Comentário ao Acórdão da Relação de Coimbra
- Introdução
O recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/01/2023, proc n.º 1689/23.8T8LRA.C1., declarou como válida a decisão administrativa proferida num processo de contraordenação da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).
Um hospital do setor empresarial do Estado arguido num processo de contraordenação instaurado pela ACT, veio a ser absolvido em decisão de 1.ª instância (Juízo do Trabalho de Leiria do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria) em que lhe foi aplicada a coima de 15 300,00 € por violação de vários artigos do Código do Trabalho.
Ora, neste percurso judicial, o Tribunal da Relação deu procedência ao recuso e, em consequência, revogou a decisão anterior.
Pela divergência de posições, entende-se adequado analisar a questão, nomeadamente no que tange a saber se o facto de um candidato a emprego em gozo de licença exclusiva da mãe estava ou não impedida de ser contratada depois de ter sido sujeita ao procedimento de recrutamento.
- Direitos atinentes à parentalidade
A única questão aqui é a de se saber se a não contratação da candidata selecionada violou alguma norma legal.
Dos factos descritos no acórdão dá-se relevância: há um processo de reserva e recrutamento; a candidata à vaga ficou posicionada em primeiro lugar; foi a candidata contactada para indicar a sua disponibilidade para iniciar funções; a candidata não ocupou a vaga pelo facto de estar em situação de licença exclusiva da mãe com termo a 04/05/2022; a entidade empregadora pretendia que o início de funções fosse a 01/05/2022 (sendo dia 01/05/2022 feriado a coincidir com um domingo a divergência traduzia-se em apenas 4 dias); a candidata ia substituir outra trabalhadora que acabou por se manter no posto de trabalho, a concurso; a candidata foi convidada a concorrer num próximo concurso.
Adianta-se desde já que, os dois últimos factos aqui descritos não relevam para a solução jurídica, na medida em que, a consumação do ilícito não necessita da preterição de um candidato a favor de um outro, tal como, a recomendação para se apresentar ao próximo procedimento não é garante de se posicionar e ficar com o lugar já conquistado com a candidatura que a candidata reclama.
Por outro lado, não estando em causa os pressupostos para a contratação nem qualquer vício a apontar no procedimento administrativo segue-se para o que realmente interessa – recusa de contratação por indisponibilidade da candidata ao emprego estar no gozo da licença parental.
Ora, como rapidamente se percebe, a orientação do Tribunal de 1.ª instância no sentido da revogação da decisão administrativa da ACT (aplicação de uma coima) é insustentável, sob o ponto de vista legal: há elementos necessários e suficientes para fazer imputar objetiva e subjetivamente o comportamento ilícito (contraordenação) à entidade empregadora, como se irá ver de seguida e que está devidamente fundamentado pelo Tribunal da Relação.
Retomando a decisão do Acórdão da Relação de Coimbra, se o tribunal tivesse mantido a decisão de 1.ª instância, ou seja, se tivesse mantido a absolvição da entidade empregadora com a revogação da decisão da ACT estaria a admitir uma decisão que não se compagina, com os vários normativos em vigor que constituem o acervo normativo a que chamamos – regime da parentalidade. Era o mesmo que aceitar o que a lei expressamente proíbe – a discriminação em razão do sexo.
Ora, é hoje incontestado que o regime da parentalidade protege os trabalhadores em vários momentos: na fase pré-contratual e na execução do contrato. A fase pré-contratual do qual se incluem todos os atos administrativos praticados até ao início da execução do contrato, o trabalhador está protegido bastando-lhe demostrar com certeza que sofreu prejuízo em virtude do seu estado pessoal (gravidez, puérpera, lactante) e ainda trabalhador no gozo de licença parental. A fase da execução do contrato de trabalho inicia-se com a celebração do contrato de trabalho / início de funções e a proteção mantém-se até ao termo do contrato. Como exemplo dessa proteção pode referenciar-se a presunção estabelecida a favor do trabalhador ao abrigo do regime da parentalidade onde o despedimento por facto imputável a trabalhador que se encontre em qualquer das situações (gravidez, puérpera, lactante e ainda trabalhador no gozo de licença parental) presume-se feito sem justa causa1.
No caso em concreto está-se perante a proteção em fase pré-contratual que como se irá ver encontra tutela jurídica.
Ao contrário do que ocorreu com a decisão de 1.ª instância, a decisão da Relação não padece de qualquer incorreção: dependente da questão de saber se a entidade empregadora não poderia ser sujeita ao pagamento de uma coima está uma outra, que é saber se o comportamento da entidade empregadora ao recusar a contratação da candidata viola ou não as normas que a lei qualifica como ilícitos contraordenacionais. A resposta a esta questão responde necessariamente a outra – a legalidade da contraordenação.
Ora bem, defende-se o quadro legal explanado no Acórdão e que se salienta sumariamente: o direito à igualdade e o princípio da igualdade de tratamento no emprego2, a conciliação entre a vida profissional e familiar 3, considerando-se a maternidade e a paternidade valores sociais eminentes em que, as mulheres têm direito a especial proteção durante a gravidez e após o parto4.
Este acervo normativo nunca poderia levar à decisão de revogação da decisão da ACT.
O Tribunal da Relação invocou ainda, a Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5.07.2006 que nos seus pontos 23 e 24, que refere: (…) Ressalta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que qualquer tratamento desfavorável de uma mulher relacionado com a gravidez ou a maternidade constitui uma discriminação sexual direta em razão do sexo. (…)
Por sua vez, o Código do Trabalho, no que respeita ao direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho afirma que, o trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento (…) devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
O Código assinala um conjunto de situações com caráter meramente exemplificativo, onde o dever de observar o princípio da igualdade de tratamento é imperativo5.
