Healthnews (HN) – É justo afirmar que o seu trajeto profissional está intimamente associado à criação e afirmação da Ordem dos Nutricionistas?

Alexandra Bento (AB) – É verdade. A ideia começou a ganhar forma ainda no tempo da então Associação Portuguesa de Nutricionistas (APN), da qual eu fui Presidente. Foi a partir da APN que se começou a dar os primeiros passos para a criação da Ordem dos Nutricionistas.

Após um longo caminho, a 14 de dezembro de 2010, foi criada a Ordem dos Nutricionistas e em 28 de abril de 2011, foi nomeada uma Comissão Instaladora (as ordens iniciam a sua ação com uma Comissão Instaladora), com um mandato de um ano.

Eu presidi essa Comissão Instaladora. Na verdade, algo expectável, já que tinha sido eu a liderar o processo para a criação da Ordem. Presidi à Comissão Instaladora com mais quatro colegas e, nesse ano, tivemos de dar “o pontapé de saída” para o funcionamento da Ordem dos Nutricionistas, nomeadamente as ações inerentes para as primeiras inscrições, de modo a viabilizar as primeiras eleições dos órgãos da Ordem dos Nutricionistas.

HN- A criação da Ordem foi um processo muito complicado?

AB- Demorámos cerca de treze anos, desde que iniciámos o processo de construção mental e de ação no terreno para a criação da Ordem.

HN- E tudo começa na Associação…

AB- Associação Portuguesa dos Nutricionistas (APN), exatamente.

HN- De que era Presidente também.

AB- Sim. Eu concorri no inconformismo que caracteriza a idade jovem. Mas ainda bem que o inconformismo existe porque depois também é aliado ao arrojo, à vontade de fazer, à inquietação!

Quando me candidatei à APN, tinha 29 anos. Candidatei-me com um conjunto de outros jovens nutricionistas e o nosso grande objetivo – colocámos logo isso no programa eleitoral – era trabalhar para a criação da Ordem dos Nutricionistas.

Não sabíamos muito bem o que tínhamos que fazer, mas tínhamos este grande desejo porque achávamos que uma Ordem, de alguma maneira, defendia não só os interesses dos nutricionistas, mas também os interesses da população. Foram treze anos ao longo dos quais trabalhámos afincadamente.

HN – Qual foi o primeiro passo?

AB – Percebemos desde logo que para a criação da Ordem teríamos que, de alguma maneira, persuadir a Assembleia da República, os Deputados, e o Governo, demonstrando o interesse público da criação desta associação pública profissional.

HN- E acabaram por ter dois projetos vindos de campos ideológicos completamente diferentes.

AB- Sim, do PS e do CDS-PP. Sendo que nós, ao longo de várias legislaturas, desenvolvíamos o trabalho com todos os grupos parlamentares.

Para nós era verdadeiramente indiferente se eram do campo da direita ou do campo da esquerda. Trabalhávamos, igualmente, com todos os grupos parlamentares. Mas sim, na última fase, os projetos legislativos que deram origem à Ordem dos Nutricionistas foram, um do CDS-PP e o outro do PS, com dois interlocutores por quem sempre tive e tenho uma grande estima. Por parte do CDS-PP, Teresa Caeiro, e por parte do PS, Francisco Assis.

HN- Projetos-Lei que seriam aprovados em conjunto…

AB- Fundindo-se.

HN- O que é interessante.

AB- O que quer dizer que havia nobreza na proposta. E dizer também em relação a esse aspeto que fomos acompanhados por vários consultores jurídicos ao longo do processo, o último dos quais, Vital Moreira.

HN- O que também é interessante, dada a sua “aversão” à criação de ordens profissionais.

AB – É um grande constitucionalista, com um olhar mais de oposição à criação das Ordens. As longas conversas que tínhamos e a grande estima que guardo ao Professor Vital Moreira tem a ver exatamente com isso: ele entende que as Ordens só devem existir num contexto de grande excecionalidade, mas entendia, e entende, estou certa, que sendo a profissão de nutricionista uma profissão de saúde e trabalhando com questões que tangem muito com o interesse público, não era a crueza dos números, ou seja, haver poucos nutricionistas, que haveria de ser um obstáculo à criação da Ordem.

HN- Julho de 2023. Já passaram mais de 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos que, no seu artigo 25.º, institui a alimentação como um direito universal.

