“Quando se falava em maleitas, toda a gente combinava à mesma hora acenderem uma fogueira ao escurecer, na rua, à porta de cada pessoa. Iam então buscar molhos de mato verde, alecrim, urze, carqueja, rosmaninho e toda a gente fazia a fogueira à mesma hora”, contou à agência Lusa Fernando Quintas, antigo ferroviário e presidente de junta, com 74 anos.
Com a infeção provocada por COVID-19 detetado em Wuhan, na China, a causar preocupações a nível mundial, Fernando Quintas recorda a pneumónica, também conhecida por gripe espanhola, e como esta aldeia conseguiu escapar à epidemia mundial que surgiu no início do século XX.
O povo está aqui numa parte baixa, isolado por sete colinas
O Amieiro está localizado no vale do Tua, junto ao rio, e era, na altura, uma terra que quebrava o isolamento com o comboio, que se apanhava na margem oposta, ou então percorrendo “a pé ou de burro” os 15 quilómetros por um antigo “caminho romano” até Alijó, no distrito de Vila Real.
O rio era atravessado de barco, mais tarde de teleférico e depois por uma ponte que foi levada pela cheia há quase 20 anos. “O povo está aqui numa parte baixa, isolado por sete colinas”, descreveu.
No Amieiro dizem que ninguém foi infetado pela gripe espanhola e, segundo Fernando Quintas, “outras pessoas de outros lugares ainda aqui se refugiaram”.
“Nas aldeias à volta havia pessoas infetadas, mas aqui não houve ninguém, nem houve mortos provocados por essa doença. Não sei agora se foi do fumo ou se foi da posição geográfica em que o Amieiro se encontra”, afirmou.
Fernando Quintas ainda não tinha nascido, mas ouviu os relatos dos pais e dos avós e disse que a estratégia se manteve para “outras maleitas”.
“E com isso evitou-se de haver essa doença. Ainda hoje se fala nisso e durante muitos anos quando se fala numa crise de doença, de maleitas, agora é o coronavírus, toda a agente fala já em voltar a acender aqui essas fogueiras”, frisou.
José Carlos Cataluna, 80 anos, revelou que “até havia um sinal dado pelo sino”.
“Toda a gente já tinha o seu molho de rama, trovisco, alecrim, rosmaninho, pinho, zimbro, tudo aquilo que era bom para fazer os fumos. Ao toque do sino, toda a gente já tinha o molho à porta e todos punham a arder naquela hora”, contou.
Nas aldeias à volta havia pessoas infetadas, mas aqui não houve ninguém, nem houve mortos
Acrescentou: “Aquilo era uma nuvem só de fumo. Seria disso, não seria, também dizem que nós como estamos aqui na cova que passou por cima e não chegou aqui em baixo”.
José Carlos Cataluna é agricultor e artista. Tem espalhados pela aldeia nichos de santos, uma pequena igreja e um presépio e em cada um deles um poema escrito por si. Mas é também um homem orgulhoso da terra onde vive. “Ainda hoje ouvimos ‘és do Amieiro, da terra onde não morreu ninguém’. Foi verdade”, frisou.
No Estudo Clínico da Gripe Epidémica, escrito em 1920, o autor Celestino da Costa Maia fala precisamente no Amieiro, que descreveu como “uma pequena povoação de 400 habitantes do concelho de Alijó, rodeada por todos os lados de freguesias onde a gripe grassava impiedosa, conseguiu escapar aos seus horrores”.
“De facto, os habitantes do Amieiro, logo que a seu lado o incêndio gripal se ateou, acenderam fogueiras em toda a volta da sua aldeia, mantendo-as acesas enquanto o flagelo não desapareceu das vizinhanças. Não seria este o fogo sagrado que os protegeu? Não desviariam estas fogueiras as correntes atmosféricas portadoras da morte?”, questiona o escritor.
No fim da Grande Guerra, a pneumónica, também conhecida como gripe espanhola, dizimou dezenas de milhares de vidas, tendo sido, até hoje, a maior pandemia mundial, causando mais mortes que a peste negra ao longo de vários séculos.
Segundo informações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, a pneumónica atingiu o país em maio de 1918 e, em cerca de dois anos, gerou uma crise demográfica grave, perdendo algumas zonas do país cerca de 10% da população.
Em Portugal, o número oficial de mortos devido à gripe espanhola é superior a 60 mil. Em três ondas, a pneumónica matou principalmente jovens e atingiu pessoas de todas as classes sociais.
O combate à doença, liderado pelo médico, investigador e higienista Ricardo Jorge, passou pela adoção de medidas de contenção, como o encerramento de escolas, a proibição de feiras e romarias, e a requisição de dezenas de locais públicos e particulares para a improvisação de hospitais.
Mais de cem anos depois, é a doença COVID-19 que se propaga. Depois de surgir na China, em dezembro, o surto espalhou-se por todo o mundo, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma situação de pandemia.
Temos que fazer outra vez fogueiras, como se fazia nesses tempos, para desviar essa doença
O novo coronavírus, responsável pela pandemia da COVID-19, já infetou cerca de 572 mil pessoas em todo o mundo, das quais morreram mais de 26.500. Dos casos de infeção, pelo menos 124.400 são considerados curados.
Mais de 600.000 casos do novo coronavírus foram oficialmente declarados em todo o mundo desde o início da pandemia, estando confirmadas quase 29 mil mortes, segundo um levantamento feito hoje pela agência de notícias AFP de fontes oficiais.
Pelo menos 605.010 casos de infeção, dos quais resultaram 27.982 mortes, foram detetados em 183 países e territórios, em particular nos Estados Unidos (104.837 casos, dos quais 1.711 mortes), na Itália (86.498), o país mais atingido em número de mortes (9.134), e na China (81.394 casos, dos quais 3.295 mortos), o foco inicial do contágio.
“Ainda no outro dia, ali no largo, estivemos a conversar que temos que fazer outra vez fogueiras, como se fazia nesses tempos, para desviar essa doença. Oxalá que não venha”, sublinhou Fernando Quintas esperando que o novo coronavírus se mantenha afastado.
Ao lado, José Carlos Cataluna acrescentou: “por entanto ainda está longe, mas estas coisas chegam-se para perto rápido”.
Artigo publicado originalmente a 15 de fevereiro de 2020.
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