“Vai uma tacinha”? Diz quem é da região da Bairrada que é desta forma que normalmente somos recebidos pelos anfitriões nas suas casas. Beber espumante é tão natural como beber um “copinho” de vinho do Porto, se desviarmos a rota mais a Norte. Seja a que hora do dia for.

É um hábito enraizado nos bairradinos, mas pouco disseminado ao resto do país, que normalmente guarda o seu consumo para momentos de festa. Isso é-nos demonstrado com os resultados do estudo “Perfil do Consumidor Português de Espumante”, publicado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em fevereiro deste ano, que conclui que 90,9% dos portugueses consome espumantes em momentos de celebração. O estudo também revela que apenas 2,4% dos inquiridos consomem espumante mais do que uma vez por semana.

Mas há muito para descobrir neste mundo dos espumantes portugueses, que começam a não nos deixar atrás de outras regiões do mundo, nomeadamente Champanhe, a mais famosa no que a esta bebida diz respeito, apesar de ainda haver um longo trabalho a se fazer. E os portugueses parecem saber isso uma vez que 33,3% dos participantes no estudo privilegiam a região da Bairrada, antes mesmo de Champanhe (23,9%), na hora de comprar espumante.

Engane-se, no entanto, quem pensa que Portugal anda nisto há pouco tempo. Aquele que é considerado o primeiro espumante natural da Bairrada foi lançado em 1890, pelas mãos do engenheiro Tavares da Silva. E apesar de haver produção de espumantes de Norte a Sul do país, passando pelas ilhas, é na Bairrada que se concentra o maior número de produtores. Os números não mentem. A região é responsável pela produção de cerca de 60% dos espumantes a nível nacional graças, também , às características da Bairrada: invernos longos e chuvosos e verões amenos asseguram as características que se procuram num espumante – acidez, frescura e longevidade.

Sabemos que a casta Baga é uma das grandes embaixadoras da região, e que é tão versátil que até serve de base a vários espumantes. As castas mais utilizadas são Maria Gomes, Bical, Arinto, Cerceal, Touriga Nacional ou as clássicas Chardonnay e Pinot Noir.

“Vai uma tacinha”? Na Bairrada, o espumante é um modo de vida
“Vai uma tacinha”? Na Bairrada, o espumante é um modo de vida créditos: Divulgação

À boleia do Millèsime - I Encontro Nacional de Espumantes, que aconteceu no final de março, no mítico e clássico cenário do Curia Palace Hotel, fizemos uma primeira incursão no mundo dos espumantes. De repente palavras como borras, leveduras, remoagem ou dégorgement começam a ser-nos cada vez mais familiares e a entrar no nosso vocabulário.

O evento, promovido pelo Município de Anadia, em parceria com a Comissão Vitivinícola da Bairrada e a revista Grandes Escolhas, reuniu 39 produtores de espumante aos longo de dois dias, onde marcaram presença também dois produtores de Cava, da vizinha Espanha, e um dos principais países europeus produtores de espumante em conjunto com França, Itália e Alemanha. Por lá passaram perto de 1500 pessoas, de vários pontos do país, a prova de que os espumantes bairradinos começam a comunicar para fora da região. O objetivo foi “voltar ao glamour dos anos 1930 e 1940, aquilo que o Curia já foi”, num momento em que “a Bairrada é muito mais do que era há uns anos”, partilhava Jorge Sampaio, vice-presidente da Câmara de Anadia, no jantar de arranque do evento, exclusivo a jornalistas.

Jorge Sampaio partilhou ainda que se prevê que o Millèsime seja bianual, intercalando com o Aqui na Bairrada, outro evento dedicado aos vinhos. Mas no final, o próprio admitia que foram muitas as sugestões para que o evento se torne anual, uma vez que se superaram todas as expectativas iniciais.

Por aqui deixamos os espumantes que, de alguma forma, se sobressaíram nas visitas que o grupo de jornalistas convidados tiveram oportunidade de fazer.

Nota

Declaração de interesses: não sou crítica de vinho, apenas uma apreciadora que gosta de ouvir as histórias dos vinhos e que já foi feliz à mesa com outros tantos. Esta será a partilha de algumas dessas histórias de vinho e não uma avaliação qualitativa do mesmo.

O espumante 100% Baga da Quinta dos Abibes

Francisco Batel Marques recebe-nos já a noite tinha tomado o seu lugar para uma rápida visita à adega, explicando a génese da Quinta dos Abibes e apresentando as novidades: uma recém-construída cave e um espaço dedicado ao desenvolvimento do enoturismo, nomeadamente uma loja e a possibilidade de se fazerem experiências de enoturismo, como provas de vinhos e visitas guiadas.

