“Muitas pessoas que procuram ajuda fazem-no não tendo a perturbação de jogo como queixa primordial, mas por outro tipo de comportamentos aditivos e dependências”, adiantou o presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão.

Segundo João Goulão, é “relativamente comum” a associação deste tipo de doença com outras doenças, designadamente do foro psiquiátrico, entre as quais as perturbações da ansiedade, do humor e da personalidade.

Para João Goulão, a adição ao jogo é um problema que merece atenção, “não só em matéria de tratamento, pela elevada dimensão clínica e disfunção psicossocial que frequentemente acarreta, como também no plano preventivo”.

“O jogo é uma atividade que, desde que praticada de modo responsável, não só não apresenta riscos para a saúde como oferece um terreno lúdico e de estimulação bastante relevantes”, afirmou.

Contudo, alertou, “a gradativa alteração dos padrões de socialização durante a infância e a adolescência”, frequentemente mediados pelo jogo on-line, faz antever a possibilidade de desenvolvimento de perturbações aditivas em idades precoces, potencialmente mais prevalentes em indivíduos com outros fatores de vulnerabilidade”.

João Goulão advertiu ainda que o contacto com as novas tecnologias acontece cada vez mais cedo, o que requer ”uma adaptação por parte dos cuidadores e educadores”.

“Estamos, portanto, a falar de um fenómeno cuja abordagem é bastante desafiante e requer uma integração de perspetivas múltiplas do conhecimento, desde as áreas mais clínicas às da educação”, defendeu.

Salientou ainda que não é claro o que determina uma eventual passagem de jogo sem recurso a dinheiro para jogo a dinheiro, mas considera que “poderá constituir um amplo caminho de investigação futura”.

Já no plano do tratamento, há “um caminho de diferenciação progressiva a fazer”, que já foi iniciado com a capacitação e formação dos profissionais do terreno na área dos comportamentos aditivos e dependência sem substância, adiantou.

O Serviço Nacional de Saúde também tem vindo a diferenciar as suas respostas na área dos comportamentos aditivos e dependências

Em todo o país, os Centros de Respostas Integradas, na dependência das Administrações Regionais de Saúde, têm equipas de tratamento especializado em comportamentos aditivos e admitem pessoas com perturbação de jogo.

O presidente do SICAD salienta que, tal como outros vícios, a perturbação de jogo decorre em “múltiplas fases do ciclo de vida e em contextos muito diversificados”.

Nesse sentido, defendeu, o apoio dado a pessoas com este tipo de perturbação ou em risco de a desenvolver deve “mobilizar todo o espectro de respostas em saúde”, mas também de outras entidades de outros ministérios e organizações não-governamentais com intervenção nesta área.

Contudo, ressalvou João Goulão, “a validação científica das intervenções mais eficazes a empreender em situações complexas de perturbação de jogo é ainda relativamente escassa”, pelo que deve acompanhar-se “atentamente a evolução do conhecimento neste domínio”.

Promotores de jogo devem alertar para riscos de dependência

Cartas, jogo, póquer

O coordenador do Instituto de Apoio ao Jogador, Pedro Hubert, defendeu que as entidades que promovem o jogo têm de alertar para os riscos de dependência e informar sobre os tratamentos que existem em caso de vício.

“O que é muito importante é que todas as entidades que promovem e fornecem o jogo, seguindo o que é uma obrigatoriedade legal, tenham tudo muito claro” e deem informações como o impedimento de jogar a quem é menor ou conselhos como "só deve apostar uma quantia pré-fixada ou não deve jogar só para ganhar dinheiro", disse Pedro Hubert à agência Lusa.

Além disso, as entidades que promovem o jogo devem ter associada uma linha de apoio. Contudo, não é isso que se observa: “As entidades que promovem o jogo, sejam casinos, sejam os novos ‘sites’, não aderem a linhas de ajuda, não proporcionam tratamento”, com exceção da Santa casa da Misericórdia de Lisboa, afirmou.

A Santa Casa foi a única que tomou “a iniciativa ao nível do jogo responsável”, por causa dos jogos Raspadinha e Placard, disse o especialista em jogo patológico.

Contactado pela Lusa, o Departamento de Jogos da Santa Casa informou que tem uma Linha de Apoio Jogo Responsável, que “presta auxílio direto” a todos os que tenham algum problema relacionado com o jogo a dinheiro e aos seus familiares ou amigos.

O objetivo “é levar os apostadores a apostar de forma responsável, fazendo  escolhas informadas sobre os seus hábitos de jogo, mantendo sempre presente a componente lúdica do jogo a dinheiro”, refere a Santa Casa, que não divulgou o número de pessoas que pediram ajuda, por ser uma linha “totalmente confidencial”.

Além da Linha, o departamento de jogos disponibiliza ainda uma área de conteúdos sobre Jogo Responsável.

Pedro Hubert sublinhou que, apesar de as pessoas que têm problemas com o jogo serem uma minoria, precisam de “ser protegidas, encaminhadas, tratadas” porque têm “problemas graves”.

Nesse sentido - defendeu - os médicos também devem estar preparados para problemática do jogo compulsivo.

