A Organização Mundial da Saúde considera a infertilidade um problema de saúde pública e coloca ênfase no acesso dos cidadãos aos tratamentos de fertilidade. Esta é, como se sabe, uma das áreas mais reguladas no contexto médico. Não basta regulamentação, é preciso que o cidadão tenha acesso efetivo a estes tratamentos. Portugal é um bom exemplo dentro desta realidade?
Sim, Portugal é um bom exemplo da realidade que descreve. O nosso país encontra-se atualmente em oitavo lugar na União Europeia, conforme o Atlas Europeu de Políticas de Tratamento de Fertilidade 2024. Esta é uma iniciativa da associação europeia de doentes com infertilidade em conjunto com várias organizações de apoio a direitos reprodutivos.
A infertilidade é uma doença com uma prevalência que se estima atingir mais de 17% da população em idade reprodutiva. Este número é eloquente, mas não nos dá a escala de angústia que abarca. Para além das medidas clínicas e legislativas que visam tratar a infertilidade, considera que estamos a fazer o suficiente para lidar com o impacto emocional e psicológico que esta condição provoca nas pessoas e nas famílias?
De longe. De acordo com os últimos dados, existem apenas 1100 psicólogos no SNS, num país em que um quinto da população tem problemas de saúde mental. Este número é, por si só, ilustrativo da escassez de profissionais e da incapacidade dos mesmos em dar respostas às diversas áreas que necessitam da sua intervenção, nomeadamente a área da infertilidade. A necessidade de abordar o impacto emocional dos tratamentos de fertilidade deve partir dos profissionais de saúde que acompanham o utente, no momento do diagnóstico.
O apoio psicológico deve ser integrado no tratamento, reconhecendo a infertilidade como um evento de vida disruptivo, exigindo uma gestão emocional adequada ao longo de todas as fases, como por exemplo numa fase inicial, promovendo a normalização de estados emocionais, a expressão de preocupações, dúvidas ou expectativas, a par com a receção de apoio e aceitação, constituindo um espaço privilegiado para esse efeito.
Noutras fases do tratamento, as consultas poderão focar-se na ajuda no processo de tomada de decisões ou na clarificação de valores, quando existe o confronto com a necessidade de fazer escolhas, como o recurso a gâmetas de dador ou o término do tratamento.
Alguns casais com problemas de fertilidade sentem-se com frequência culpados, revoltados, deprimidos e com sentimentos de inadequação. Quando estas respostas emocionais persistem, acabam por se intensificar, atingindo relevância clínica, relatando ansiedade e desenvolvendo sintomas depressivos.
Um diagnóstico de infertilidade afeta cada membro do casal à sua maneira, podendo também ter um impacto negativo na vida a dois.
Alguns casais com problemas de fertilidade sentem-se com frequência culpados, revoltados, deprimidos e com sentimentos de inadequação.
Em Portugal, há números que sustentem que está a aumentar o número de casais que procura tratamentos no âmbito da Procriação Medicamente Assistida (PMA)?
De acordo com os últimos dados disponíveis, os dados globais da atividade dos Centros de PMA em 2022, houve um aumento do número de ciclos efetuados, o que poderá ser indicador de uma maior procura destas técnicas.
No caso da FIV (Fecundação In Vitro) + ICSI (Injeção Intracitoplasmática) a fresco, houve 7349 ciclos, mais 759 do que em 2021, o que corresponde a um acréscimo de 10,3%. Nos ciclos com EZ dador (FIV/ICSI a fresco), contabilizaram-se 804, mais 109 do que em 2021, o que corresponde a um acréscimo de 15,7%. Já no caso dos ciclos com ovócitos de dadora (FIV/ICSI a fresco), registaram-se 1412, mais 86 do que em 2021, o que corresponde a um acréscimo de 6,5%. Nos ciclos com dupla doação (FIV/ICSI a fresco), houve 270, mais 44 do que em 2021, o que corresponde a um acréscimo de 19,5%. Por fim, no caso de TEC (Transferência de Embriões Criopreservados) com embriões doados, os registos apontam para 237, com 91 gestações e 60 partos de recém-nascidos vivos, o que corresponde a um acréscimo de 38,6%.