O espumante 100% Baga da Quinta dos Abibes
O espumante 100% Baga da Quinta dos Abibes créditos: Divulgação

Apesar de a produção de vinho ter registos ainda do século XVIII, a nova vida daquela que é hoje a Quinta dos Abibes começa em 2003, quando o professor de Farmácia da Universidade de Coimbra, cumpriu o sonho antigo de ter uma vinha.

Não há nada mais simples da gastronomia da região do que um Leitão da Bairrada a ser acompanhado de espumante. À mesa apresentam-se três espumantes para acompanhar uma refeição rica em formas de cozinhar leitão, além de assado: Arinto & Baga Reserva 2020, Baga Bairrada 2015 e Sublime 2011.

Francisco Batel Marques resume bem a sua motivação: produzir os vinhos que mais gosta de beber. Ou pelo menos, aqueles que quereria comprar, caso não os fizesse.

O espumante 100% Baga da Quinta dos Abibes
O espumante 100% Baga da Quinta dos Abibes créditos: Divulgação

E o destaque vai para aquilo que é a exceção à regra, o Baga@Bairrada 2015. Se antes neste texto referimos a casta Baga como base de alguns espumantes, neste em particular a fasquia elevou-se com um espumante 100% Baga, numa clara resposta ao desafio lançado há uns anos pela Comissão Vitivinícola da Bairrada de fazer-se espumantes apenas com esta casta.

Com uma produção de 1000 garrafas, esteve 48 meses em cave e 18 meses após o dégorgement, sendo que o produtor sugere a reserva desta garrafa, no máximo, entre dois e três anos. Apresenta uma cor salmão muito clara e a frescura que se pretende neste tipo de bebida. Se é bom para acompanhar Leitão à Bairrada? Não desilude perante tão poderoso prato. A sugestão da Quinta dos Abibes é que se aprecie em momentos de lazer, tanto como aperitivo como para acompanhar iguarias da cozinha Bairradina. E também é uma boa opção para acompanhar a sobremesa.

A história do espumante Luíz Costa, das Caves de São João

Uma incursão pelas Caves de São João é uma imersão na história, não só deste produtor, mas também da produção de espumantes, graças aos irmãos José Manuel e Albano Costa, que fundaram a empresa em 1920, apesar de no início se dedicarem à produção de vinhos finos do Douro e licorosos. Quando nos anos 1930 foi lançada a interdição de elaboração de vinhos do Douro fora de Vila Nova de Gaia, as Caves de São João começaram a comercializar vinhos de mesa da região e começaram nas primeiras incursões nos espumantes, com a consultoria do enólogo francês Gaston Mennesson, que veio da região de Champanhe, e que passou uma temporada em Portugal. “É muito engraçado porque nós temos aqui nos livros, a avença que o senhor Mennesson recebia mensalmente por estar aqui que era de 500 escudos”, explica-nos Célia Alves, gerente das Caves de São João, numa visita à adega centenária.

A história do espumante Luíz Costa, das Caves de São João
A história do espumante Luíz Costa, das Caves de São João créditos: Daniela Costa

Ao almoço, um dos espumantes sugeridos para acompanhar o almoço é uma edição especial, Luíz Costa Colheita 2017, que acabou de ser apresentado.

“Vocês são masoquistas porque eu ando a insistir nisto há muito tempo. Um espumante da Bairrada ficaria excelente com as uvas Pinot Noir e Chardonnay e eu não sei porque vocês não aproveitam as minhas uvas para fazer essa experiência, nem que sejam 1000 garrafas”. Esta foi uma conversa reproduzida por Célia Alves, que manteve com Luíz Costa, figura importante ligada ao mundo do vinho, na Bairrada, em tempo de vindima.

“Fizemos a vontade ao senhor Luíz Costa, mas não fizemos 1000, fizemos 3000, com as uvas da produção dele”, continua Célia, garrafas que ficaram na cave a estagiar e que numa fase inicial foi denominado de espumante premium. “O senhor Luíz Costa faleceu no ano de 2012 e em 2013 decidimos fazer uma homenagem”. Se a primeira ideia foi lançar um vinho tinto, aparentemente mais óbvia, visto que este foi o responsável pelo vinho Frei João, aquele que é considerado o primeiro vinho da Bairrada, a decisão foi completamente diferente. Assim, “como este espumante foi, no fundo, elaborado por esta conversa que tivemos com ele, pela força que ele nos deu para fazermos esta experiência, lançámos o espumante com o nome Luíz Costa, em sua homenagem, com as uvas dele”.