A política de proteção está reforçada com a norma proibitiva – a proibição de discriminação pelo empregador em razão, entre outros motivos, ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, etc… afirmando-se taxativamente que integram condutas discriminatórias, «as condutas do empregador que tenham motivos relacionados com a parentalidade»6.
Por fim, a imposição legal do gozo, por parte da mãe, de seis semanas de licença a seguir ao parto 7.
Aqui chegados, não há dúvidas que no âmbito do acesso ao emprego, está vedado ao empregador a prática de condutas que leve a exclusão ou restrição de candidato a emprego em razão do sexo. Tal comportamento a verificar-se constitui discriminação em função do sexo e a lei considera contraordenação muito grave. A proibição inclui a fase de formação, anúncios de oferta de emprego e outras formas de publicidade8.
O quadro legal exposto deve ser considerado antes da tomada de decisão, já que, uma decisão em desconformidade com a lei em vigor implica encargos para a entidade empregador: pagamento de coimas e possíveis indemnizações por danos não patrimoniais nos termos gerais do direito.
A Comissão para a igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) já teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão ainda que com outras particularidades quando comparadas com a situação descrita no acórdão.
Recordam-se três situações: nas duas primeiras, o que estava em causa era a prorrogação do prazo de contratar e não a recusa em contratar; e a terceira, no âmbito da execução do contrato estava em causa, a alteração do posicionamento remuneratório.
Em 2020, a CITE recomendou a revisão e retificação de uma situação defendendo que, a trabalhadora deveria ter tido os mesmos direitos que teria se não se encontrasse de baixa médica por motivo de gravidez e licença parental, no momento da decisão. Também aqui, há uma discrepância entre a data em que deveria ter sido celebrado o contrato / início de funções e a data em que realmente iniciou, por estar em situação de licença parental.
A entidade empregadora determinou que o contrato de trabalho só seria assinado em momento posterior a coincidir com o termo da licença parental. Esta prorrogação do prazo para a celebração do contrato a coincidir com o início das funções implicou a exclusão da candidata da lista de enfermeiros a quem seria atribuído o suplemento da especialidade. A leitura é simples: se a candidata / trabalhadora não se encontrasse de baixa por gravidez de risco/licença parental e/ou tivesse sido formalmente convocada pelo empregador, teria iniciado funções no período temporal em que foi feito o levantamento do n.º de trabalhadores a exercer a especialidade, em igualdade de circunstâncias com os colegas colocados através do mesmo procedimento concurso, e a quem está a ser pago o suplemento de especialista.
A não celebração do contrato de trabalho na mesma data que os restantes colegas traduziu-se num prejuízo inegável 9.
No ano transato, a CITE decidiu no mesmo sentido, para uma situação idêntica, defendendo que devia ser reconhecido, a uma médica candidata a uma vaga, os mesmos direitos, caso não se encontrasse de licença parental, ou seja, que a celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado tivesse efeitos retractivos à data em que os restantes candidatos do respetivo concurso celebraram os respetivos contratos e não, a celebração do contrato à data do início de funções a coincidir com o termo da licença parental10.
Nesse mesmo ano, quando estava em causa o pagamento com efeitos retroativos por alteração da posição remuneratória, de uma enfermeira, a CITE deliberou que existiam indícios de prática discriminatória, praticada pela entidade empregadora, por violação do direito à igualdade de condições de trabalho, ou seja, a CITE considerou existir um nexo de causalidade entre o não pagamento à situação jurídico-funcional do trabalhadora (gozo de licença em situação de risco clínico durante a gravidez e licença parental inicial)11.
- Conclusão
No que toca à proibição de práticas discriminatórias em razão do sexo no acesso ao emprego, o regime é imperativo não deixando dúvidas de que a sua violação constitui contraordenação.
Não tendo a entidade empregadora defesa assente em razões objetivas, a decisão da Relação não podia ter sido outra.
A entidade empregadora é livre de contratar, mas essa liberdade não inclui a recusa de contratar em razão do sexo ou outra razão que seja indiciária de comportamentos discriminatórios.
Assim, o Acórdão12 comentado revela-se importante: vem consolidar a orientação de que qualquer trabalhadora ao abrigo do regime de parentalidade tem direito à proteção mesmo antes da criação do vínculo laboral.
Ainda que, para quem lida com estas matérias no terreno, a decisão da Relação não seja surpreendente, pois a solução encontrada resulta da lei em vigor, ainda que se encontrem decisões como vimos proferidas em 1.ª instância.
Na verdade, temas sobre discriminação em razão do sexo que tenham como pano de fundo a contratação não são muito frequentes em tribunais e por isso, as decisões judiciais não mostram a verdadeira dimensão desta realidade. É essa raridade que deve ser dada a conhecer. A inercia perante um direito deve ser sempre uma opção e nunca por ignorância.
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- 63.º n.º 2 do CT/2009.
- 13.º e 59.º n.º 1 da CRP.
- 67.º e 68.º da CRP.
- 68.º n.º 2 e 3 da CRP.
- 24.º do CT/2009.
- 25.º, n.º 6 e art. 35.º -A do CT/2009.
- 41.º do CT/2009.
- 30.º n.º 1 e 4 do CT/2009.
- Parecer n.º 382/CITE/2020, de 05/08, consultado em https://cite.gov.pt/documents.
- Parecer nº 267/CITE/2023, 29/03, consultado em https://cite.gov.pt/documents.
- Parecer n.º168/CITE/2023, de 01/03, consultado em https://cite.gov.pt/documents.
- Ac do TR Coimbra de 12/01/2023, proc n.º 1689/23.8T8LRA.C1., consultado em https://www.dgsi.pt.
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