A Carreira Médica tem sido um instrumento nuclear na garantia da qualidade do exercício da profissão médica.
No final da década de 1950, em pleno regime ditatorial, os médicos portugueses desencadearam amplas movimentações reivindicativas na defesa da criação de um serviço nacional de saúde e das carreiras médicas, sendo estas definidas com um pilar central da concretização do direito à saúde de todos os cidadãos, independentemente das suas condições sócio-económicas.
Apesar dos diversos recuos da ditadura quanto às suas perspetivas sobre este direito humano fundamental, desde logo na criação pela primeira vez do ministério da saúde, dado que antes era uma subsecretaria de estado do ministério do interior, o facto é que só em regime democrático foi possível aprovar o primeiro diploma das carreiras médicas ( DL nº 310/82) quando era secretário de estado da saúde o Dr Paulo Mendo.
Houve sempre esta designação de carreiras médicas, dado existirem a carreira hospitalar, de clínica geral e de saúde pública, embora fossem coincidentes em todo o seu enquadramento legal e na sua estrutura de progressão técnica e salarial.
A Lei 12- A /2018, proposta pelo então ministro das finanças, Teixeira dos Santos, era primeiro-ministro José Sócrates, veio concretizar uma reforma global de todas as carreiras profissionais na Administração Pública para proceder a uma substancial redução no número de carreiras e instaurar o princípio da negociação coletiva.
Deste modo, passou a existir a designação de carreira médica, globalmente considerada.
Entretanto, durante largos anos existiram os chamados “ internatos voluntários” à Ordem dos Médicos.
Em que consistiam esses internatos?
Existiam médicos que não tendo obtido nota suficiente na prova de acesso ao internato complementar/especialidade para aceder a uma vaga na especialidade que desejavam, iam posteriormente abordar um diretor de um serviço para lhes permitir frequentar esse serviço e fazer curriculum para se apresentarem depois a exame na Ordem dos Médicos e poderem obter o título de especialista, ainda que não pudessem usufruir de qualquer montante remuneratório.
Esses internatos voluntários disputavam as atividades formativas no âmbito curricular com os médicos que por mérito tinham acedido ao internato da especialidade.
Era a chamada dupla titulação de especialista, uma pelos serviços públicos e outra pela Ordem dos Médicos.
E quando existiam concursos de provimento de especialistas, os que tinham feito o internato voluntário apareciam em pé de igualdade com os restantes que tinham acedido por mérito à sua formação na especialidade.
Em 30/4/1992, o então Departamento de Recursos Humanos do Ministério da Saúde emitiu a circular normativa nº 18/92, onde lembrava que o ofício circular nº 6355 de 9/7/90 tinha proibido a existência desses internatos voluntários, mas que continuavam a existir serviços hospitalares a permitirem essa frequência.
Nesse sentido, sublinhava que o anexo à diretiva 75/CEE, aditado pelo artigo 13º da Diretiva 82/76/CEE, estabelecia que toda a formação médica deve ser efetuada em postos específicos, com toda a dedicação à atividade e ser objeto de remuneração adequada.
Como a Ordem dos Médicos não remunerava esses internatos e eles não eram realizados com toda a dedicação, leia-se dedicação exclusiva, deixava de poder efetuar mais exames desse tipo.
Com esta situação, havia o enorme perigo da Ordem dos Médicos ficar sem quaisquer competências na área da formação médica.
Foi então que surgiu uma ampla movimentação nacional em torna da designada “titulação única”.
Essa movimentação, de que fui um dos mais ativos mensageiros, teve na candidatura vitoriosa do Dr Carlos Santana Maia a bastonário em 1993, a corporização prática dessa medida.
O então ministro da Saúde, Dr Paulo Mendo, publicou a portaria nº 186/94 de 31 de Março onde ficou estipulada a sua consagração legal até hoje.
Os exames de titulação única passaram a ter júris com uma composição predominante da Ordem dos Médicos.
Ou seja, desde essa altura que a Ordem dos Médicos deixou de poder legalmente atribuir qualquer título de especialista.
A luta sindical pela existência da carreira médica em instituições privadas de prestação de cuidados de saúde foi sempre um dos objetivos centrais da ação reivindicativa.
Este objetivo é atingido com a negociação de um acordo de empresa (AE) entre as organizações sindicais médicas e a entidade patronal privada.
Em 1992, foi celebrado o AE nos SAMS do então Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas que estabeleceu o primeiro sistema de carreiras médicas no setor privado da saúde.
Com as PPP (Parcerias público-Privadas) foram também assinados AE em todas elas, estabelecendo o sistema da carreira médica tendo por base os ACT (acordos coletivos de trabalho) nos serviços públicos de saúde, com a consagração de especificidades próprias de cada PPP.
É neste contexto histórico e prático que a intenção da atual direção da Ordem dos Médicos em proceder à criação de uma carreira médica no seu âmbito, causa uma enorme perplexidade.
Consagração legal da carreira médica é matéria da contratação coletiva onde só as organizações sindicais podem negociar.
Quando muito, podem, em articulação com as organizações sindicais, intervir na definição dos conteúdos funcionais das categorias.
É elucidativo que até hoje os grupos económicos privados na saúde nunca tenham mostrado qualquer disponibilidade para celebrar acordos de empresa nas suas unidades integralmente privadas, fora do contexto das PPP.
É uma ambição conhecida de algumas unidades privadas poderem dispor de formação pós graduada, mas para isso é indispensável que existam regras claras.
Os serviços têm de possuir idoneidade formativa avaliada pela Ordem dos Médicos, tal como acontece com os serviços públicos, e tem de existir o sistema da carreira médica no seu funcionamento assistencial.
Num momento em que continuam em vigor uns estatutos da Ordem dos Médicos atentatórios da sua autonomia e independência e onde o poder político se prepara para nomear comissários políticos estranhos à profissão médica para órgãos importantes, é suicidário deslocar o centro de intervenção para a criação de uma carreira no seu âmbito, enquanto o silêncio impera quanto à exigência da profunda alteração desses estatutos.
Quando a atual direção da Ordem dos Médicos pretende criar a sua carreira, a consequência inevitável é que se voltaria à dupla titulação, o que seria uma regressão inadmissível no exercício da profissão médica.
Por outro lado, iria levantar velhas ideias como a imposição da dedicação exclusiva, sem majoração salarial aos futuros médicos internos, tendo em conta as citadas diretivas europeias.
Finalmente, ao invadir as competências legais das organizações sindicais, iria introduzir fraturas na insubstituível convergência das várias organizações médicas, facilitando a perigosa ofensiva do poder político contra a mais elementar dignidade da nossa profissão.
Veremos qual é o grau de maturidade de quem se afirma nosso representante.
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