Afinal, onde estão os médicos internos? É recorrente um utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) cruzar-se com eles nas urgências e nas consultas? A resposta da interna Mónica Paes Mamede é esclarecedora: um terço dos médicos do SNS são internos. Portanto, é bastante comum ser tratado por um interno, apesar de os doentes saberem apenas que são médicos. Mónica Paes Mamede é interna do 5.º ano de Anestesiologia, por isso conhece melhor a realidade hospitalar, mas, simultaneamente, lidera a Comissão de Internos do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). Conversou com o HealthNews sobre a greve de 23 e 24 de agosto, a primeira dos médicos internos, e disse-nos que o último dia teve 91% de adesão.

O HealthNews quis saber o que esta percentagem quer dizer. Comecemos pelas responsabilidades dos futuros especialistas: “Os médicos internos são um terço dos médicos do SNS. Portanto, quando vai a uma urgência ou a uma consulta, a probabilidade de ser atendida por um interno é de um para três. Nós não nos apresentamos como médicos internos, mas fazemos as consultas, tratamos dos doentes na enfermaria, fazemos muito trabalho burocrático, resolvemos muitas questões, de transporte inter-hospitalar, etc. É trabalho que tem de ser valorizado e que tem de ser visto como trabalho efetivo. Não é estagiário, não é um estudante; não está a ter aulas, está a trabalhar”, frisou Mónica Paes Mamede.

“Os médicos internos fazem muito trabalho que é ‘invisível’, ou seja, trabalho da enfermaria, trabalho de organização, trabalho de coisas internas, de transportes de doentes, etc. É um trabalho que liberta também os especialistas, que já estão assoberbados, para poderem fazer aquelas coisas que nós ainda não temos competência para fazer. Isso é extremamente importante”, explicou.

Outro exemplo: “Um cirurgião nunca opera sozinho, por várias questões, e a principal é a segurança, porque se acontecer alguma coisa há sempre um segundo par de olhos a ver. Muitas vezes o trabalho do segundo cirurgião é feito pelos médicos internos. E é muito assim que funciona a tutoria. Ou seja, os internos estão lá a fazer a ‘ajuda’, porque é obrigatório estarem dois cirurgiões, pelo menos (até pela legislação, é obrigatório para proteger um doente). Enquanto estão a fazer o trabalho de segundo cirurgião, não de cirurgião principal, estão a aprender. Estão a ver como é que o outro faz e estão a libertar um especialista para poder estar, por exemplo, a fazer outra cirurgia.” “Isto é trabalho efetivo e tem de ser visto e contabilizado. Não é menosprezável”, reforçou.

A remuneração é justa?

“Os salários são baixos”, disse a interna, sem rodeios. Um interno recebe de ordenado base 1300 euros – é o salário de um profissional como Mónica se não fizer horas extra. “É um salário baixo para aquilo que são as responsabilidades”, acrescentou a médica.

“Este problema, por ser transversal a todos os médicos, faz com que haja menos médicos no SNS.” Menos médicos “faz com que haja buracos na escala, e os médicos internos são compelidos a fazer muitas horas de urgência. Têm a vantagem de que acabam por ter um ordenado mais elevado, mas têm um completo prejuízo da sua vida familiar, da sua vida pessoal, porque estão exaustos e em burnout”.

“Portanto, o que é que nós achamos que é urgente? Aumentar os ordenados base, porque, de facto, não queremos estar a fazer 40, 60, 80 horas extra por mês. Nós queremos fazer 40 ou 35 horas de trabalho como a restante função pública, queremos que elas sejam adequadamente remuneradas, e obviamente que estamos dispostos a fazer horas extra que o sejam. (…) Não é saber à partida que essas horas, apesar de se chamarem extra, fazem ‘parte do horário’ porque não há ninguém que cumpra aquela escala”, instou a médica.

Este ponto é “fundamental para toda a gente” – “é para todos os profissionais de saúde, obviamente, e para todos os médicos, em particular, é isto que nós estamos a discutir nestes dias”, defendeu.

Enquanto os médicos internos recebem à volta de 8 euros líquidos por hora, os especialistas no primeiro degrau da carreira recebem próximo de 11 euros, “por um trabalho que é extremamente penoso, que é extremamente desgastante”. “Obviamente que os colegas preferem, depois de todo o investimento que fizeram na sua formação e o trabalho do dia a dia, trabalhar em sítios, normal e naturalmente, que os remunerem mais”, alertou. Alguns preferem trabalhar para o Estado como prestadores de serviços. Pode ser mais atrativo, não obriga aos “extras” que se tornaram corriqueiros, e “os colegas [médicos prestadores de serviços] têm as mesmas competências e fazem o seu trabalho bem feito”. “Há é toda uma outra série de valências nas quais não estão envolvidos que são importantes para se ter serviços sólidos, para seguir os doentes”, disse a médica.

Outras reivindicações

Os médicos internos lutam também pela qualidade da sua formação. “Todas as formações, trabalho e estudo que fazemos para o internato são no nosso tempo pessoal, para além daquelas 40 horas, e são pagas pelo nosso próprio dinheiro. (…) Eu faço imensas avaliações, cursos, artigos científicos. A minha tutora lê, corrige, avalia tudo, e fá-lo também no tempo pessoal dela. Isto é um trabalho e tem de ser remunerado. (…) Portanto, para nós é o pagamento das formações obrigatórias e é a remuneração pelo trabalho de tutoria”, afirmou Mónica Paes Mamede.

Além disso, estes profissionais querem ser integrados na carreira médica. “Nós trabalhamos estes primeiros cinco a sete anos do internato que não contam para a carreira, (…) sendo que depois [da especialização] podemos estar cinco a dez anos no mesmo patamar, com os tais à volta de 11 euros líquidos por hora”, esclareceu a médica.

“Os nossos pontos são: o aumento salarial, a valorização do trabalho do médico interno, a valorização do trabalho do tutor e a integração na carreira”, resumiu.

Ambiente hospitalar e a relação com o especialista

Por último, o HealthNews questionou a médica sobre a hierarquia nas organizações. A médica explicou a realidade onde se insere, a hospitalar: “O contexto hospitalar é extremamente estruturado e hierarquizado. Obviamente que há uma hierarquia e uma estrutura, que já se percebeu em alguns países que se ela for demasiado rígida dá origem a erros médicos. Se o médico interno tiver receio de perguntar a um especialista alguma coisa, a probabilidade de acontecer um erro médico é maior. Os Estados Unidos têm imensos estudos sobre isso.”

“Obviamente que a estrutura é hierarquizada, e tem de ser. Nó somos todos médicos, somos todos pessoas, temos competências e conhecimentos diferentes. Eles estão estruturados por patamares. Eu tenho plena noção que os especialistas sabem mais do que eu e que internos mais novos, possivelmente, sabem um bocadinho menos que eu. Portanto, isso é normal. Agora, a estrutura tem de ser fluida o suficiente e plástica o suficiente, e complacente, para que todos se sintam bem-vindos, todos se sintam respeitados e cuidados, para que não haja receio de pedir ajuda”, rematou.

HN/RA