HealthNews (HN)- Qual a importância de se assinalar mundialmente, desde 2019, o Dia da Segurança do Doente?

Leila Sales (JS)- Assinalar o Dia Mundial para a Segurança do Doente foi uma estratégia da Organização Mundial da Saúde no sentido de comprometer os países, através das suas organizações, das suas instituições de saúde, a marcar esta data na agenda, para poderem neste dia associar-se a diversas iniciativas abordando especificamente o tema. Foi para assinalar uma área muito importante, um problema de saúde pública a nível mundial, e que a OMS tem vindo a reforçar nos últimos 20 anos, no sentido de as instituições concretizarem algo no próprio dia.

HN- E relativamente ao tema deste ano, a literacia do doente para a segurança nos cuidados de saúde, quais são os aspetos-chave sobre os quais importa refletir?

LS- Quando nos referimos ao contexto de segurança do doente, estamos obviamente a forcar-nos prioritariamente nas pessoas a quem são prestados cuidados de saúde, mas é um conceito que envolve todos – envolve a equipa multidisciplinar de saúde, envolve os doentes, envolve todo o ecossistema da saúde, porque a segurança do doente é a segurança de todos nós. Todos nós um dia vamos ser o doente, portanto estamos a falar na segurança de todos.

Esta questão da literacia em saúde é muito importante. Nestes mais de 20 anos de trabalho nesta área da segurança do doente, conseguiu-se perceber que não é possível trabalharmos a segurança do doente sem haver um envolvimento dos utentes, dos doentes, dos clientes. No fundo, dos cidadãos. Este trabalho não pode estar apenas do lado dos profissionais de saúde e das organizações de saúde porque falta uma parte essencial, que é a pessoa para quem estamos a desenvolver todo este trabalho. Nesse sentido, cada vez mais a segurança do doente tem implícito que a pessoa é o centro de tudo. Portanto, nós estamos focados na segurança da pessoa, a pessoa tem que ser chamada a participar com os profissionais na segurança, e é fundamental que haja literacia, os doente saberem os cuidados de saúde que devem ter, como é que o sistema de saúde está organizado, recursos de saúde a que podem aceder, como é que devem controlar a sua saúde, o que é que é espectável que os profissionais de saúde garantam quando vão ser submetidos a qualquer tipo de procedimento, como é que hão de gerir o seu regime medicamentoso e terapêutico. Se não temos uma população que tem literacia, com conhecimentos básicos na área da saúde, não vamos conseguir nem envolvê-los nem fazer passar a mensagem.

Temos de ter a consciência de que é nas suas casas que as pessoas estão maioritariamente, e assim é que tem de ser, a gerir os seus processos de saúde-doença. Só em alguns momentos das suas vidas contactam com as organizações de saúde e, portanto, não podemos estar à espera de trabalhar a segurança dos doentes apenas quando as pessoas recorrem aos serviços de saúde, porque a grande maioria do tempo elas estão no seu contexto familiar, no seu domicílio, e precisam de apoio, supervisão, acompanhamento e de ter ferramentas e conhecimentos que as possam ajudar nesta gestão.

HN- Estamos a seguir um caminho de maior autonomia do doente, com a evolução da tecnologia. Até a hospitalização domiciliária, que muitos defendem, se liga a este desafio. Também devemos ter em conta que tem de ser uma autonomia com consciência?

LS- Claro que temos de preparar a população, capacitar os doentes para o autocuidado e a gestão dos seus processos saúde-doença, dos seus regimes terapêuticos, para que haja sucesso. As pessoas têm que ter estes conhecimentos e têm que ser preparadas e acompanhadas pelos profissionais de saúde, para poderem garantir com segurança estas questões que estamos aqui a discutir, de terem melhor saúde, de terem bons resultados daquilo que são os regimes terapêuticos implementados, de gerirem eficazmente o seu processo de doença e as adaptações que têm que fazer para se capacitarem e adaptarem a estas novas realidades. É um ecossistema que tem que estar todo interligado e, de facto, o cidadão é o elemento central. Por isso é que é tão importante haver cada vez mais, e agora fala-se muito nisso, programas para aumentar a literacia em saúde. É uma responsabilidade de todos, profissionais e organizações de saúde, mas também de toda a sociedade, aumentar a literacia das pessoas.

Em Portugal, temos um problema de literacia – não só na saúde, mas também e muito na saúde. Penso que tem a ver um pouco com uma forma muito paternalista, como fomos gerindo a saúde das pessoas ao longo destes anos: foco nos profissionais de saúde e naquilo que eram as orientações que estes davam e que as pessoas seguiam com pouca decisão. Neste momento essa ideia está completamente abandonada e, de facto, a pessoa é o centro e tem que fazer parte, tem que colaborar com a equipa de saúde sendo um elemento ativo na tomada de decisão e na conscientização sobre o seu processo de saúde-doença, naquilo que são as opções terapêuticas. A pessoa tem que estar envolvida e preparada, para que tenha segurança e não ocorram incidentes de segurança do doente, por falhas na toma da medicação, por quedas que podiam ser prevenidas, pela ocorrência de lesões por pressão, por uma série de situações que podem ser evitadas.

