A expressão da livre opinião é, antes de tudo, um exercício de responsabilidade cívica, baseado nos pressupostos de objetividade dos factos e na observância de princípios e valores na apreciação das situações, independentemente dos atores em presença.
A questão dos novos estatutos da Ordem dos Médicos (OM) constitui uma matéria de decisiva importância para o próprio futuro da classe médica.
Essa importância deveria ter sido encarada como uma batalha inadiável na superação da pressão que o poder político tem vindo a desenvolver por vários governos para nos enfiar num gueto onde sejamos meros números produtivos, subservientes aos vários lóbis e roubados das suas competências técnico-científicas.
No fundo, o objetivo de vários círculos de interesses e de poderes é liquidar a classe médica e transferir as suas competências profissionais para outros setores indiferenciados e que cumpram diversas tarefas a um custo muito mais baixo.
A alteração dos estatutos da OM é um exemplo muito elucidativo da radicalização extremista da essência do neoliberalismo que visa desregular tudo ao que dificulte os seus negócios espúrios.
Ora, o governo anterior, presidido pelo Dr António Costa, corporizou o ataque mais descabelado contra a OM que nem durante o regime ditatorial derrubado em 25 de Abril de 1974, houve descaramento político para tal, mesmo quando nos últimos 20 anos da sua vigência a Ordem se tinha tornado uma entidade ativa e corajosa em defesa da dignidade da profissão e da exigência da criação de um serviço nacional de saúde.
A função primordial da OM é assegurar a autorregulação da profissão médica e neste capítulo nunca se verificaram acontecimentos que pudessem, ao longo de décadas, suscitar dúvidas sobre esta sua função, que exigissem medidas firmes em termos de um novo enquadramento legal destinado a garantir a qualidade da profissão e a defesa dos interesses dos doentes.
Simultaneamente, a existência das carreiras médicas como mecanismo de garantia da qualidade da profissão, contribuiu para que a escola médica portuguesa pré e pós graduada fosse progressivamente considerada no plano internacional com uma das mais qualificadas.
A formação médica no nosso país é a que possui maior transparência, objetividade e estruturação legal no contexto internacional.
Não é por acaso que os países europeus que necessitam de colmatar carências de médicos nos seus serviços de saúde, é ao nosso país que se dirigem em primeiro lugar, promovendo sessões em unidades hoteleiras para realizar entrevistas de recrutamento.
Neste contexto muito claro de resultados inquestionáveis, o governo do Dr António Costa enveredou por um ataque inqualificável a um setor profissional que tem sido um excelente exemplo que prestigia o nosso país.
Já não tinha bastado ter chamado cobardes a um grupo de médicos em plena pandemia do Covid e ter impedido o desenvolvimento de uma reforma dos serviços de saúde pública, ainda enveredou por este confronto através de alterações aos estatutos da OM que, no fundo, visam introduzir fatores paralisantes do seu funcionamento e a ingerência de pessoas que nada sabem de medicina, mas que estão lá para tomar decisões importantes.
Em Junho de 2024, a comunicação social divulgou informações de que a Comissão Europeia só tinha decidido desbloquear 714 milhões de euros do PRR, exigindo como contrapartida reformas no sector da saúde e nas profissões reguladas.
Afinal, os médicos parecem ter servido como moeda de troca para mostrar um “bom aluno”, “ obediente”, merecedor de um alto cargo no contexto institucional europeu.
A Lei nº 9/2024, de 19 de Janeiro, introduziu as referidas alterações estatutárias.
Nesse sentido, existem 2 novos órgãos que merecem particular destaque: o Conselho de Supervisão e o Conselho Disciplinar Nacional.
Importa destacar os seguintes aspetos do seu articulado:

Artigo 62.º
O conselho de supervisão é composto, para além do provedor dos destinatários dos serviços, por mais 15 membros, dos quais:
a) Seis são médicos com inscrição em vigor na Ordem e eleitos pelos médicos inscritos na Ordem;
b) Seis são oriundos de estabelecimentos de ensino superior que habilitem academicamente o acesso à profissão médica, não inscritos na Ordem e eleitos pelos médicos inscritos na Ordem;
c) Três são personalidades de reconhecido mérito, com conhecimentos e experiência relevantes para a atividade da Ordem, não inscritos e cooptados pelos membros referidos nas alíneas anteriores, por maioria absoluta, através de voto secreto.

Na primeira reunião do órgão, os membros do conselho de supervisão elegem o presidente de entre os não médicos através de voto secreto.

