A pandemia está a cobrar um preço adicional no que diz respeito ao cancro do pulmão. Especialmente durante o confinamento de 2020, grande parte da atenção dos cuidados de saúde primários esteve direcionada para os doentes Covid e, por outro lado, as pessoas evitaram o contacto com os serviços de saúde devido ao medo de contágio. Marta Soares, diretora clínica do IPO do Porto, assinala que embora a situação tenda a normalizar-se, os doentes com cancro do pulmão estão a chegar aos hospitais em estadios mais avançados e alerta para a necessidade de uma vigilância apertada dos fumadores.
HealthNews (HN) – Diversos especialistas alertam que muitos casos de cancro ficaram por diagnosticar durante a pandemia, sendo previsível que os doentes cheguem agora aos hospitais em estadios mais avançados. Qual é a sua perceção da situação?
Marta Soares (MS) – Já notamos, de facto, um número de doentes em estadios mais avançados. Note-se que a nossa realidade é um pouco diferente da dos hospitais que têm Serviço de Urgência aberta ao exterior, à qual os doentes podem recorrer diretamente. O IPO do Porto somente recebe doentes referenciados pelos médicos de família ou hospitalares, o que significa que na nossa realidade já tínhamos um grande número de doentes em estadios mais avançados. Contudo, houve um agravamento dessa situação.
O motivo é multifatorial. A atividade dos cuidados de saúde primários teve de ser direcionada para outras situações – nomeadamente, para o atendimento aos doentes Covid – e portanto, muitos centros de saúde estiveram menos disponíveis no que diz respeito ao atendimento das outras patologias. Por outro lado, sobretudo no ano 2020, houve muitos doentes que tiveram receio de recorrer às unidades de saúde e que foram adiando a ida ao médico.
HN – A situação está a encaminhar-se no sentido de uma normalização?
MS – Em 2020 houve alguma diminuição da referenciação mas em 2021 os números voltaram a ser quase normais. Vamos ver como as coisas correm em 2022…
HN – Quais são as implicações do facto de os doentes chegarem em estadios mais avançados em termos de opções terapêuticas, tratamento e esperança de vida?
MS – Se o cancro de pulmão não for detetado nas fases iniciais, o tratamento nunca é com intenção curativa. Quando temos doentes em estadios mais avançados o tratamento que lhes podemos oferecer é, no fundo, paliativo, e isso faz toda a diferença.
HN – Isso está relacionado com o facto de os doentes em estadios mais avançados estarem também mais debilitados?
MS – Obviamente que quanto maior for a carga de doença mais debilitado o doente vai ficar. Mas, nos últimos anos, o tratamento do cancro do pulmão, mesmo em estadios mais avançados, evoluiu bastante. Temos mais opções terapêuticas, e mais eficazes, mesmo em fases avançadas da doença e o impacto é ligeiramente menor. De qualquer maneira, quanto mais debilitado o doente estiver menos condições vai ter para ser tratado, mesmo com intenção paliativa.
HN – Qual é a sua perceção sobre as inovações surgidas nos últimos anos e quais são as armas terapêuticas mais significativas?
MS – No tratamento do cancro do pulmão ocorreram dois grandes avanços. Em primeiro lugar, o aparecimento das terapêuticas alvo, isto é, dirigidas a alvos moleculares. Neste momento temos doentes em estadios muito avançados que continuam vivos ao fim de muitos anos, quando anteriormente a sobrevivência no estadio IV era inferior a seis meses.
Em segundo lugar, o aparecimento da imunoterapia e das terapêuticas combinadas de imunoterapia e quimioterapia, vieram melhorar significativamente o tratamento destes doentes, mesmo em estadios avançados.
HN – Os fatores ambientais, tais como o tabagismo, são os grandes fatores de risco do cancro de pulmão?
MS – O tabaco é um dos fatores cancerígenos mas existe um sem-número de outros fatores ambientais (nomeadamente, o rádon e outros poluentes) cujo efeito ainda desconhecemos mas que podem provocar alterações nas células neoplásicas.
HN – As metástases, sobretudo nos estadios mais avançados, continuam a ser um dos principais desafios?
MS – O cancro do pulmão é normalmente “silencioso”. O doente fumador, em particular, desvaloriza os sintomas respiratórios, como o agravamento da tosse, que atribui ao tabaco. Vai ao médico porque aparece uma dor óssea, por exemplo, ou um sintoma neurológico (parésia, dor de cabeça…) que podem significar metástases ósseas ou cerebrais.
HN – As metástases cerebrais são mais difíceis de tratar?
MS – A metástase cerebral é sempre uma situação complicada mas o avanço de algumas tecnologias, nomeadamente a radioterapia estereotáxica ou a radiocirurgia cerebral, permite-nos tratar apenas o local da metástase cerebral, sem fazer a irradiação de todo o cérebro, melhorando a qualidade de vida dos doentes.
Para além disso, existem algumas terapêuticas-alvo, designadamente os inibidores da tirosina cinase, que atuam a nível do sistema nervoso central e tratam essas metástases cerebrais. Portanto, mesmo nesta área houve evoluções tecnológicas que nos permitiram controlar as lesões cerebrais.
HN – Ainda neste domínio, qual a mensagem que gostaria de deixar aos seus colegas e, nomeadamente, aos médicos de família?
MS – Não desvalorizem os sintomas, principalmente nos doentes fumadores! Não temos ainda implementado o rastreio do cancro do pulmão mas deve haver uma vigilância mais apertada dos doentes fumadores porque a deteção precoce ainda é a melhor forma de prevenirmos uma doença avançada.
O rastreio de base populacional não faz sentido mas o rastreio da população-alvo de grandes fumadores faz todo o sentido. É a única forma de detetarmos os casos numa fase mais precoce.
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