Na literatura está referenciado que pelo menos 50% dos incidentes de segurança do doente que causam dano, denominados eventos adversos, são preveníveis. Isso envolve uma série de questões, de práticas seguras, mas também de literacia das pessoas, numa lógica de estarem mais bem preparadas quando recorrem aos cuidados de saúde, e elas próprias poderem também ser uma barreira de segurança na intervenção com os profissionais de saúde e alertarem para alguns aspetos que os profissionais de saúde, no dia a dia, no decorrer das atividades, podem esquecer. O doente deve ser mais um elemento de alerta para o profissional.

HN- Comentou uma realidade importante, a insuficiente literacia em saúde em Portugal. A presidente da SPLS alertou este ano que cerca de 50% da população tem baixa literacia em saúde. Enquanto enfermeira, como é que tem lidado com esta situação, de que forma é que a tem testemunhado e que desafios daí decorrem?

LS- Esta questão é muito complexa porque na nossa população temos uma grande diversidade de utentes. Temos as pessoas idosas, uma grande franja da população que necessita de cuidados de saúde. De facto, decorrente do processo de envelhecimento, dos níveis de escolaridade e do contexto social onde essas pessoas cresceram, percebemos que têm baixos níveis de literacia em saúde. Muitas vezes é difícil os profissionais de saúde conseguirem chegar a essas pessoas e fazer passar a mensagem, e também faltam profissionais para acompanhar a população idosa nos diferentes contextos onde se encontram, seja nos seus domicílios, seja por exemplo nas ERPI.

Por outro lado, temos em Portugal uma realidade cada vez mais exacerbada que tem a ver com as comunidades de migrantes. Temos uma multiplicidade de comunidades que falam diversas línguas. Muitas vezes também as barreiras linguísticas, até culturais, estão a ser um desafio no dia a dia dos profissionais de saúde que contactam com estas pessoas. Nos contextos clínicos, os profissionais de saúde fazem muitos malabarismos para, com cada pessoa em particular, porque os cuidados são sempre personalizados, conseguirem desenvolver estratégias ou ferramentas para conseguir efetivar a educação para a saúde.

Depois temos a questão da política de saúde. Cada vez mais, as pessoas têm que estar envolvidas na definição das políticas de saúde, por exemplo através de associações de doentes, de grupos organizados que representam doentes, numa perspetiva de darem o seu ponto de vista e poderem ser elementos ativos. Começa-se a falar numa figura que é o patient advocate, que existe noutros países, mas em Portugal ainda não está formalizado. É um facilitador que pode ajudar a pessoa a percorrer o sistema de saúde, a gerir o seu percurso de saúde. Aqui, na Escola, este ano, vamos ter o primeiro curso de Patient Advocacy. Vai começar em outubro, numa lógica de tentar capacitar profissionais e pessoas que fazem parte de associações de doentes para conseguirem de alguma forma criar estas figuras e ajudar as pessoas neste sentido.

O ensino é muito importante. A literacia em saúde tem que começar logo nas escolas primárias, na população infantil e juvenil, a criar conhecimento sobre bons hábitos de saúde. É importante, também, haver as parcerias que já começam a existir entre escolas e instituições de saúde, por exemplo com os cuidados de saúde primários, para profissionais de saúde irem às escolas, enfermeiros de saúde escolar irem às escolas fazer sessões de educação para a saúde. Depois, nos próprios currículos dos profissionais de saúde, dos enfermeiros, fisioterapeutas, médicos, dos técnicos, devem estar incluídos estes módulos, quer da segurança do doente, quer, em particular, estes aspetos da literacia em saúde. Também temos que ensinar e capacitar os futuros profissionais de saúde a gerirem estes processos e dar-lhes ferramentas para ajudarem os doentes. Eles também têm que ser ensinados para poderem ajudar os seus doentes a terem mais literacia em saúde.

HN- Quer falar-nos dos projetos da Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa neste âmbito?

LS- Na Escola, além dos currículos do curso de Enfermagem terem unidades curriculares e módulos que abordam especificamente a segurança do doente, onde está também a literacia em saúde (porque é um aspeto fundamental), também vamos começar a desenvolver este ano um projeto multidisciplinar, através do nosso centro de investigação, de “Mais Literacia, Mais Saúde na Comunidade”, com um projeto de extensão da comunidade através da nossa clínica académica. Vamos ter várias ações de promoção da literacia em saúde, de todas as áreas multidisciplinares da Escola, para a comunidade envolvente e que recorre à nossa clínica académica.

HN- Lançou um livro em conjunto com a enfermeira Susana Ramos e o enfermeiro Fernando Barroso, que se intitula “Guia Prático para a Segurança do Doente”. O que aborda e a quem se destina?

