Naturalmente que a vida flui e as condições das sociedades, influenciadas por múltiplos fatores, vão-se alterando.
No entanto, os valores, os princípios éticos e a cultura profissional tendem a prolongar-se no tempo se a sua transmissão estiver no centro das preocupações de cada geração.
As gerações médicas que exerceram a sua atividade profissional ainda no período ditatorial, fruto da ausência de liberdades e da existência de perseguições a que podiam sujeitar-se, acabaram por tomar uma forte consciência da enorme importância dos valores da solidariedade profissional e humanista, bem como da importância do associativismo médico para, de forma organizada, se defenderem das arbitrariedades de quem detinha o poder político.
Nas décadas mediatamente a seguir à restauração da democracia com o 25 de Abril de 1974, essas gerações sucessivas de médicos foram inevitavelmente influenciadas pela “explosão ” da participação política e cívica que se generalizou na nossa sociedade.
O associativismo médico expandiu-se de forma impetuosa, desde logo com a atividade legal e democrática das associações de estudantes nas faculdades de medicina que foram desempenhando um trabalho ímpar de consciencialização política e de cidadania, bem como da insubstituível importância da participação cívica na defesa dos seus direitos e interesses profissionais e sociais.
Foram constituídos os sindicatos médicos que até 1974 estavam rigorosamente proibidos e multiplicaram-se as sociedades científicas.
Estas vivências foram determinantes na formação das múltiplas facetas da consciência profissional e cidadã dessas gerações.
Talvez nos últimos 20 anos, a mentalidade das mais recentes gerações alterou-se. Não foi para melhor nem para pior, tornou-se diferente.
Provavelmente, seria importante avaliar qual o efetivo impacto da rigidez e severidade dos numerus clausus de acesso ao curso de medicina, face à implacável competição nas notas que incutiu no comportamento permanente dessas gerações e a moldagem de uma profunda cultura individualista.
Ora, estas situações na profissão medica têm efeitos devastadores, dado que esta profissão é cada vez mais um trabalho inserido em equipas multidisciplinares que, por sua vez, têm de se articular com equipa multiprofissionais.
Para as novas gerações, a vida social e familiar é mais valorizada e não possuem o mesmo espírito “militante” dos seus antecessores na profissão.
A disponibilidade cívica de participação ativa nas ações reivindicativas em defesa dos seus interesses decaiu e isso tem estimulado os diversos políticos que têm ocupado cargos ministeriais a sentirem-se com maior descaramento para atacarem os nossos interesses, a nossa carreira profissional e a nossa dignidade.
Por sua vez, este decréscimo de participação deu a oportunidade a que certos grupos hegemonizassem órgãos dirigentes.
Desde há vários anos, a ação dos vários governos foi, por ação e omissão, esperar que o SNS vá definhando para depois justificar, com pura propaganda neoliberal, a entrega dos seus segmentos mais rentáveis a poderosos grupos privados multinacionais.
Quanto aos médicos, a questão central que pretendem atingir é fragmentar o seu espírito de corpo profissional, desmoralizar a sua ligação à profissão e ao próprio SNS e ainda estimular, de todas as formas, sentimentos de extremo individualismo que os afastem de qualquer espírito de agregação associativa e reivindicativa.
Perante esta situação de extrema gravidade e cada vez mais complexa, têm de ser tomadas, sem demora, medidas excepcionais.
A mais ampla participação dos médicos em defesa dos seus interesses profissionais têm de ser dinamizada, as organizações que nos representam têm de adotar claros mecanismos de funcionamento democráticos que as aproximem mais daqueles que afirmam representar e a intervenção reivindicativa não pode estar prisioneira de aparelhos partidários e das suas agendas de mera contestação política.
Importa ainda ter presente que em momentos de enorme gravidade como este que vivemos, uma medida indispensável é construir amplas plataformas de entendimento e convergência entre estruturas e entre os diferentes quadrantes de opinião.
Apostar na divisão das organizações médicas é prestar um chocante serviço ao poder político, seja ele qual for, independente da fraseologia ultraradical com que se apresentem.
Os partidos são parte integrante da democracia e sem eles não se pode falar em regime democrático ou em liberdade, mas as organizações sindicais são, por definição, independentes do Estado, dos partidos políticos e das confissões religiosas.
Cada dirigente sindical, ou de outra organização, tem todo o direito de pertencer ao partido que entender, dado que estamos em democracia, mas o que é intolerável e corrói o prestígio constitucional da atividade sindical é trazer para dentro de um sindicato um ação organizada de fracionismo partidário e de secretismo na elaboração dos seus documentos negociais.
Este ano vão realizar-se eleições para os vários órgãos dirigentes nacionais e regionais da Ordem dos Médicos, o congresso nacional da FNAM e as eleições para o Sindicato dos Médicos da Zona Sul.
De tudo isto vai depender, em grande medida, o futuro da nossa profissão a curto e médio prazo.
Se forem caucionados os comportamentos de instrumentalização partidária da luta pelos nossos direitos e pela nossa dignidade, está aberta a sepultura para a nossa sagrada profissão.
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