“Em pandemia é uma ilusão acharmos que temos os recursos ideais. Nunca vamos ter. Se perguntar se tenho os recursos ideais para o programa de ECMO [Oxigenação por Membrana Extracorporal], não. Mas também não temos para cuidados intensivos, nem para a urgência (…). Não podemos ter mais procura do que oferta. Dizer a verdade é uma forma de responsabilizar as pessoas”, refere o especialista do Hospital de São João Roberto Roncon.
Em Portugal existem três centros hospitalares com resposta ECMO, a tal técnica que permite substituir temporariamente a função do coração e dos pulmões através de um circuito extracorporal, e que foi introduzida no país há 10 anos por causa da gripe A.
Com a covid-19, esta “espécie de tecnologia de ponta”, que era encarada como “técnica de resgate de última linha”, começou a ser aplicada “mais precocemente” em doentes que se encontram em cuidados intensivos.
O Hospital de São João já “resgatou” doentes dos Açores referenciados para ECMO e Lisboa, onde quer o Hospital São José, quer o Santa Maria têm reposta ECMO, já “veio buscar” ao Norte. Na sexta-feira, 13 das 14 camas ECMO (para todas as patologias) do São João estavam ocupadas.
Em entrevista à agência Lusa, o coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) é claro e direto sobre a capacidade de resposta dos hospitais: “Dizer que é fácil e que vamos responder a todas as solicitações é contar a história da carochinha. Estamos num contexto pandémico”.
E nessa lógica de limitação de recursos a ECMO não é exceção. “Não posso garantir que iremos ter recursos para todos os doentes. Isso é mentir. Mas considero aceitável o tipo de resposta ECMO que estamos a dar quando comparada a países como a França, Alemanha, Espanha. E penso que a resposta que temos no Norte do país é muito aceitável”, refere Roberto Roncon.
A ECMO, uma espécie de circuito de diálise, que no caso da covid-19 grave faz a substituição da função pulmonar, é acionada quando o tratamento convencional que inclui o ventilador não é suficiente.
O tempo que um doente necessita dessa técnica é “muito variável, mas na covid-19 é elevado” e esse, admite Roberto Roncon, “também é um dos fatores de preocupação” atuais porque “é raro o doente que precisa de menos de duas, três semanas de ECMO e existem casos de um ou dois meses”.
“Em termos de consumo de recursos isto é brutal”, admite.
Segundo Roberto Roncon, para garantir resposta a solução está na rede e não na generalização, até porque “os países que tentaram generalizar o ECMO tiveram resultados péssimos”.
O médico lembra as razões clínicas e económicas que sustentam a tese de que “é preferível ter um centro que faz 100 casos por ano do que três centros que fazem 30”.
“A primeira razão clínica para não se generalizar é que não se deve levar a cabo uma técnica quando não se dispõe das especialidades cirúrgicas capazes de resolver as complicações. Ou seja, a razão é a segurança do doente. Para diminuir a taxa de complicações, é preciso ganhar experiência”, descreve.
Entre outros aspetos, em causa está o facto deste circuito extracorporal exigir a introdução de cânulas (espécie de cateteres) de grande calibre no doente. Perante complicações, são necessárias cirurgias, como as cardíacas e as vasculares, que não existem em todos os hospitais.
“Pessoas com experiência fazem com que a taxa de complicação diminua. Faz sentido concentrar equipas e experiência (…). Mas um doente covid-19 grave vai morrer porque está num hospital que não tem ECMO? Ideia errada. Desde há cerca de 10 anos existe a miniaturização [máquinas compactas e portáveis] dos circuitos extracorporais. Pode-se ir buscar um doente a outra unidade hospitalar e levar a um centro de ECMO”, descreve.
É o que acontece em Portugal. Na semana passada, quando o Hospital de Matosinhos referenciou uma doente para ECMO, o São José “veio” buscá-la.
“Curiosamente no dia seguinte o São João já teria mais folga. Mas se temos o privilégio de ter um SNS em que estas questões são fáceis de enquadrar (…), porquê correr o risco de esperar pelo dia seguinte? Nos Estados Unidos, por exemplo, não há rede e cada hospital tenta ser autossuficiente”, sustenta Roberto Roncon.
Critico de expressões como “milagre português” ou pragmático na análise sobre um “virar de página súbito do desconfinamento” entre a chamada primeira vaga e a aquilo que agora vê como um “planalto”, o especialista em medicina interna e medicina intensiva do CHUSJ responde à Lusa apontando o que acha ser necessário que as pessoas entendam.
“Para nós, um doente covid-19 não é um doente ‘vip’ (…). A população portuguesa pode continuar a contar connosco [profissionais de saúde]. Estamos cansados, mas não vamos desistir. As pessoas não vão ficar para trás. Já a outra parte dos recursos [os hospitais] responde quanto menos internados tiver e quanto menos internados, menos cuidados intensivos e menos necessidade ECMO”, frisa.
Professor auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Roberto Roncon considera que “é preciso cuidado com o discurso covidocêntrico” porque “a confiança para retomar a economia não se constrói só com discurso político, constrói-se com saúde pública controlada”.
Quanto ao chamado negacionismo que se espelha em movimentos anti-máscaras, entre outros, Roncon, “sem desvalorizar”, considera que “não se lhes deve dar protagonismo”.
“Não temos um problema significativo de negacionismo em Portugal, temos é pessoas desesperadas. Sempre que falo com alguém que tenta negar alguma evidência científica faço sempre o mesmo convite: passar visita na minha unidade sem máscara. Até agora ninguém aceitou”, conclui.
A pandemia de covid-19 já provocou mais de 1,25 milhões de mortos no mundo desde dezembro do ano passado, incluindo 2.959 em Portugal.
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