Sobre Ferran Adrià é comum escutar-se entre chefes de cozinha: “Se há pares de profissão que são os Rolling Stones, ele [Adrià] é o Mick Jagger”. Há quem lhe trace mesmo o elogio de ser o maior cozinheiro de toda a História. Monstros sagrados da cozinha, como os franceses Joël Robuchon e Paul Bocuse, disseram, respetivamente, do catalão Adrià ser “o melhor cozinheiro do Mundo, o cozinheiro que faz as coisas mais interessantes”.
Ferran, 57 anos, há oito anos sem um restaurante de portas abertas, veio a Lisboa trazer aos cozinheiros portugueses uma mensagem aparentemente simples: “Pensar e Criar”.
Adrià fê-lo partindo do seu próprio percurso, desmontando-o retrospetivamente. Aos presentes no Estrella Damm Gastronomy Congress, encontro que decorreu na Lx Factory, pretexto para a deslocação do multipremiado chefe de cozinha à capital portuguesa, Adrià exibiu um vídeo com pouco mais de dois minutos. O que vemos nesta peça visual de produção doméstica é uma comemoração esfusiante de dezenas de cozinheiros, equipa de sala e pessoal administrativo. O lugar: Restaurante elBulli, três estrelas Michelin, em Roses, na Catalunha. O ano: 2011. Por que comemora Ferran Adrià e a sua equipa em torno de um singelo Fondue?
Explica-nos o próprio: “Neste dia encerrei o meu restaurante. Passei para um ciclo novo de pensamento. Naquele dia de julho houve alegria, porque todos sabíamos que não acabava ali”. E não acabou. Adriá criou uma Fundação e anunciou recentemente dois projetos tão grandes quanto a sua ambição: a Bulligrafía e o elBulli 1846. Um regresso em 2020 que, promete, “será uma revolução”.
Adriá criou uma Fundação e anunciou recentemente dois projetos tão grandes quanto a sua ambição, a Bulligrafía e o elBulli 1846
Vamos por partes, através dos argumentos do homem que começou a trabalhar como lavador de pratos, em 1980, no Hotel Playfels, em Ibiza, e que em poucas décadas transformou qualitativamente a cozinha espanhola e mundial: “Até à atualidade não se produziu verdadeiro conhecimento em torno gastronomia. Quem consegue apontar a obra total sobre o mundo dos vinhos? Ou, falando de cocktails, a obra completa sobre os mesmos? Não estou a falar de compilações de receitas”. Para o cozinheiro catalão, nascido em maio de 1962, “para algo se vender tem de existir. Todos conhecemos Pablo Picasso. Mas quem conhece Marcel Duchamp? A diferença entre os dois artistas plásticos é que o primeiro está representado em dezenas de museus. Duchamp talvez fosse melhor do que Picasso, mas não se tornou tão conhecido. Se não deixamos legado, não somos nada”.
E Adrià quer deixar legado pois é o homem que, aos 50 anos, fechou o seu restaurante elBulli, nos píncaros da fama. “Na época, com uma lista de dois milhões de pessoas a solicitarem um jantar, quanto podíamos cobrar? Um milhão de euros. Cobrava 250,00 euros por uma refeição. Havia quem estivesse disposto a pagar um milhão de euros pela experiência de um dia”. Refira-se que Ferran Adrià, nunca aceitou estas propostas milionárias para um restaurante que “dava prejuízo. Porque todos nós achávamos que estávamos a fazer algo importante. O elBulli não era para ganhar dinheiro. Isso fazíamos com outras áreas do negócio”, sublinha este homem que até há poucos anos não tinha carro, não usa roupa de marca e vive num modesto apartamento, em Barcelona.
Cobrava 250,00 euros por uma refeição. Havia quem estivesse disposto a pagar um milhão de euros pela experiência de um dia
Voltando ao legado, para já, Adrià anuncia uma memória digital de proporções épicas. A Bulligrafía de Adrià compila “140 mil elementos digitalizados, assim como artefacto, sobre a memória material e imaterial do nosso trabalho”. Dentro de pouco tempo, este universo com assinatura do chefe catalão verá, ainda, um novo momento. O elBulli 1846 (em homenagem ao ano de nascimento do chefe de cozinha francês Augusto Escoffier), vai nascer no mesmo lugar onde laborou o restaurante homónimo.
“No elBulli 1846 vai haver uma cozinha e uma sala. Mas não estamos a falar de um restaurante. Teremos uma equipa... aliás aceitamos inscrições para a mesma, mas não estou a falar de cozinha, antes de inovação. Vamos ter especialistas de diferentes áreas a pensar a cozinha”.
Quero que os novos cozinheiros sejam melhores do que eu. Não falo inglês, tinha um caráter duro, domino mais ou menos as tecnologias, não conhecia, quando comecei na profissão, a história da alimentação
De acordo com Adrià, “a Fundação [criada em 2014] é para as gerações vindouras. Quero que os novos cozinheiros sejam melhores do que eu. Não falo inglês, tinha um caráter duro, domino mais ou menos as tecnologias, não conhecia, quando comecei na profissão, a história da alimentação”. Com estes argumentos, Adrià quer deixar uma mensagem aos jovens: “Não se deixem manipular”.
Conselhos que o chefe de cozinha estende à gestão do negócio e a forma como um cozinheiro deve olhar para ele: “Qual foi o legado mais importante que deixámos com o elBulli? Não foram as esferificações [associada à cozinha molecular] ou a desconstrução da cozinha. Fizemos pensar milhões de pessoas, mostrámos a nossa filosofia. Tínhamos 40 cozinheiros, 25 responsáveis de sala e todos pensávamos como equipa”.
Centrando-se na gestão do negócio, de acordo com Adrià, “na restauração para sobreviver e inovar é preciso saber gestão e isso é algo transversal a todos os negócios, dos mais pequenos aos de maior dimensão”. O chefe de cozinha alerta para riscos : “50% dos restaurantes encerram ao fim de cinco anos. Outros 25% ao fim de oito anos fecham as portas”.
Números que para Adrià são a imagem de erros de muitos empreendedores espanhóis: “No sexto ano do restaurante, as coisas estão a correr bem, e compra-se um carro desportivo. Estaciona-se a viatura à porta do restaurante e diz-se à equipa, ´que temos de continuar a lutar`. Mas os ordenados não sobem. E, aí, começam os problemas”.
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