A primeira edição foi lançada em 2013. Este ano é lançada a sexta edição. Aquele que começou por ser um espumante de homenagem, é hoje uma referência fixa das Caves de São João.

Num fim de semana dedicado aos espumantes, o Pai Abel 2013 da Quinta das Bágeiras veio desviar-nos a atenção

Pensar na Quinta das Bágeiras é pensar na figura de Mário Sérgio, a cara da marca. Exímio contador de histórias, é um exemplo de bem receber na Bairrada e as suas partilhas ajudam a perceber o caminho que percorreu até chegar onde chegou. “Já quando andava na escola gostava de ficar ao pé do melhor aluno. Ainda hoje, os meus colegas que eram melhores alunos, são todos meus amigos”, introduz. Mas a analogia é simples: “se eu tiver de copiar por alguém, que seja quem vai à frente. E quem vai à frente é França, o resto é conversa. Os vinhos caríssimos franceses não são os de 2020 ou de 2021”, enfatiza.

Na sua opinião, “um vinho muito bom, é aquele que nós bebemos agora e gostamos muito. Um grande vinho é aquele que ao fim de 10 ou 20 anos nós gostamos muito. Até agora, alguns dos que eu tenho são bons vinhos. Se são grandes vinhos, só o tempo o dirá”, afirma.

Num fim de semana dedicado aos espumantes, e depois de uma tarde de provas (de espumantes), o que acabou por sobressair ao jantar foi um vinho branco, o Pai Abel 2013. Foi uma lufada de ar depois de tantos espumantes, inclusive da Quinta das Bágeiras.

Este vinho, que também tem a sua versão em tinto, é uma homenagem a Abel Nuno, da segunda geração da Quinta das Bágeiras. De acordo com a marca é uma referência que se quer com carácter e uma estrutura forte.

E talvez o vinho que estavamos a precisar provar em dias que envolveram muitos espumantes, acrescentamos nós.

Elpídio, o fundador das Caves do Solar de São Domingos que deu nome a uma gama de espumantes

Chegar às Caves do Solar de São Domingos é também entrar numa aula de história de vinhos. Desde 1937 que produzem espumantes, vinhos da Bairrada e aguardentes (será difícil não encontrar uma aguardente bagaceira nas prateleiras na casa dos pais ou avós que não seja São Domingos).

“Temos uma referência de espumante que se chama Elpídio. E esta foi alargada para três referências: Superior, Elpídio Velha Reserva e Elpídio Cuvée. Estamos aqui a falar de uma gama de espumantes de qualidade superior, com várias vertentes, com três composições diferentes, mas de igual qualidade”, explica-nos Susana Pinho, enóloga das Caves do Solar de São Domingos.

Esta gama é uma homenagem a Elpídio Martins Semedo, fundador das caves, que tinha um sonho. “Em 1937 ele quis contruir umas caves para produzir espumante - ele é um aficionado dos espumantes – e mandou contruir estas caves que vamos visitar, tudo feito à mão”, complementa.

“Os lotes são feitos na vinha, praticamente, nós sabemos de onde vão surgir as uvas para cada lote de espumante, tudo feito em separado, em caixas pequenas de 20 kg para evitar que haja a maceração da uva, para que chegue integra à adega. Os lotes depois são feitos, em novembro, com todo o cuidado”, explica-nos ainda Susana Pinho que resume também a filosofia que procuram nos vinhos. “Acidez mais elevada e menor maturação para vinhos mais leves, PH baixo e acidez alta para garantir longevidade”.

Elpídio, o fundador das Caves do Solar de São Domingos que deu nome a uma gama de espumantes
Elpídio, o fundador das Caves do Solar de São Domingos que deu nome a uma gama de espumantes créditos: Divulgação

Antes de nos sentarmos à mesa e para acompanhar morcela com broa e pastéis de bacalhau é-nos servido o Elpídio Cuvée 2016 (PVP 5,65€), com 60% de Baga e 40% de Sauvignon Blanc.

De acordo com a descrição do produtor, este espumante “requer um momento especial e apropriado que pode ser a dois ou em momentos de festa”, momento esse que “deve ser vivido todos os dias em todas as ocasiões”. Que não nos faltem motivos para comemorar, então.

O SAPO Lifestyle visitou o I Encontro Nacional de Espumantes a convite da Câmara Municipal da Anadia.