Em todas as noites que Sergi Arola podia ter escolhido regressar ao seu restaurante em Sintra, calhou naquela em que sair de Lisboa era um teste à paciência. O dérbi entre Benfica e Sporting, anunciado como jogo do título, tinha paralisado a cidade (o empate facilitou o regresso). O eixo Marquês de Pombal–Avenida da Liberdade já estava fechado e os acessos limitados. A saída da cidade em direção a Sintra pode ter sido difícil, mas o caminho até ao Penha Longa era uma recompensa que justificava o esforço: um jantar no Lab by Sergi Arola, com o chef de regresso a casa, mesmo que por pouco tempo.

Chegámos ainda antes do pôr do sol, o que foi um privilégio. A luz dourada atravessava os campos de golfe e entrava suavemente na sala panorâmica do primeiro andar do restaurante, onde começa a nossa viagem gastronómica. O chef catalão, que agora vive no Chile, regressou a Sintra para reencontrar a sua equipa e apresentar pessoalmente as novidades do Lab, restaurante que fundou em 2015 e que mantém, desde 2016, uma estrela Michelin que teima em não se multiplicar. Já lá iremos.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação créditos: Carlos Vieira

“Temos um hotel com sete restaurantes, com gostos muito diferentes. Então aqui, acabamos por ter uma experiência mais portuguesa”, sublinha Cecília Ferreira, responsável de marketing do Penha Longa.

A experiência começa com um “lollipop” alcoólico — um shot camuflado — quando nos anunciam que vamos fazer nesta primeira experiência uma viagem pelo país. E é isso mesmo: a primeira parte do menu de degustação é uma volta de sul a norte de Portugal, guiada por um galo de Barcelos imaginário. A travessia começa no Algarve, com “caranguejos falsos” de tártaro de caldeirada e lavagante e cenoura algarvia, segue para a Madeira com milho frito e bife de atum, depois para Setúbal com um amuse-bouche inspirado em choco frito e frango assado, com uma infusão de bergamota e moscatel, e um toque de infância — petazetas incluídas.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Tártaro de caldeirada e lavagante e cenoura algarvia créditos: Carlos Vieira

Da Bairrada chega a mini sandes de leitão, servida com espumante local, depois, o Porto, com um prato à base de bacalhau finalizado com vinho do Porto. Por fim, Trás-os-Montes, onde a carne é protagonista, surge sob a forma de um croquete de língua de vaca e tártaro de vitela mirandesa, com referência visual aos Caretos. Tudo isto acompanhado por um grogue sour com citronela — cocktail de assinatura. A guitarra portuguesa toca ao fundo. O fado, discretamente, instala-se.

O chef entra na sala para apresentar o momento final, que define como dedicado às origens do Lab. “No início começámos com um restaurante muito focado nas tapas espanholas. Com o tempo evoluímos para um restaurante que acredito que seja 100% português. Tenho uma trajetória de 20 anos em Portugal, conheço muito bem o país e a equipa é portuguesa”, introduz.

Mas como uma homenagem a esses primeiros tempos, é servida La bomba que não é apenas picante, é histórica. “Chama-se bomba porque é picante, tem aquele pontinho vermelho e é redonda”, explica. Em Barcelona, é tradicionalmente feita assim, com esse formato característico. Mas há mais do que aparência: “Desse tamanho eram também as bombas usadas pelos anarquistas no final do século XIX e início do século XX. É uma bomba típica, daquelas que aparecem nos filmes”, diz. A referência é direta ao período conturbado da história catalã, e onde este tipo de explosivo era comum. “É daí que vem o nome. É uma espécie de humor muito catalão”, remata. No prato, o tom descontraído não retira rigor à execução. Terminamos esta parte com o “prato que me fez mais famoso”, de acordo com Arola: as patatas bravas.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Língua de Vaca e Tártaro de Vitela Mirandesa créditos: Carlos Vieira

Descemos à sala de refeição para continuar a experiência. “O chef Vladimir [Veiga] é meu irmão”, diz Arola. É ele que assina o emblemático pão com manteiga de anchovas e manteiga de fermento tostado, envelhecido quatro anos. O azeite vem de Trás-os-Montes, o queijo é da serra. Há quatro pães: bolo do caco com batata-doce, pão crocante feito com água, sal e farinha, um pão recheado de feijoada brasileira e uma focaccia finalizada com cardamomo, numa homenagem às expedições marítimas.

O jantar no Lab pode seguir três caminhos distintos, sendo esta uma das mais recentes novidades. Trata-se da renovação dos três menus de degustação, com percursos diferentes, mas a mesma exigência técnica e identidade bem definida, que traduzem a visão do chef e as suas múltiplas referências: a memória, o território e o mundo.

O “Em Memória” é aquele que mais se aproxima da alma do restaurante, uma espécie de carta de amor ao percurso do Lab, com pratos que resistem ao tempo e outros que se foram juntando pelo caminho, sem perder coerência. Aqui quer-se fazer justiça à identidade da casa.