AB- Em Portugal, só começámos a ter reflexos dessa norma depois de 1979. Todavia, a verdade é que continuamos a ter dados muito pouco satisfatórios em relação à situação portuguesa, que mostram que uma percentagem cada vez mais elevada de portugueses tem dificuldade em fornecer alimentos suficientes a toda a família e que um número muito expressivo vive em insegurança alimentar.

Este contexto atual, de guerra, de incerteza, de inflação, etc., adensa mais a preocupação. O que é que seria preciso fazer para melhorar um pouco estes números?

AB- É preciso fazer mais e fazer melhor, que dito é fácil, mas que para operacionalizar, certamente, poderá ser mais trabalhoso. Mas é claramente preciso fazer mais e melhor sem todavia obliterar o facto de que já muito se tem feito.

Se retrocedermos no tempo, quarenta ou cinquenta anos, e olharmos para o retrato da alimentação no nosso país, ele também era preocupante, mas com outros contornos. Antes do 25 de abril, tínhamos dados preocupantes em relação à alimentação dos portugueses, por exemplo ao nível do consumo de proteínas.

A população portuguesa tinha insuficiência de consumo de proteínas. Hoje é precisamente o oposto, ou seja, consumimos proteínas a mais.

Quero com isto dizer que as décadas vão passando e a realidade alimentar vai-se alterando. É normal. Mas, seria espectável que alterasse para melhor.

Deveríamos, no entanto, ter a capacidade de antecipar estas questões, porque, de facto, quem olha para grandes números e para grandes indicadores sabe que, com as alterações económicas e sociais de um país, o cenário alimentar altera com a modificação da disponibilidade e do consumo de certos alimentos, alguns do quais nem sempre benéficos.

Um exemplo é o consumo excessivo de açúcar, de sal e de gorduras. Se olharmos para indicadores económicos, sociais, de saúde e de consumo alimentar, conseguimos inferir o que possivelmente vai acontecer daqui a dez, vinte ou trinta anos. Ao conseguir inferir isso, deveríamos ter a capacidade de implementar medidas musculadas que antecipassem estes problemas.

Dito de outra maneira, se há dez, vinte ou trinte anos tivéssemos uma maior aposta em termos de promoção da saúde, com medidas para melhorar o acesso a uma alimentação saudável e melhorar os conhecimentos para conseguirmos comer melhor, porventura hoje teríamos uma população com mais instrumentos para melhores consumos alimentares.

HN- As projeções indicam que, em 2030, as mortes provocadas por uma má nutrição irão ultrapassar as mortes resultantes do hábito tabágico.

AB- E posso-lhe somar a esse facto o de que Portugal, nos dados da OCDE, está muito mal comparado no que diz respeito à verba gasta em termos de cuidados preventivos, ou seja, a média da União Europeia é de 102 euros, enquanto Portugal fica abaixo dos 50 euros – 41 euros per capita/ano, o que quer dizer que estamos a apostar menos do que outros países em termos de cuidados preventivos.

É verdade que os cuidados preventivos não se repercutem em ganhos no imediato (se eu gasto dinheiro em prevenção, posso não ver imediatamente o resultado em termos de saúde), mas a médio e longo prazo, há claramente ganhos. As apostas em termos preventivos são claramente boas decisões políticas e não “mais gasto”.

HN- Temos alguns programas que são bons, como os escolares, da fruta, do leite e das refeições comparticipadas.

AB- Falou em excelentes exemplos.

Atualmente, a fruta escolar e o leite escolar fundiram-se no mesmo programa, que se designa por “Regime Escolar”, financiado por fundos da União Europeia, para promover o consumo de frutas, legumes, leite e produtos lácteos junto das crianças em idade escolar.

Mas é preciso lembrar que o leite escolar remonta à década de 70. O leite escolar surge no pós 25 de Abril fruto do olhar atento dos Professores Gonçalves Ferreira e Emílio Peres, dois homens que olhavam para a saúde alimentar do país e conseguiram perceber que a população tinha um défice proteico, e se tinha um défice proteico, havia que atalhar caminho.

E para atalhar caminho, provavelmente, o melhor sítio era nas escolas, distribuindo leite às crianças. O que é que conseguimos com isso? Suprir esse défice proteico.

Agora, volvidos 40 e tal anos, o programa continua a ser semelhante, e se me perguntar o que é que eu acho, diria que o programa já não deveria ser o que é na atualidade.

