Antes de se achar intolerante à lactose, o Vieira tornou-se intolerante à vida. Converteu o prazer da sua existência na necessidade de agradar a terceiros, sem interesse nenhum. Sem qualquer intolerância alimentar diagnosticada, forçava a patologia para se sentir incluído (não sabe bem em quê). Acha o leite sem lactose mais doce e julga-o com mais açúcar. Acha que está a errar e não se questiona porquê. Era estúpido serem tantos a enganar-se e isso ainda não ter sido notícia - pensa.

Acha que o mundo mudou por causa da soja. Aliás, só pode ter sido isso. Uma planta que dá leite e bifes, só poupa espaço. É preferível ter uma plantação agrícola do que uma vacaria, quando o resultado é o mesmo. Poupa-se na ração, nas moscas e na ordenha, já que a nível de estrume fica ela por ela. Já para não falar nas doenças profissionais: é que ordenhar quatro tetas por vaca, propicia tendinites.

Quando era pequeno e queria comer um Bollycao, a mãe obrigava-o a comer primeiro um pão com fiambre. Hoje em dia teria de comer um pão, sem glúten, escuro, com sementes de chia, sésamo ou linhaça, com meio triângulo d'"A Vaca Que Ri", light. Perdeu a fome no processo e ficou em jejum, o que até nem se importa. Com esta privação iniciou, sem querer, uma dieta cetogénica que o fez ficar mais na moda do que a moda em que se encontrava antes. É invadido por uma felicidade momentânea que já havia esquecido. Com tanta privação, sente o seu corpo saudável e a sua mente doente. Pensa no receio de ter um corpo saudavelmente deprimido, enquanto um canário lhe cobiça a sua barrita de alpista.

Entra no carro e conduz para o trabalho, ludibriando a eterna fome com umas bolachas de pipocas prensadas, com aquele maravilhoso sabor a ar. São mais as migalhas do que o prazer com que as devora. Tem o cuidado de parar o carro longe do emprego para se forçar a caminhar e perder as poucas calorias que ingeriu. Esquece-se do lanche e volta atrás. Leva um iogurte cheio de zeros no rótulo, todo gelatinoso, que foge da taça com a mesma rapidez com que o Vieira foge de batatas fritas. Não parece iogurte nem gelatina, parece-se mais com a consistência da sua vida. Vai misturar o iogurte com passas. Sim, passas. Aqueles frutos secos que julgava só se comerem na passagem de ano, num esforço em prol da superstição, agora viraram lanche.

Sai do trabalho e volta para o carro. Liga-o e faz-se à estrada. Pára num semáforo vermelho e é interpelado por um toxicodependente. Tem pena dele, ao mesmo tempo que lhe julga a vida e acha a sua condição uma escolha. Abre o vidro e diz que não lhe dá dinheiro. Prefere dar-lhe um pão - com ou sem glúten - porque não sabe onde é que ele vai gastar os vinténs. Arranca no sinal e decide parar na igreja para colocar o seu cristianismo em dia. Lembra-se que se afastou da religião porque também descobriu ser intolerante a Cristo. O facto de não haver hóstias sem glúten tornou-o indirectamente intolerante a Ele. Já a sua fobia social faz com que o seu batimento cardíaco fique acelerado quando o padre diz:

- O Senhor esteja convosco.
E todos assumem:
- Ele está no meio de nós!

Faz por acalmar-se e evita comungar, pelas alterações gastrointestinais, quando subitamente lhe tocam no braço, abanando um cesto com moedas. Pensou que lhe estariam a cobrar a entrada na casa do Senhor, sem direito a bebida de oferta. Quando se apercebe do ofertório diz, de imediato, que não lhe dá dinheiro. Prefere dar-lhe um pão - com ou sem glúten - porque não sabe onde é que ele vai gastar os vinténs.