O diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA) é ainda um grande desafio pelo grau de complexidade envolvido, exigindo profissionais altamente especializados. O TEA é uma condição de neurodesenvolvimento, cujos sintomas associados variam consideravelmente. A incidência, segundo o último relatório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, é de um caso para cada 36 pessoas e não há um marcador bioquímico que permita determiná-lo com precisão. Propor uma metodologia quantitativa para diagnóstico foi a sugestão dada por investigadores num artigo publicado na revista Scientific Reports. O trabalho baseou-se em dados de imagens cerebrais de 500 pessoas, sendo 242 pertencentes ao espectro.

A ideia foi obter o diagnóstico com auxílio de técnicas de aprendizado de máquina a partir dos dados de redes cerebrais. “Iniciámos o desenvolvimento de um método recolhendo essas imagens por exames de ressonância magnética ou eletroencefalograma”, conta Francisco Rodrigues, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), em São Carlos, e um dos autores apoiados pela FAPESP. “Comparando mapas de pessoas que apresentam ou não TEA, verificamos que seria possível fazer o diagnóstico usando essa metodologia.”

Os investigadores abasteceram um algoritmo, que é um método de aprendizagem de máquina, com esses “mapas”. A partir dos exemplos aprendidos, o sistema pôde determinar quais alterações cerebrais estavam associadas ao espectro. A acurácia dos testes foi superior a 95%.

Muitos trabalhos recentes propõem métodos para o diagnóstico de TEA com base em aprendizagem de máquina. No entanto, concentram-se em apenas uma métrica estatística, sem levar em consideração a organização da rede cerebral, que é o diferencial deste estudo, destacam os autores. O mapa do cérebro, também chamado de rede cortical, mostra como as regiões do órgão estão conectadas. Essas redes começaram a ser estudadas há cerca de 20 anos e têm oferecido uma nova visão sobre neurociências. “Assim como uma rodovia com interrupções altera o tráfego em uma região, o cérebro com alterações leva a mudanças no comportamento”, explica Rodrigues.

Pelas imagens obtidas nos exames de ressonância é possível verificar mudanças em determinadas regiões do córtex, assim como o facto de que as redes cerebrais de pacientes mostram mais segregação, menos distribuição de informações e menos conectividade. Essas regiões estão envolvidas em processos cognitivos, emocionais, de aprendizagem e memória.

“Até há alguns anos, pouco se sabia sobre as alterações que levam ao surgimento de sintomas. Hoje sabe-se, por exemplo, que circuitos cerebrais alterados em pacientes com TEA podem estar relacionados a alguns comportamentos. No entanto, a maioria dos estudos anatómicos mostra que as alterações são pouco visíveis, o que nos indica a dificuldade de diagnosticar os casos mais leves. Portanto, nosso trabalho é um passo importante em direção a novas metodologias que permitam um melhor entendimento dessa neurodivergência”, explica o professor.

A metodologia ainda está em desenvolvimento e levará anos para ser implementada. No entanto, é um passo importante para determinar as diferenças no cérebro e poderá, no futuro, ser usada para auxiliar os especialistas, principalmente nos casos em que há dúvidas com relação ao diagnóstico do paciente.

Aplicações variadas

Rodrigues explica que o trabalho ainda é um pequeno passo para entender como o TEA está relacionado às alterações no cérebro e que muitos estudos ainda são necessários para que essa metodologia de diagnóstico automático seja colocada em prática. O mapeamento do cérebro é um passo importante não apenas para a identificação de autismo, mas também de outras condições. Trabalhos anteriores mostram que esses mapas podem ser usados para a detecção de esquizofrenia também com grande precisão.

“Há uma década iniciamos o desenvolvimento de novos métodos para identificação de doenças mentais e verificamos que a esquizofrenia é um transtorno cujo diagnóstico pode ser muito aprimorado com o uso dessa tecnologia, que usa redes do cérebro e inteligência artificial. Aplicamos também essa metodologia recentemente no caso de Alzheimer e verificamos que é possível um diagnóstico automático preciso”, cita Rodrigues, referindo-se a estudo publicado no Journal of Neural Engineering em 2022.

Ainda há muitos desafios envolvidos, pois as bases de dados são pequenas e sua coleta não é simples. Mas, como metodologia geral, pode ajudar no entendimento de diversas condições – e um dos objetivos do grupo de pesquisadores é ver a relação entre elas.

“Quão semelhante, em termos de alterações cerebrais, são a esquizofrenia e o Alzheimer? Se conseguirmos relacionar os transtornos, talvez possamos desenvolver novos medicamentos e tratamentos similares para diferentes condições, ou mesmo adaptar tratamentos de uma condição para outra. Ainda estamos longe desse resultado, mas o que está por vir é bastante promissor”, destaca o cientista.

Os pesquisadores esperam que, ao conhecer melhor como as alterações no circuito cerebral influenciam o comportamento, torne-se possível tratar os pacientes de forma mais humana e eficiente, direcionando melhor as políticas públicas.

A complexidade do tema pode ser aferida pelo alto nível de interdisciplinaridade da pesquisa. O grupo foi constituído por físicos, estatísticos, médicos e neurocientistas de diferentes centros no Brasil, França e Alemanha. Foram considerados dados médicos coletados por neurologistas, algoritmos de inteligência artificial desenvolvidos por físicos e estatísticos, além de interpretação e análise das alterações cerebrais feitas por neurocientistas.

O trabalho foi parte da tese de doutorado de Caroline Alves, cuja formação envolve física, ciências físicas e biomoleculares e ciência da computação. A FAPESP apoiou também outros dois autores da pesquisa, por meio de Bolsas de Doutorado para Aruane Pineda e Kirstin Roster, ambas orientadas pelo professor Rodrigues.

O artigo Diagnosis of autism spectrum disorder based on functional brain networks and machine learning pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-023-34650-6.