A criação generalizada das Unidades Locais de Saúde (ULS), formalizada pelo Decreto-Lei n.º 102/2023, marca uma viragem estrutural no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apresentado como um modelo integrado, próximo e inovador, o novo enquadramento organizativo promete recentrar o utente e fortalecer a identidade do SNS. No entanto, para muitos profissionais das Unidades de Saúde Familiar (USF), este processo tem significado exatamente o contrário: o enfraquecimento de um dos pilares fundamentais da reforma dos Cuidados de Saúde Primários iniciada em 2005 — a autonomia.
O discurso da integração tem, em teoria, virtudes inegáveis. Mas, na prática, o que se observa é uma crescente centralização e uniformização que desconsidera a experiência e a especificidade das USF. Segundo o estudo “O Momento Atual dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal”, promovido pela USF-AN, 54,5% das USF relatam ter perdido a autonomia que lhes era reconhecida. Este não é um dado menor. Reflete um sentimento generalizado de desvalorização entre os profissionais que diariamente asseguram cuidados essenciais às populações.
A maioria dos coordenadores das USF aponta obstáculos claros: dificuldades no modelo de negociação, sobrecarga de trabalho e, sobretudo, a perda de liberdade na constituição das equipas. Este direito — previsto desde o Decreto-Lei n.º 298/2007 e reafirmado no Decreto-Lei
n.º 103/2023 — não é uma formalidade: é uma condição essencial para o funcionamento saudável e eficaz das equipas multiprofissionais que caracterizam as USF.
A autonomia funcional, organizativa e técnica é mais do que uma previsão legal. É o motor da motivação dos profissionais, da coesão das equipas e da qualidade dos cuidados prestados. Quando se limita esse direito, comprometem-se os modelos mais exigentes e inovadores do sistema, como as USF de modelo B, baseadas no desempenho e na responsabilização. E com isso, compromete-se também a capacidade do SNS de atrair e reter profissionais qualificados.
A Associação Portuguesa de Médicos de Cuidados de Saúde Primários (APMGF) e a USF-AN alertam para a urgência de clarificar e regulamentar os mecanismos de contratação e mobilidade dentro das ULS. É uma exigência mínima para garantir que as USF possam continuar a responder com eficácia às realidades locais, sem se transformarem em peças genéricas de um modelo administrativo indiferenciado.
A autonomia das USF não é uma questão de gestão interna. É um instrumento de valorização dos profissionais, de adaptação às necessidades reais das populações e, em última análise, uma das estratégias mais eficazes para reduzir o número de utentes sem equipa de saúde familiar atribuída.
A integração nas ULS pode ser um caminho para um SNS mais coeso. Mas apenas se for construída com base no respeito pela identidade das USF e pelos direitos que estas conquistaram ao longo de quase duas décadas. Ignorar isso é correr o risco de transformar.
Autonomia funcional, organizativa e técnica não é um luxo de gestão, mas a espinha dorsal da motivação, da eficácia das equipas e, ousa-se dizer, da qualidade dos cuidados prestados. Quando se tolhe esse direito em nome da uniformização ou de uma suposta coesão territorial, está-se, na prática, a desvalorizar os modelos de USF B — justamente aqueles que se baseiam na responsabilização e no mérito. Um gesto subtil de desincentivo à excelência.
A verdade inescapável é que a autonomia não é uma nota de rodapé nos manuais de gestão: é uma ferramenta estratégica. Reduzir as USF a meros executores de diretivas superiores, desconectadas do território que servem, é um erro de engenharia sistémica. E se o novo modelo das ULS ambiciona um SNS mais coeso, que o faça não à custa da identidade e dos direitos arduamente conquistados pelas USF — mas sim a partir deles.
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