora canadiana Barbara Starfield falava muito sobre a questão da desigualdade horizontal e vertical em Saúde: pessoas com as mesmas necessidades não têm acesso aos mesmos recursos e, por outro lado, pessoas com maiores necessidades não dispõem de maiores recursos.
Como referi antes, o sistema é cego. Neste momento, a atribuição de médico de família é meramente administrativa, mas isso tem de mudar. Até por ser uma questão de justiça social, garantia de equidade e de eficiência do sistema.
Entrevista de Adelaide Oliveira
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