LS- Este livro foi lançado justamente no Dia Mundial da Segurança do Doente, em 2021. Foi a nossa iniciativa para assinalar o Dia Mundial da Segurança do Doente em Portugal. Este livro teve como principal objetivo fornecer um guia prático para profissionais de saúde que no seu dia a dia necessitam de ferramentas e de poderem rapidamente consultar alguma informação sobre esta área da segurança do doente, naquilo que são as suas funções, quer estejam na prestação de cuidados, na gestão, na consultadoria, nos gabinetes de gestão do risco ou nas comissões de qualidade e segurança do doente; mas também dirigido a estudantes na área da saúde, no sentido de poder dar-lhes uma compilação feita por profissionais de saúde portugueses, em português, para portugueses.

Em Portugal, havia um primeiro livro do Professor José Fragata, que fez o prefácio do nosso livro. O livro do Professor Fragata já tinha alguns anos e era mais conceptual. Foi uma primeira abordagem importante e nós agora quisemos trazer uma ferramenta prática. O nosso livro está organizado em três partes. Numa primeira parte quisemos focar aspetos conceptuais essenciais da segurança do doente; numa segunda parte ferramentas para a segurança do doente; e numa terceira parte identificámos quais são os desafios para a segurança do doente.

Um dos grandes desafios é esta questão da literacia em saúde e das estratégias de literacia em saúde que podemos promover na população em geral. É um livro que se destaca por ter uma abordagem multidisciplinar. Fizemos questão de convidar profissionais de saúde de variadíssimas áreas (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de imagem médica e radioterapia, técnicos na área das análises clínicas, professores), pessoas que estão quer na área do ensino, quer na prática de cuidados, quer na gestão das organizações de saúde, para poderem mostrar aquilo que nos últimos 20 anos Portugal tem desenvolvido na área da segurança do doente, desde que a Organização Mundial da Saúde, em 2002, lançou o mote da Aliança Mundial para a Segurança dos Doentes. Tem sido um percurso de 20 anos com muito trabalho feito em Portugal e, nesse sentido, quisemos que algumas pessoas que são peritas nestas áreas pudessem dar os seus contributos nestes capítulos.

Tentámos sempre que os capítulos fossem multidisciplinares, com visões diferentes, e temos também pessoas da área da Psicologia. O capítulo da Literacia em Saúde foi justamente escrito pela Professora Cristina Vaz de Almeida, que é a presidente da SPLS, e pela sua vice-presidente, a Enfermeira Susana Ramos. Consideramos que este livro tem a particularidade de uma linguagem muito simples e prática, adequada àquilo que é a realidade do dia a dia, e em quase todos os capítulos com uma tentativa de dar exemplos práticos, para ser mais fácil de operacionalizar aquilo que estamos a querer descrever teoricamente.

HN- Para terminar, uma mensagem sobre este Dia Mundial da Segurança do Doente.

LS- Uma mensagem que costumo lançar e que lançámos neste livro é a consciência de que a segurança do doente é a segurança de todos nós. Estamos num ecossistema em que em qualquer momento vamos também estar doentes. Neste momento eu até posso estar no papel de profissional de saúde, mas amanhã posso estar no papel de doente. Portanto, esta consciência de que não há dois lados. Estamos todos no mesmo lado porque a segurança do doente é a segurança de todos nós. E que esta questão da segurança do doente é um aspeto primordial em termos da garantia da saúde das pessoas e é um trabalho contínuo, que nunca tem fim. Na segurança do doente podemos sempre acrescentar mais alguma coisa, podemos sempre fazer melhor, fazer mais. Passámos por uma pandemia em que houve novos desafios a serem lançados à segurança do doente. A área da saúde não é uma área estanque e a segurança do doente também não. Estão sempre a acontecer coisas novas e a surgir áreas novas em que temos que trabalhar. Tudo influencia a segurança do doente.

Fala-se muito em qualidade em saúde, mas não pode haver qualidade sem haver o seu pilar principal: a segurança. Temos que partir daí. Digamos que é um primeiro nível que temos que garantir para a seguir podermos aspirar a mais. A mensagem é que temos ainda muito trabalho a fazer. Já fizemos muito, mas temos ainda muito trabalho pela frente. É um trabalho crescente, com responsabilidade e sinergia entre órgãos governamentais, decisores políticos, população em geral, profissionais de saúde, organizações de saúde. Todos temos que trabalhar em conjunto para atingir aquilo que nós queremos, mais segurança do doente e menos incidentes de segurança do doente, numa perspetiva de gerirmos melhor o risco. Nunca conseguimos reduzir o risco a zero, mas tentarmos reduzir ao mínimo possível e as pessoas estarem preparadas para enfrentar estes riscos.

A saúde tem de estar em todas as políticas, em todas as iniciativas. Provavelmente, usar-se mais o conhecimento dos profissionais de saúde para ajudar nesta perspetiva da materialização daquilo que são os conceitos importantes da saúde a nível transversal, e não só estarmos focados nas organizações de saúde. Esta consciencialização sobre a saúde, o que é que é a saúde e a segurança do doente tem que sair das portas das organizações de saúde. Tem de ir para a comunidade. Ainda estamos pouco focados e a trabalhar pouco na perspetiva da prevenção e na preparação de comportamentos saudáveis para bons hábitos de saúde. Tem mesmo de estar em todas as políticas, porque a saúde é o bem mais precioso que queremos preservar.

HN/RA