“Mesmo dentro das dependências, o tratamento de alguém que tem problemas, por exemplo, com drogas é bastante diferente de alguém que tem problemas com álcool e ainda é mais diferente, por uma série de razões, de quem tem problemas com o jogo”, explicou Pedro Hubert.

Quem tem problemas com o jogo são, muitas vezes, pessoas licenciadas, empregadas, com “uma parte narcísica grande, com uma parte competitiva de desafio, que obriga a um tratamento muito diferente”, com “especificidades que são muito importantes conhecer”.

Contactado pela Lusa, o presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Ativos e nas Dependências, João Goulão, adiantou que o SICAD tem vindo a promover a capacitação e formação dos profissionais do terreno na área dos comportamentos aditivos e dependência sem substância.

Segundo João Goulão, os Centros de Respostas Integradas, na dependência das Administrações Regionais de Saúde, também têm equipas especializadas em comportamentos aditivos e admitem pessoas com perturbação de jogo.

Estas pessoas são sujeitas a uma avaliação inicial do seu problema, de âmbito multidisciplinar, e é delineado um projeto terapêutico adequado às suas necessidades, explicou o presidente do SICAD, numa resposta escrita enviada à Lusa.

Pedidos de ajuda ao Instituto de Apoio ao Jogador tiveram "crescimento enorme"

Compras de Natal pela Internet

Os pedidos de ajuda ao Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ) concentram-se agora nos jogos online, que registaram um “crescimento enorme”, em vez dos tradicionais problemas relacionados com os casinos, disse o psicólogo Pedro Hubert.

Todos os anos tem vindo a aumentar o número de pedidos que chegam ao instituto, através da linha de ajuda e da marcação de consultas, mas o perfil de quem pede ajuda também tem mudado.

“Há uns anos, a maior parte era jogadores de casino, das máquinas, e agora tivemos um crescimento enorme de pedidos de ajuda” de pessoas com problemas com o jogo online, sobretudo apostas desportivas e póquer on-line, adiantou Pedro Hubert.

Também estão aparecer cada vez mais casos de adolescentes e jovens universitários com problemas relacionados com vídeojogos. Nestas situações, a componente não é tanto o dinheiro, mas o insucesso escolar, os problemas familiares e o isolamento, devido às horas que passam a jogar, muitas vezes 14 a 16 horas por dia, disse o especialista em jogo patológico.

A maior parte dos pedidos de ajuda relativos ao jogo a dinheiro, “seja online ou offline”, é feita pelos familiares (50 a 60%), enquanto nos vídeojogos, “99%, para não dizer 100%, são feitos pelos pais, porque os próprios nunca pedem ajuda”.

Após anos a apostar online e muitas noites mal dormidas a pensar em esquemas para arranjar dinheiro para jogar e recuperar o que já tinha perdido, Rui (nome fictício) decidiu que era altura de pedir ajuda.

Em 2001, tinha então 30 anos, Rui começou a jogar de forma lúdica, “sem qualquer tipo de compulsão”, sendo as apostas desportivas online o seu “jogo de eleição”.

Mais tarde, em 2013, passou por alguns problemas de saúde e conjugais que o levaram a “jogar mais compulsivamente, com valores de apostas superiores”, como contou à Lusa.

Jogava sempre no horário de trabalho. “Se trabalhasse oito horas estaria a apostar e a seguir jogos durante esse tempo”, admitiu.

Na fase mais aguda da compulsão havia dias em que chegava “a jogar, entre ganhar e perder, 500 a mil euros por dia”, contou.

Quando a família descobriu o seu vício, Rui ficou uns tempos sem jogar, “mais por não poder do que por não querer”, e teve de sair de casa onde morava com a mulher e os filhos.

“Fui viver para outra casa e passado um tempo, voltei a recair e foi nessa recaída que cheguei à conclusão que sozinho não conseguia resolver o meu problema de jogo”, contou Rui.

No próprio dia, ligou para os Jogadores Anónimos, falou com “um companheiro”, e foi à primeira reunião. Uma semana depois teve a primeira consulta no instituto.

“Foi aqui que começou o meu processo de recuperação e felizmente as coisas têm estado a correr bem”, disse Rui, contando que, nos primeiros seis meses, frequentou mais de 50 reuniões dos Jogadores Anónimos e tinha consultas semanais.

Está há oito meses sem jogar, mas confessa que “a vontade” permanece. “Eu sou um jogador e hei de ser o resto da vida”, porque “gosto de jogar”.

“O que tenho tentado fazer é munir-me de ferramentas que considero válidas e necessárias para conseguir ter o jogo cada vez mais controlado e distante da minha vida e isso passa muito pelas consultas, pelas reuniões dos jogadores anónimos, pelo nosso querer e pelas estratégias que vamos adotando na vida”, disse.

Uma das estratégias que arranjou foi entregar todas as suas finanças, desde cartões de crédito, acesso a ‘homebaking’ e transferências bancárias a um amigo e receber uma semanada.

O que mais valoriza na recuperação é a tranquilidade que sente quando se deita, “sem sentimentos de culpa, sem pensar no jogo. Não há nada que pague isso”.

Segundo o coordenador do IAJ, as taxas de recuperação, "independentemente de haver uma ou outra recaída", rondam os 60%, valores que vão ao encontro dos de outros centros europeus e norte-americanos.