Preside ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. Quer, sucintamente, definir quais as atribuições deste órgão e sublinhar alguns dos momentos-chave da vossa atividade?
Conforme determina o art. 30º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) é a autoridade competente, independente e especializada, legitimada para se pronunciar sobre as questões éticas, sociais e legais da PMA.
Do mesmo modo, o CNPMA tem por missão regular, fiscalizar e supervisionar a atividade de procriação medicamente assistida e os Centros de PMA. O CNPMA é dotado de múltiplas atribuições de regulação, supervisão, regulamentação e caráter científico.
No que diz respeito à regulação e supervisão, o CNPMA estabelece as condições em que devem ser autorizados os Centros onde são ministradas as técnicas de PMA, bem como os Centros onde sejam preservados gâmetas ou embriões; acompanha a atividade dos Centros, fiscalizando o cumprimento da presente lei, em articulação com as entidades públicas competentes; dá parecer sobre a autorização de novos Centros, bem como sobre situações de suspensão ou revogação dessa autorização e sobre o destino do material biológico resultante do encerramento destes; e também dá parecer sobre a constituição de bancos de células estaminais embrionárias ou equivalentes.
Além disto, também é da responsabilidade deste órgão centralizar toda a informação relevante acerca da aplicação das técnicas de PMA, nomeadamente registo de dadores, beneficiários e crianças nascidas.
Com referência à regulamentação e ao caráter científico, o CNPMA estabelece orientações relacionadas com o DGPI (diagnóstico genético pré-implantação) e aprecia, aprovando ou rejeitando, os projetos de investigação que envolvam embriões.
Como percebido na resposta anterior, a vossa atividade é de grande amplitude. Contam com as condições ideais para desenvolverem o vosso trabalho?
Apesar de toda a responsabilidade que desde o início lhe foi conferida, o CNPMA, ao contrário das restantes entidades externas que funcionam na esfera da Assembleia da República, não dispõe ainda de um verdadeiro Estatuto que, por exemplo, discipline acerca da sua natureza e regime jurídico, modo de organização e funcionamento, condições de exercício dos seus membros e regime de trabalho do seu pessoal.
Veja-se que a já referida Lei, de 26 de julho, que procedeu à criação do Conselho dedica unicamente quatro artigos a este assunto, com enumeração de competências, composição e mandato, funcionamento e dever de colaboração de outras entidades.
Isto é tão mais gravoso, quanto ao longo dos anos as competências do Conselho foram sendo sucessivamente alargadas pelas alterações à Lei já aqui citada, de que se destaca as competências conferidas relativas à gestação de substituição e, mais recentemente, pela publicação do Regulamento (UE) 2024/1938, de 13 de junho de 2024, que estabelece normas de qualidade e segurança para as substâncias de origem humana destinadas à aplicação em seres humanos, o que tem efeitos nas competências do CNPMA e implica necessariamente um reforço adicional dos seus recursos.
Enquanto Presidente do CNPMA, tem alertado para a necessidade de uma regulamentação ética e eficiente na área da PMA. Considera que Portugal está suficientemente preparado para lidar com dilemas éticos complexos que emergem com os avanços tecnológicos, como a edição genética de embriões ou a inteligência artificial no diagnóstico de infertilidade?
Estou certa de que essas áreas, que revestirão enorme importância no futuro, serão acompanhadas pelas instituições com responsabilidades no âmbito da definição de enquadramentos e normativos éticos. No que diz respeito à PMA, o CNPMA tudo fará para garantir que a aplicação prática dos conceitos referentes aos dois tópicos enunciados na questão ocorrerá dentro desses enquadramentos.