É preciso revisitar o programa do leite escolar. Não quer dizer descontinuá-lo, mas dar mais força à fruta escolar. Porque é que temos, na atualidade, o leite escolar a chegar a quase 100% das crianças e a fruta escolar não? Ou seja, nós temos um programa de leite escolar que é altamente operacional e um de fruta escolar que não é tão operacional quando Portugal tem um grande défice de consumo de hortofrutícolas. São estas questões que devem ser pensadas; inquietarmo-nos com os dados e propor medidas que alterem a situação.

HN- Temos uma estratégia integrada e também um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Confesso que estive a pesquisar a ver se encontrava alguma informação sobre isto e o que encontrei foi muito pouco. Parece que foram coisas que foram só criadas.

AB- São sinalizações. Sinalizações e manifestações de vontade.

HN- Mas o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional reúne tanta gente quanto uma carruagem de metro em hora de ponta.

AB- São sinalizações de vontade, o que não diminuiu a sua bondade, mas precisamos mais do que bondade, precisamos de “mais terreno”, mais trabalho.

De facto, também temos uma Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável, de 2017, que vem dizer aquilo que é a mais pura das verdades: só se consegue trabalhar a política alimentar e nutricional se se trabalharem várias áreas governativas, numa lógica intersetorial.

E as várias áreas governativas vão desde a saúde, à agricultura, à economia, à educação. Estas várias áreas governativas têm de estar de mãos dadas na assunção de compromissos.

Assumiram-no, assinando esse compromisso, e essa estratégia foi delineada em quatro eixos de intervenção com medidas e ações a serem implementadas. Ela, no fundo, existe, mas só se conhecem relatórios de progresso até 2019 …

HN- Continua a ser, mas sem resultados no terreno… Sem informação.

AB- A estratégia surge em 2017, no papel, com o envolvimento de várias áreas governativas. Quando sai, não sai só a dizer que é um compromisso, sai com vários eixos, medidas e ações a desencadear. Se consultar o site da EIPAS, onde estão informações desta estratégia, o que se verifica é que há uma avaliação periódica da implementação até 2019, mas depois deixou de haver informação. É importante revisitar esta temática, sem dúvida.

HN- Li numa entrevista que se queixava do facto de a nutrição não ter sido incluída no programa do Governo. Foi um esquecimento?

AB- Terá que perguntar ao Governo o porquê. A nutrição deveria ter mais destaque, há muito, nos programas dos diferentes Governos. Eu só posso achar que, infelizmente, quem nos tem governado não tem dado a importância necessária à saúde nutricional. Só se pode concluir isso.

Agora o que esperamos é que, e apesar de no atual programa do atual Governo estar aflorada ao de leve a área da nutrição, nas diversas dotações orçamentais haja um conjunto de medidas resistentes, fortes, estruturantes para a alimentação e para a nutrição em Portugal.

HN- A profissão não é marcada pelo desemprego, mas há falta de nutricionistas no SNS. Onde é que estão os nutricionistas?

AB- Podemos falar disso em várias dimensões. Efetivamente, o desemprego da profissão tem estado sempre muito alinhado com o desemprego nacional, o que não quer dizer que não seja uma preocupação, porque o desemprego em termos nacionais é uma preocupação.

Uma só pessoa que esteja desempregada é uma preocupação. Mas em termos de empregabilidade, nos mais jovens, há instabilidade face ao emprego. Portanto, mesmo aqueles que estão no mercado de trabalho têm instabilidade face ao emprego.

Para além da instabilidade, há também os que estão insatisfeitos pela área em que estão a trabalhar. Muitos dos que acedem ao mercado de trabalho não têm estabilidade na sua vida profissional ou não estão na área onde gostariam de estar. Portanto, também não deixa de ser uma preocupação.

Todos nós deveríamos sentir-nos tranquilos, seguros e gostarmos do que estamos a fazer.

Isto é a manifestação dos nutricionistas, depois há o olhar público, já saindo da esfera da Ordem e centrando o nosso olhar como cidadãos.

O cidadão quando precisa de determinado cuidado nutricional, deve ter acesso a ele, e nesse sentido os nutricionistas deveriam estar mais em locais que são essenciais para a população, como sejam os centros de saúde e os hospitais, porque o rácio é insuficiente para as necessidades, pois há cada vez mais doenças relacionadas com os “maus comeres”, pelo que necessitamos de mais intervenção nutricional.

HN- A avaliação do estado nutricional do utente quando entra no sistema de saúde…

AB- É obrigatória.

HN- A perceção que tem é que tem sido cumprida essa obrigatoriedade?

AB- A avaliação do risco nutricional é obrigatória na admissão hospitalar.

