
“Seria importante fazer um levantamento nacional” do conhecimento acumulado em milénios de relação do homem com a natureza, “fazer o que os chineses fizeram, de conhecer, cruzar conhecimentos, e utilizar e difundir a medicina tradicional”, disse à Lusa.
“Portugal teria a ganhar” se fizesse um “registo para memória futura” de práticas ancestrais, que não são prestigiadas – “pelo contrário, são ridicularizadas e remetidas à clandestinidade” – e que, “com o tempo, se vão perdendo”.
O antropólogo espera suscitar o debate na apresentação do livro que vai fazer no Colóquio Internacional Medicinas Tradicionais no Século XXI, promovido pela Universidade Nova, que vai decorrer nos dias 10 e 11 de março no Museu da Farmácia, em Lisboa, com o objetivo de “analisar as relações entre as diversas medicinas tradicionais e a saúde”.
O livro, que será apresentado no sábado na Sala de Leitura Bernardo Santareno pelo padre António Fontes (investigador das tradições populares do Barroso), “debruça-se sobre os significados dos rituais curativos existentes no nosso país, suas distribuições geográficas, modelos paradigmáticos e processos evolutivos”, disse.
Editada pela “Apenas Livros”, a obra resulta de um estudo feito a partir do “espólio médico-curativo de Michel Giacometti, que agrega mais de cinco milhares de registos de todo o país”, editado pelo Instituto de Estudos de Literatura Tradicional e Património Imaterial (IELT), da Universidade Nova, que patrocina o livro, sendo a apresentação do autor feita pela responsável do instituto, Ana Paula Guimarães.
À análise dos registos, Aurélio Lopes juntou dados de outras proveniências e trabalho de campo que realizou no Ribatejo.
O estudo, disse, “versa as lógicas subjacentes das práticas de medicina popular, as suas razões de ser, configurações e explicações”, numa “conceção do mundo holística, empírica e analógica”.
Aurélio Lopes procurou descortinar as “maneiras de pensar”, a linguagem, os rituais, o porquê do uso de determinadas plantas, do que está para além da eficácia da cura, ou seja, “as analogias, as configurações, o entendimento do mundo, a noção cíclica do mundo”.
Uma das questões que se colocou foi saber por que razão as pessoas continuam hoje a procurar o “curandeiro”, visto como “um membro da comunidade” a que se vai “porque alguém recomenda e lhe reconhece competências também transcendentais”.
Ao contrário da medicina convencional, a medicina tradicional usa a “sugestão”, pelo que o “curandeiro” tem que “se interessar pelo doente, criar empatia”, disse.
Exige uma “perspicácia empírica”, sublinhou, referindo que, se a doença não passa, “nunca a culpa é do curandeiro. Ou é vontade de Deus ou a culpa é do paciente, que certamente não fez as coisas como devia”.
A confiança no médico é condicionada pela relação que este estabelece com o doente. Se este “não gostar do médico, não só não acredita nele como não acredita nos medicamentos que ele receita”, afirmou.
“O famoso placebo é o que o curandeiro faz há milénios”, disse, realçando que a medicina popular beneficia também de “experiências milenares que se sabe que resultam”.
Aurélio Lopes referiu o facto de outras culturas terem mantido “aspetos essenciais da existência do ritual”, ao contrário da cultura ocidental, marcadamente técnica e científica, quase reduzida à prescrição e “sem muita paciência para aturar” o doente.
O seu trabalho procurou olhar a “lógica funcional da medicina tradicional”, as semelhanças práticas com a medicina científica e até que ponto é importante a relação empática com o doente, já presente na moderna medicina humanista.
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