No entanto, relembro que ambos os campos são muito mais latos do que apenas a sua relação com a PMA. É o caso, por exemplo, da edição genética, que, necessariamente, terá que ser matéria de definições com o contributo de organizações/instituições na área da genética humana.
No entanto, estamos longe de resolver todos os problemas da PMA no SNS. Para 2025, a grande notícia seria a aprovação da regulamentação da gestação de substituição.
Olhemos para este ano de 2025 no que toca à área da PMA. Os medicamentos para a infertilidade passaram a ser comparticipados em 90% e também assistimos à comparticipação nos fármacos para a endometriose. Julgo que serão boas notícias. Mas, qual seria a grande notícia para esta área que gostaria de ver substanciada no presente ano?
São boas notícias, de facto porque a medicação implica um esforço financeiro substancial para muitos beneficiários. No entanto, estamos longe de resolver todos os problemas da PMA no SNS. Para 2025, a grande notícia seria a aprovação da regulamentação da gestação de substituição e a aprovação de medidas de reforço da capacidade do SNS para dar resposta em tempo útil às necessidades destas pessoas que sofrem de uma doença e têm direito ao seu tratamento.
A regulamentação da gestação de substituição continua na gaveta. A lei está aprovada, carece de regulamentação. O prazo legal já foi ultrapassado. Gostaria de a ouvir sobre esta questão.
O CNPMA bateu-se sempre na defesa dos direitos destas mulheres que sofrem duma doença grave que as impossibilita de gerar uma criança e não têm alternativa senão o recurso a uma gestação de substituição. Estivemos ativamente envolvidos na elaboração da legislação e em todo o processo posterior. Há cerca de dez anos que este processo sofre avanços e recuos, com sucessiva frustração das legítimas expectativas destas mulheres e destes casais.
O Governo anterior avançou com uma regulamentação que não mereceu a aprovação do CNPMA e, posteriormente, do Senhor Presidente da República. O atual Governo ainda não deu sinais de querer avançar, apesar de já termos reunido com o Gabinete da Senhora Secretária de Estado, para a alertar para esta urgência.
É uma lei da Assembleia da República que não foi respeitada nem cumprida pelos sucessivos Governos. A falta de regulamentação duma lei da Assembleia da República é muito grave e atentatória do estado de direito democrático. Não nos conformamos e temos vindo a fazer o que está ao nosso alcance para reparar esta situação, infelizmente até agora, sem sucesso.
Falemos da acessibilidade regional à PMA. Neste momento, as regiões do Algarve e Açores não possuem um centro de PMA; também a Madeira viveu até há pouco tempo constrangimentos. Que razões encontra para o Estado não cumprir para com o que a lei estipula?
Em toda a região do Alentejo e Algarve não existe nenhum centro público de PMA. O Arquipélago dos Açores também não dispõe de nenhum centro público. Há falta de vontade política para dar resposta a estas necessidades da população. Há uma enorme carência de recursos humanos nesta área tão específica da medicina e sabemos que os recursos financeiros também são escassos e devem ser alocados a áreas prioritárias.
No entanto, é tempo de encarar a PMA como uma prioridade. A natalidade deve ser uma prioridade, as famílias devem ser uma prioridade, os direitos fundamentais das pessoas que sofrem da doença de infertilidade devem ser uma prioridade e devem ser respeitados.
Em toda a região do Alentejo e Algarve não existe nenhum centro público de PMA. O Arquipélago dos Açores também não dispõe de nenhum centro público.
Os centros de PMA que existem conseguem suprir a demanda dos casais que os procuram?
Portugal dispõe de um total de 28 Centros de PMA, dez públicos e 18 privados. Apenas dez centros públicos para 17% de uma população em idade fértil que sofre de infertilidade afigura-se um número muito reduzido. A crescente abertura de centros privados em Portugal demonstra à sociedade que há uma crescente procura e que o SNS não consegue dar a resposta necessária.