Artº 63º

1 – Compete ao conselho de supervisão:
a) O exercício de poderes de controlo, nomeadamente em matéria de regulação do exercício da profissão;
b) Sob proposta do conselho nacional, a fixação de qualquer taxa relativa às condições de acesso à Ordem;
c) Acompanhar regularmente a atividade formativa da Ordem, em especial a atividade de reconhecimento de competências obtidas no estrangeiro, designadamente, através da apreciação anual do respetivo relatório de atividades e da emissão de recomendações genéricas sobre os seus procedimentos;
m) Apreciar e decidir os casos controvertidos e apreciar os casos omissos do presente Estatuto e dos regulamentos da Ordem;
o) Emitir parecer vinculativo sobre a criação, composição, competências e modo de funcionamento dos colégios de especialidade;

Conselho Disciplinar Nacional:
Artº 64º – B
O conselho nacional de disciplina é um órgão jurisdicional e independente da Ordem com funções disciplinares.
O conselho nacional de disciplina é composto por 17 membros, dos quais 5 são personalidades de reconhecido mérito com conhecimentos e experiência relevantes para a atividade médica, não inscritos na Ordem.

Artº64º – C

1 – Compete ao conselho nacional de disciplina:
a) Decidir, em matéria disciplinar, os recursos interpostos das decisões proferidas pelos conselhos disciplinares regionais;
b) Decidir os processos disciplinares em que sejam arguidos o bastonário, os membros do conselho de supervisão e do conselho nacional e o presidente da mesa da assembleia de representantes;
c) Uniformizar a atuação dos conselhos disciplinares regionais;
d) Deliberar sobre impedimentos e perdas do mandato do cargo dos seus membros e suspendê-los preventivamente, em caso de falta disciplinar, no decurso do respetivo processo;

Com a leitura destes artigos, podemos avaliar bem o que está em causa.

No caso do Conselho de Supervisão, que possui um papel central nas competências da OM, a sua composição dispõe de 16 membros e 10 não são médicos.
O próprio presidente não pode ser médico e isto é um ultraje nunca visto à nossa profissão.

Ora, o Conselho de Supervisão exerce os poderes de controlo em matéria de regulação do exercício da profissão, reconhece as competências obtidas no estrangeiro e emite parecer vinculativo, pasme-se, sobre a criação composição, competências e modo de funcionamento dos colégios de especialidade.

Ficam quaisquer dúvidas de que a OM pode ser uma Ordem qualquer mas que já não é dos médicos?

Perante esta enorme gravidade, como compreender a posição da atual direção da OM e das restantes organizações médicas nos vários patamares de competência específicas há mais de 1 ano?

Desde o início que deveriam ter sido desencadeadas amplas movimentações por parte da OM, realizando assembleias sub-regionais e regionais que mobilizassem os médicos e os informassem detalhadamente sobre o que estava em causa. E é tudo!

Mas o caminho escolhido foi de acreditar nas boas intenções do poder político e esperar que fosse sensível a argumentos lógicos e óbvios.

Em vez da ampla mobilização dos médicos, foi dada prioridade a reuniões em gabinetes das várias instâncias do poder político.

E quais foram esses resultados: ZERO!

No final do próximo mês de Maio, vão realizar-se novas eleições já ao abrigo desses novos estatutos.

A sua realização vai representar a consumação do golpe político contra a OM e a independência e autonomia da profissão médica.

Não é difícil ver que o verdadeiro centro decisório da OM vai passar a ser o Conselho de Supervisão, o tal em que a clara maioria dos seus membros são não médicos.
Nas próximas eleições é possível entender como é que as listas concorrentes vão aceitar incluir não médicos para o Conselho de Supervisão e Conselho Disciplinar Nacional?

Essa integração representará a capitulação integral perante este atentado à nossa profissão e à nossa classe.

Se os estatutos estão em vigor, as eleições tinham de ser marcadas, naturalmente, mas deveria ter sido, na minha simples opinião, emitida há largo tempo uma solene posição de princípio por parte da OM de que elas seriam realizadas sob protesto e que não era possível reconhecer-lhes qualquer representatividade

Por outro lado, as listas candidatas deveriam recusar-se, com firmeza, a incluir pessoas não médicas nas suas listas.

Nunca imaginei, que perante este ataque violento contra a profissão médica, a classe aceitasse que o poder político lhe colocassem a corda ao pescoço e se encaminhasse sem reação para o cadafalso.

Pessoalmente, recusarei participar nestas eleições que consumam, por via aparentemente democrática, a liquidação da OM.

Mas não me conformo e continuarei a luta pela dignidade da minha profissão.