Seria talvez necessário fazer uma viagem ao início do século passado para ver as ruas do Chiado com a mesma quantidade de pessoas de hoje. As filas só existiam às portas dos bancos na rua Garrett ou na rua do Ouro, e ainda assim, com meia dúzia de pessoas.
No Largo do Chiado havia uma outra pequena fila, a do cabeleireiro no número 4, uma das ‘lojas com história’ que se encontram espalhadas por Lisboa. Do alto dos seus quase 90 anos, Manuel Moniz dizia a quem queria ouvir que era o primeiro da fila.
Veio da Alameda Dom Afonso Henriques, de metro, munido de máscara e com todos os cuidados, e marcou lugar na fila às 09:00. Há quase dois meses que não aparava a barba, nem corta o cabelo.
“Quase que me chega aos pés”, queixou-se à Lusa, lembrando que é cliente da casa "há muitos anos", por onde, contou, já passaram muitos barbeiros.
Um pouco mais à frente, davam-se as últimas limpezas nas vidraças das montras da Livraria Sá da Costa, que reabriu hoje depois de fechar portas em 19 de março. Pedro Castro e Silva, o gerente do espaço, revelou ser “uma grande alegria” poder começar a trabalhar.
Durante estes quase dois meses fechados, houve uma reorganização informática e algumas vendas ‘online’, mas foi um tempo de “100% de perdas”.
“Seriam meses normais, começava agora, estava a retomar do inverno, as pessoas começavam a vir mais”, afirmou, explicando que a empresa tem 15 trabalhadores, sendo que dois estão em ‘lay-off’ por problemas de saúde: “Nem a Segurança Social, nem os médicos de família facultaram a baixa e a opção da empresa passou por mantê-los em casa desta forma”.
Pedro Castro e Silva notou, no passado sábado, quando se encontrava na livraria em limpezas, que já há pessoas que querem voltar a entrar na loja.
“Vi que há muitas pessoas com vontade de passear, ver livros, voltar a fazer o que deixaram de poder fazer”, disse, considerando ser significativo as livrarias serem dos primeiros espaços comerciais a poder abrir na primeira fase.
“É um bom sentimento estarmos abertos. É uma esperança de voltar a faturar e manter a livraria, sendo igualmente um sentido de responsabilidade para a sociedade”, reconheceu.
A centenária Ourivesaria Aliança, cuja data de construção remonta a 1914, é hoje a casa da marca de joalharia Tous, localizada na Rua Garrett desde 2012. As seis funcionarias do espaço regressaram hoje ao trabalho.
“O sentimento [em regressar] é ótimo, foi super difícil adormecer, nem dormi”, contou à Lusa Rita Martins, responsável do espaço, que é sede da marca em Portugal.
A loja reabriu passados quase dois meses, com todas as proteções necessárias, que serão também disponibilizadas aos clientes que não tiverem.
“Estamos cheios de força, voltamos com garra e estamos prontos para tudo”, adiantou Rita Martins, sublinhando que na loja só vão estar duas colaboradoras, para um máximo de quatro clientes.
Parado quase à porta da ourivesaria estava Paulo Monteiro, motorista de TVDE. Dava nas vistas por estar a limpar o carro com desinfetante e álcool. Explicou à Lusa que o faz a todas as viagens, quando o cliente sai.
“Quando o cliente vem não quer esperar”, começou por explicar. Só está a trabalhar há cerca de um mês, pois esteve parado 15 dias logo no início do confinamento, por se sentir “meio constipado”.
O carro que conduz tem o acrílico de proteção, que o protege a si e ao cliente, pois tanto ele como quem entra "pode contagiar sem sequer saber”.
Da sua vivência considera que os portugueses estão a cumprir - não transportou passageiros em lazer, só mesmo aqueles que precisavam de trabalhar e, por isso, hoje já está a ser um dia diferente, já com cinco viagens feitas, “nada habitual” nos últimos tempos.
Daí ter pensado também que em Lisboa houvesse mais movimento “e não está”, lamentou o motorista, vindo da margem sul do Tejo.
“É triste, fazem falta os turistas, mas felizmente o nosso país, graças à atitude de todos, está de parabéns e vamos ver se isto passa o mais depressa possível”, acrescenta.
Ainda na Rua do Carmo, o Hair Salon de Rui Canento está “cheio” para os dias de hoje. Duas clientes tratam do cabelo, depois de terem marcado na agenda, que foi aberta “há cerca de três, quatro dias”.
Rui Canento explicou ter implementado “todos os procedimentos obrigatórios e os aconselháveis”, sublinhando que as clientes quando entram têm uns ‘pezinhos’ para calçar sobre os sapatos e um cabide pessoal onde deixam os seus pertences.
“Foram meses complicados porque não tínhamos o dia para abrir, se era mais 15 dias ou menos. É um sufoco, há dias muito bons, pois achamos que vai passar, e depois vem a dor de cabeça e o stress de não saber o futuro”, referiu.
Agora pensa ao dia, à semana e passou esse sentimento à sua equipa: “Será uma semana de cada vez. Faz-se de conta que estamos a abrir o cabeleireiro pela primeira vez ao público. Contamos com as nossas clientes, mas é uma aprendizagem. Hoje estou preocupado com o dia de hoje, amanhã com o de amanhã e assim sucessivamente”.
Para já, o salão só atende duas pessoas de manhã, duas à tarde e uma ao fim do dia A primeira semana já está completa.
Ana, que não quis revelar o apelido, encontrava-se visivelmente satisfeita por estar no salão. Foi a primeira cliente, às 10:00 em ponto.
“É tão bom, é engraçado como nós, em situação normal, não nos apercebemos daquelas coisas que tomamos como garantidas. Mesmo estando em casa olhamo-nos ao espelho, vimos o cabelo a crescer. Quando foi anunciado que os cabeleireiros iam abrir mandei logo mensagem ao Rui para não se esquecer de mim”, contou.
Já perto da praça D. Pedro IV, abriu também a Tabacaria Rossio. O gerente, Pedro Monteiro, explicou ter feito adaptações em acrílico nos balcões.
“Vai ser muito difícil recuperar, não só para os patrões, mas também para as famílias”, disse, reconhecendo que a atitude dos clientes e não só mudou.
“Queremos que pessoas voltem a sair para voltar ao normal. Claro que sempre com precauções e receios, como é óbvio, mas penso enfrentar isto com naturalidade”, disse.
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