É hoje! É hoje! Lembraram-se de nós! Um dia mundial a nós dedicado ajuda a limpar a consciência colectiva que anda um pouco turva. As nossas vidas são águas passadas, foi chão que deu uvas. Não ficaram uvas, só recordações,….memórias, que não interessam a ninguém! Há dias falei com uma doente, mulher de 86 anos, que se queixava de uma depressão grave, reactiva a um desgosto de amor sofrido aos 28 anos. E ela desabafava: “Já cá não está entre nós, mas continua aqui, no meu coração, ele que me abandonou!” Alguém duvida do poder da mente? Nós, os idosos, vivemos de memórias – as nossas e as dos outros. Somos o passado no presente, a recordação que o tempo ainda não desvaneceu.
Tempos houve em que éramos respeitados, considerados. Estávamos no Senado, a assembleia dos seniores, dos anciãos. E eram os senadores, os cidadãos idosos escolhidos pelo povo, que ditavam a lei. Com as sucessivas revoluções, nossas e de outros, deixámos de ser ouvidos. Agora conta mais a voz dos jovens, porque falam mais alto, gritam e colam cartazes. É o Reino dos Jotas, que se tiverem tempo e paciência acabam por nos governar. É uma via perigosa. O pensamento da juventude é por natureza revolucionário. E o poder, para comprar as consciências juvenis promove a clivagem das gerações e a revolução das mentalidades. Será esta a via certa para construir uma sociedade mais justa? Ou será apenas uma nova ordem baseada no indivíduo isolado e fácil de controlar, com exclusão da família, do clã, da gens e do bairro?
Temos ainda, felizmente, uma plêiade de jovens inteligentes, brilhantes e competentes que não segue o carreirismo e acredita na progressão pelo mérito. Mas a maioria deles, quando abre os olhos para a realidade abandona o país. É uma hemorragia de cérebros de que estamos cada vez mais carentes para sair do marasmo das últimas décadas. Quando conseguiremos estancar esta hemorragia? Quando conseguiremos fixar essas mentes brilhantes de que o país tanto precisa? Urge aprender com os erros, nossos ou alheios. E é preciso ter a humildade para reflectir, ouvir, criticar e construir. E nós os idosos poderíamos ajudar!
Mas a maioria de nós, com a sabedoria ancestral que só se aprende no dia a dia, sabedoria a que também se chama “bom senso”, está fechada nos novos Jardins Zoológicos, só para a espécie humana em idade avançada, também chamados Lares de Terceira Idade. As famílias vão lá aos fins-de-semana, quando faz bom tempo, ultimamente com máscara e distanciamento social. Já não fazemos parte da sociedade. Somos elefantes brancos, socio-excluídos. Por vezes levam-nos em carrinhas, controladas por vigilantes, para dar um passeio a ver o mar! Mas nós queríamos mais que o imenso mar azul, queríamos ver e falar com os outros, os que estão fora da nossa reclusão. Fazemos parte do acervo histórico do museu da vida; mas já ninguém nos quer mostrar, têm vergonha de nos exibir.
Na década de 60 do século passado arrendei um 2º andar sem elevador, com quatro quartos, um apartamento ideal para um jovem casal com uma filha pequena. Tempos depois instalou-se no andar ao lado, com a mesma dimensão, um lar onde enfiaram vinte idosos. Era óbvio que não havia condições sanitárias mínimas e a prova surgiu com os óbitos e os cadáveres a aguardar no patamar da escada, até serem removidos pela funerária. Não tive outro remédio, mudei de casa. Como este, milhares de lares foram criados durante décadas sucessivas por todo o país, sem condições mínimas de funcionamento. Nas zonas rurais, a solução de país pobre foi a de lares clandestinos, onde a mensalidade era igual à magra pensão. Um mal necessário que as autoridades fingiam ignorar. Para um lar oficial comprava-se a licença e tentava-se subornar os inspectores. A corrupção, o laxismo e a ambição de lucro criaram a situação actual. A pandemia da Covid 19 apanhou os idosos na ratoeira destes lares. Houve uma “limpeza geracional” com mais de uma dezena de milhar de mortos. A tábua de salvação foi a vacina que reduziu com eficácia a gravidade e a mortalidade da doença. Mas os idosos continuaram a morrer nos lares apesar de vacinados: a vacina não impede a infecção nem a transmissão do vírus. E, como as condições sanitárias são más e os idosos frágeis, eles vão continuar a morrer até que todos os fragilizados tenham desaparecido. Erros de décadas pagos por uma geração de idosos.
Na nossa idade vivemos de memórias e recordações. Quando estas começam a falhar inventam uma doença para tornar mais fácil a nossa entrada no retiro. Dantes quando alguém tinha falhas de memória repetidas, dizia-se que estava tolinho; havia compaixão, até mesmo ternura na expressão. Agora temos o Alzheimer, uma palavra germânica e dura, um rótulo sem regresso. Podemos já não nos lembrar dos nomes dos nossos netos mas gostamos, agora mais do que nunca, de os beijar, de sentir o seu calor contra o nosso peito. Mas infelizmente, já não fazemos parte da vida deles. E é isso sobretudo que nos dói. Alguns de nós, os felizardos, continuamos integrados em famílias tradicionais a gozar um fim de vida feliz; mas lamentavelmente somos apenas uma minoria. Porque tudo o que todos nós, velhos, queríamos, era não ser socio-excluídos, voltar a dar e a receber atenção e ternura, viver, nos anos que nos restam, uma vida plena à nossa escala e possibilidades. Todos temos para contar, em mil e uma noites, histórias lindas, vividas, partilhadas e não sonhadas. Mesmo que cada história, como para Xerazade, seja apenas um dia de adiamento, do fim que a todos nos espera.
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