O Senhor Lemos é reformado de profissão - isto dito pelo próprio. Diz que o tempo livre que tem desde que deixou de trabalhar o consome, fazendo com que tudo passe vagarosamente. Tão vagarosamente que sente que está há mais anos aposentado do que esteve no activo.
O tempo tornou-se relativo e tenta ocupá-lo para não o sentir presente. O início do seu quadro demencial baralha-lhe o fuso horário e agudiza este marasmo. Faz por se distrair e ajuda nas lides domésticas, sempre com a televisão ligada como barulho de fundo, como se de uma banda sonora de um filme do Manoel de Oliveira se tratasse.
- "Posso chamar-lhe professor? Sabe que eu tenho alguma dificuldade em chamar-lhe Presidente..."
O Senhor Lemos focou, de imediato, a sua atenção no pequeno ecrã, por achar descabido uma apresentadora de televisão expor os seus fetiches num programa da manhã. A esposa tentou alertá-lo que era a Cristina Ferreira ao telefone com o Presidente da República. Riu-se. Da suposta mentira e do sentido de humor da esposa, logo pela manhã.
- "Muitas felicidades! Que corra à medida daquilo que sonhou".
Ouviu em silêncio, enquanto se mentalizava de que era o Chefe de Estado a falar. O seu espanto obrigava-o a refutar as palavras do Presidente. Em boa verdade, a medida daquilo que sonhamos é tão relativa como o passar do tempo do Senhor Lemos. Aliás, até se diz que a medida não interessa. Pode ser um sonho pequenino, desde que seja trabalhador. "E nesta idade muito menos", diz ele. É a diferença entre urinar mais perto ou mais longe da sanita.
Mudou de canal e viu a notícia de que a Luciana Abreu estava separada. Se, por um lado, se mostrou receoso pelas filhas, na Páscoa, poderem ter mais padrastos do que amêndoas, por outro estava contente porque só lhe falta um filho para inaugurar uma equipa de futsal na Brandoa. Isto se for o sonho dela (claro!) e tudo correr à medida daquilo que sonhou.
Tornou a mudar de canal. Ouviu a notícia de que um médico do INEM disse que estava indisposto e não terá, por isso, transportado um doente, havendo uma denúncia de que estaria numa tourada. Desabafou com a esposa que um médico dar uma desculpa de que está doente é equivalente a um professor não ir trabalhar e levar uma justificação na caderneta do aluno, assinada pelo encarregado de educação.
Há quem desconfie que o Dr. António Peças seja descendente de António Passas e há rumores de que não quer ter filhos para acabar com esta brincadeira. O Senhor Lemos, no auge do seu declínio cognitivo, espera que, nesta situação, Marcelo Rebelo de Sousa ligue ao touro, desejando que o futuro da tauromaquia corra à medida daquilo que o animal sonhou.
Desligou a televisão com a certeza de que não quer que o Chefe de Estado lhe ligue. Não quer essas banalidades porque se sente especial e, esses, devem ser tratados de forma diferenciadora, não recebendo chamadas do mais alto magistrado da Nação.
O Senhor Lemos acha que está mesmo tudo louco. Já ele, vai mantendo a sanidade com a sua demência. Acreditem que, num mundo assim, está tudo a correr à medida daquilo que sonhou.
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