Um indivíduo que entra num hospital, tem de fazer a avaliação do risco nutricional. Se existir risco nutricional, automaticamente esse indivíduo deve ser sinalizado para o Serviço de Nutrição. Portanto, cai um alerta no Serviço de Nutrição e um dos nutricionistas deve proceder à avaliação do estado nutricional do doente, estabelecer o diagnóstico nutricional, definir a intervenção nutricional e respetiva monitorização.

Ora, no ano de 2022, a percentagem média de doentes submetidos à identificação do risco nutricional foi de 36%, um dado aquém do desejável, tanto mais porque sabemos que muitos dos doentes que entram num hospital já se encontram em risco nutricional.

HN- Por exemplo, nos últimos dois anos, cerca de 40% dos utentes que entraram no IPO de Lisboa estavam em estado de risco nutricional.

AB- E a necessitarem mesmo de intervenção terapêutica, de terapêutica nutricional.

HN- Porque é que não há mais nutricionistas nos centros de saúde? É o mesmo problema dos médicos ou existe algum outro fator?

AB- Entendo que pode haver vários fatores. Pode ser vontade política insuficiente. Nós não podemos dizer que é um desconhecimento da necessidade, quer da necessidade em termos numéricos, quer da eficácia da intervenção do nutricionista.

Acho que já vai longe o tempo em que se poderia ter dúvidas da eficácia da intervenção de um nutricionista. Outra das questões é o mau elencar de prioridades – é a minha interpretação.

Por outro lado, a legislação que temos é claramente obsoleta para o acesso à profissão, e isso é um dos obstáculos. Se pode ser falta de vontade política, falta de empenho, falta de determinação, o que quer que seja, uma coisa é certa: chegado o momento em que há vontade política, determinação e insistência para a colocação dos nutricionistas nos centros de saúde ou nos hospitais, esbarra-se na legislação obsoleta para as carreiras dos profissionais no SNS.

A legislação que existe atualmente para recrutar nutricionistas para o Serviço Nacional de Saúde é de 1991. No último concurso que tivemos, se tínhamos dúvidas, ficámos com certezas.

O último concurso que tivemos para estágio de especialidade para acesso ao Serviço Nacional de Saúde, que é de 2018, arrastou-se, números redondos, quatro anos, porque obriga a que todos aqueles que concorrem serem entrevistados. Ora, concorreram perto de mil nutricionistas.

Se por hipótese concorressem todos os nutricionistas, em vez de andarmos quatro anos podíamos andar décadas para a resolução do concurso, porque o júri é composto por três elementos e, portanto, é humanamente impossível entrevistar todas estas pessoas num tempo desejável.

Eu acho que é simples de perceber que a legislação é claramente ultrapassada face àquilo que é a necessidade do momento atual. A criação de uma carreira para os nutricionistas poderia ser um importante auxílio, acautelando estas questões.

Quero crer, no entanto, que com a criação das novas Unidades Locais de Saúde, os nutricionistas terão maior presença, quer nos Hospitais, quer nos Centros de Saúde.

Aliás, a Ordem elaborou o Manual para a implementação de Serviços de Nutrição nas ULS o que nos possibilitou analisar e atualizar com maior pormenor as necessidades reais na área hospitalar e dos cuidados de saúde primários.

Acreditamos que o alargamento deste modelo ULS será positivo para a profissão, uma vez que pode existir uma maior flexibilidade e menor burocracia nos processos de contratação.

HN- Vai deixar o cargo neste outono. Que conselho daria ao novo Bastonário(a)?

AB- Para trabalhar com afinco as questões da saúde nutricional da população, sem deixar o olhar atento para os nutricionistas, porque, de facto, é essa a função do Bastonário.

Trabalhar com muita exímia. Um trabalho que consiga fazer acontecer este duplo interesse, porque uma Ordem é isto mesmo, defende um duplo interesse.

Defende o interesse dos nutricionistas, mas não deixa de defender o interesse da população no que diz respeito aos cuidados nutricionais. E, às vezes, a defesa deste duplo interesse parece um caminho estreito; um caminho que às vezes é difícil de trilhar. Mas com mestria trilha-se, claramente.

Desde logo, perceber que uma Ordem não é um sindicato. Não podemos confundir a intervenção de uma Ordem, com uma intervenção sindical. A intervenção sindical é legítima, não fica é na alçada da Ordem. Portanto, em todas as ações que o Bastonário tenha que desempenhar deve fazê-lo no melhor interesse dos nutricionistas, mas não deixar que esse melhor interesse para os nutricionistas seja o pior para a população.

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