Relativamente às listas de espera nos Centros públicos, o CNPMA não tem acesso a esses dados, são uma competência do Ministério da Saúde.
Anima-a saber que, para 2025, o Governo tenha anunciado que vai alargar a capacidade de resposta dos Centros de PMA, ou teme que seja um mero anúncio de intenções?
Todas as perspetivas de melhoria da capacidade de resposta do SNS deixam-me animada e sobretudo esperançada. Também neste momento estão em trabalhos de especialidade, na Assembleia da República, vários projetos de resolução que visam a melhoria e alargamento do acesso à PMA no SNS. O Governo também já tomou algumas medidas positivas nesta área. Por isso, estou moderadamente otimista. Espero, de facto, que estas intenções se concretizem e os direitos destas pessoas sejam efetivamente respeitados.
De que forma tem atuado o CNPMA no sentido de alertar os decisores políticos para estas carências?
A carência de recursos com que os Centros Públicos se têm debatido ao longo dos anos foi sempre exposta pelo Conselho, junto das diferentes entidades, nomeadamente Assembleia da República, através das audiências/audições na Comissão Parlamentar de Saúde; Ministério da Saúde, tanto em audiências com os Ministros em vigência como com os seus Secretários de Estado da Saúde; através dos Relatórios sobre a atividade desenvolvida pelos Centros de PMA, assim como nos Relatórios de atividade do próprio Conselho; e através da participação do Grupo de trabalho para análise e apresentação de propostas de melhoria no acesso no setor público na PMA.
A carência de recursos com que os Centros Públicos se têm debatido ao longo dos anos foi sempre exposta pelo Conselho, junto das diferentes entidades.
Tem recorrentemente alertado em entrevistas para a “proporção desmesurada” de doações de gâmetas feitas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde se assistiu à abertura de centros afiliados para doação, e nos privados. A que se deve essa desproporção e, o que poderíamos fazer para inverter este cenário?
Há um enorme défice de doação de gâmetas no Banco Público de Gâmetas (BPG), que contrasta com o número de doações nos centros privados.
Para esta desproporção contribuem a falta de visibilidade pública do BPG e a falta de campanhas de informação e sensibilização para a necessidade de doações; a falta de autonomia do Banco Público de Gâmetas na organização do Centro Hospitalar Universitário do Porto; e a carência de recursos humanos e de equipamento laboratorial no BPG e Centros Afiliados.
Para inverter este cenário, será importante promover o BPG e os Centros afiliados junto da população, com o objetivo de captar potenciais dadores, sensibilizando-os para o valor da dádiva altruísta e desinteressada ao BPG; aumentar as equipas no BPG e Centros afiliados para a atividade de doação de gâmetas; aumentar a flexibilidade na marcação de consultas; estabelecer horários de atendimento mais alargados; e reforçar o papel incontornável dos Conselhos de Administração dos Hospitais ou Centros Hospitalares na capacitação e na viabilização do financiamento adequado e atempado dos Centros de PMA.
O aumento de famílias monoparentais e casais LGBTQ+ a procurar PMA desafia paradigmas tradicionais. Como vê a necessidade de adaptar políticas e práticas clínicas para garantir equidade e inclusão para todos os modelos familiares?
As soluções a que se chegue para conseguir aumentar o número de doações no Serviço Nacional de Saúde beneficiarão também estes destinatários, pois a lei proíbe a existência de tempos de espera distintos para os tratamentos de PMA, em função do beneficiário ser casal de sexo diferente, casal de mulheres ou mulheres sem parceiro ou parceira, sem prejuízo das prioridades estabelecidas com base em critérios objetivos de gravidade clínica.
Em termos de práticas clínicas, não vemos necessidade de qualquer adaptação, uma vez que a equidade e inclusão para todos os modelos de família são respeitadas, não havendo qualquer diferenciação na aplicação das técnicas.
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