O glioblastoma (GBM), um dos tipos mais agressivos de cancro cerebral, é um dos maiores desafios da medicina – tanto pela dificuldade no tratamento como pela elevada taxa de letalidade. No Brasil, embora não existam números exatos, estima-se que entre 10 mil e 12 mil novos casos sejam diagnosticados anualmente.

A doença, que representa quase metade (49%) dos tumores cerebrais, tem uma taxa de sobrevivência extremamente baixa, com a maioria dos doentes a viver cerca de 12 meses após o diagnóstico. Por esse motivo, a ciência tem vindo a procurar, há anos, novos alvos terapêuticos para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes, capazes de aumentar a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas afetadas.

O tratamento tradicional envolve cirurgia para remoção do tumor, quimioterapia e radioterapia. O principal medicamento utilizado é a temozolomida (TMZ), um quimioterápico aprovado no final da década de 1990 e que continua a ser utilizado no controlo da doença. O problema é que, apesar de o doente poder ficar alguns meses sem sinais do tumor, o glioblastoma raramente responde de forma completa ao tratamento, voltando a desenvolver-se passados alguns meses – muitas vezes de forma ainda mais agressiva e invasiva.

Foi a partir deste cenário que o grupo liderado pela professora Marilene Hohmuth Lopes, do Laboratório de Neurobiologia e Células Estaminais do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), decidiu aprofundar a investigação sobre o mecanismo de ação das células tumorais que permanecem no tecido cerebral mesmo após o tratamento completo.

Num estudo apoiado pela FAPESP e publicado na revista BMC Cancer, a equipa descobriu que a proteína príon desempenha um papel-chave na biologia do glioblastoma.

“O tratamento do glioblastoma está estagnado há mais de 20 anos. É essencial descobrir novas estratégias para melhorar as hipóteses de recuperação e a sobrevivência dos doentes”, afirma Lopes à Agência FAPESP.

Células estaminais tumorais

Para compreender a importância da proteína príon na biologia do cancro, é necessário primeiro conhecer o mecanismo de ação do glioblastoma. Como explica Lopes, a cirurgia e o tratamento com temozolomida matam as células que se multiplicam rapidamente e formam a “massa” do tumor. No entanto, as chamadas células estaminais tumorais (ou células estaminais de glioblastoma) permanecem no tecido cerebral em estado dormente. Quando voltam a ser ativadas, têm a capacidade de orquestrar novamente o crescimento do tumor.

“É importante lembrar que as células estaminais são muito potentes e têm capacidade de autorrenovação. Permanecem ‘adormecidas’ durante algum tempo mas, quando ‘acordam’, geram novas células que se multiplicam rapidamente e reconstroem toda a hierarquia celular do tumor. E foi isso que nos chamou a atenção”, conta a professora.

Proteína príon

Todas as pessoas produzem uma proteína chamada príon, que desempenha funções biológicas relevantes e extremamente importantes para a manutenção do sistema nervoso central: atua na funcionalidade e plasticidade do cérebro, está envolvida em processos cognitivos (como a formação e consolidação da memória) e contribui para a comunicação entre os neurónios.

“Já estudava esta proteína antes de começar a investigar o seu papel no desenvolvimento do cancro. Quando observámos, em amostras de doentes, que ela estava aumentada em tumores muito agressivos, decidimos compreender melhor a sua relação com o glioblastoma e a sua influência sobre as células estaminais do tumor, que são as responsáveis pela recidiva do cancro”, relata.

Isto é importante porque a proteína príon está presente na superfície das células, o que a torna druggable (um alvo que pode ser modulado por medicamentos). “Isto significa que, ao pensarmos numa possível terapia, é muito mais fácil atravessar a barreira hematoencefálica e atingir uma proteína que está na superfície da célula do que uma que está dentro da célula, por exemplo”, explica a professora.

Nos ensaios in vitro, o grupo observou que, ao cultivar as células estaminais de glioblastoma, havia um aumento significativo dos níveis da proteína príon, sugerindo que esta tem um papel fundamental na regulação dessas células.

Edição genética

Com base nesta descoberta, o grupo utilizou a tecnologia CRISPR-Cas9 para editar o genoma das células estaminais de glioblastoma e bloquear a produção da proteína príon. Com isso, os investigadores conseguiram alterar o funcionamento dessas células, reduzindo a sua capacidade de invasão e proliferação.

“Isso mostrou-nos que a príon é um potencial alvo terapêutico. Mas é pouco provável que uma única proteína, sozinha, seja responsável pelo desenvolvimento da doença. Acreditamos que ela atue em diferentes vias de sinalização, por isso continuamos a investigar outros mecanismos e possíveis parceiros da proteína”, detalha Lopes.

O grupo passou então a estudar a interação da príon com a proteína CD44, um marcador de células estaminais tumorais bem conhecido e envolvido na invasão coletiva nos cancros da mama e colorretal.

“Descobrimos recentemente que uma molécula modula a outra e, agora, procuramos compreender melhor essa interação. Até ao momento, sabemos que a proteína príon pode funcionar como uma estrutura de suporte, criando plataformas multiproteicas de sinalização na membrana das células, para que estas sobrevivam e se proliferem. Quando alterámos a produção dessa proteína [via CRISPR-Cas9], verificámos que a sua ausência compromete a autorrenovação, a migração e a invasão das células tumorais”, salienta.

Apesar dos resultados promissores, ainda não é possível prever quando estas novas descobertas poderão ser aplicadas na prática clínica. “Trabalhamos com investigação básica. Demora muitos anos até conseguirmos transpor estas descobertas para tratamentos. Mas estamos a tentar compreender os mecanismos, a forma como esta proteína regula outros genes importantes na biologia celular e tumoral e de que forma poderá, no futuro, tornar-se um alvo terapêutico. O estudo continua”, conclui a investigadora.

O artigo Prion protein regulates invasiveness in glioblastoma stem cells pode ser lido em: https://bmccancer.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12885-024-13285-4.