Começa com uma homenagem ao próprio lugar: “Quinta da Penha Longa” dá o nome ao primeiro momento: gema curada, cebola caramelizada, feno e caviar oscietra. Segue-se o carabineiro, com cenoura algarvia, baunilha de São Tomé, beterraba e laranja, sabores doces, terra e mar. A raia com maçã verde e creme de feijão preto surpreende pela combinação improvável.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Vitela Mirandesa créditos: Carlos Vieira

O prato de carne traz-nos de volta a Portugal: vitela mirandesa com malte, jus de madeira, escabeche de fungos e pinhões. E por fim, a sobremesa “Furnas”, com ananás dos Açores, alfarroba, café e manteiga do Pico, uma interpretação do calor vulcânico da ilha em versão elegante.

O “Horta no Prato” desafia o lugar-comum de que a cozinha de autor precisa de proteína animal para ser complexa ou memorável. Este menu 100% vegetariano e com versões adaptadas para veganos, mostra como o vegetal pode ser protagonista, com técnica e sem perder textura ou profundidade. O primeiro prato, terrine de tomate com tangerina, manjericão e caviar balsâmico, é fresco. Segue-se “Quinta da Penha Longa”, uma gema curada com cebola caramelizada e feno, uma versão sem caviar, mas com o mesmo peso aromático e textura do menu anterior. O canelloni de alcachofra com malte, o arroz carolino com abóbora, queijo da Serra, baunilha e romesco são os pratos que se seguem encerrando com “Bouquet” com base de cidreira, flor de laranjeira e alperce.

Por fim, “Herança” é o menu mais aberto ao mundo, e talvez o mais simbólico, num tributo aos Descobrimentos, guiado pela ideia de cruzar sabores e influências de vários continentes: Índia, China, Japão, África (com destaque para Cabo Verde, terra natal do chef Vladimir Veiga) e, naturalmente, as tradições portuguesas levadas além-mar. Mais do que uma fusão de ingredientes, é um exercício de ida e volta, entre o que Portugal recebeu e o que deixou pelo caminho.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Creme de Amêijoa, caviar balsâmico e tempura de ostra créditos: Carlos Vieira

A viagem começa com o mar: ostra em tempura, creme de amêijoa e caviar balsâmico, um prato que reúne técnica asiática, produto atlântico e intensidade salina. Segue-se a já clássica Moleja de vitela, agora servida com uma feijoada de lentilhas. Depois, o peixe: robalo do mar, servido com alho-francês, rábano e nage de escabeche. A carne volta à mesa com sotaque quente: cordeiro de leite com caldo Mancareu de alho negro.

No fecho, duas sobremesas que encerram o percurso como se fossem dois capítulos distintos. Primeiro, “Ilha dos Amores”, inspirada nos Cantos de Camões e nos encontros imaginados entre Oriente e Ocidente, com lichia, canela e ruibarbo. Depois, a “Sardinha Viajante”, uma das sobremesas icónicas do Lab: doce de leite, laranja amarga e chocolate gold, sempre com apresentação renovada, mas fiel à forma original de sardinha. Nunca sai da carta, apenas muda de pele.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Sobremesa Ilha dos Amores créditos: Carlos Vieira

Tanto o “Em Memória” como o “Horta no Prato” têm o valor de 158€, com a possibilidade de harmonização vínica por 260€. Para quem quiser elevar ainda mais a experiência, há uma versão com momento Cognac Louis XIII (4cl) incluído, que fixa o valor total em 360€. Já o menu “Herança”, tem um valor de 192€, com harmonização por 324€ ou, na versão mais completa, 424€ com o Cognac.

Esta opção com Cognac Louis XIII, incluída nas versões mais exclusivas de cada menu, é uma novidade relativamente recente. Introduzida há cerca de três meses, surgiu como um extra pensado para quem procura um final distinto e, de acordo com os responsáveis, tem tido uma adesão interessante. Longe de ser apenas um gesto de ostentação, este momento promete acrescentar uma nota de luxo discreto à experiência completa do Lab.

A eterna espera pela segunda… e pela terceira estrela Michelin

“Não sei o porquê de só termos uma estrela Michelin!” A frase dita por Sergi Arola numa visita à mesa, não soa amarga, mas revela alguma perplexidade pelo facto de Portugal ainda não ter conquistado uma terceira estrela Michelin.

Apesar de reconhecer que há aspetos do processo que lhe escapam — “há coisas que não entendo e nunca entenderei” —, Arola confessa que esperava que a esta altura já existisse esse reconhecimento. “Pensei que, agora que a Michelin se está a ocupar mais de Portugal, teriam dado alguma terceira estrela por aqui, ou pelo menos distribuído mais duas estrelas”, explica.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação créditos: Gonçalo Miller

Para ele, a ausência de segundas e terceiras estrelas revela um desafio maior: “Quando viajas um pouco, vais a França, Itália, Japão, Estados Unidos, Nova Iorque, São Paulo, e observas os critérios para uma, duas ou três estrelas, pensas: o que é que temos de fazer em Portugal para que nos concedam uma terceira? Para que nos possam dar mais segundas estrelas também?” O chef questiona-se abertamente: “Não sei o que temos de fazer”. No fundo, revela uma dúvida que é partilhada por muitos no meio gastronómico português.

Sergi Arola é daqueles chefs que não passam despercebidos. Catalão, nascido em 1968, e com uma veia rebelde que se sente em tudo o que faz. Apaixonado por motos, música e, claro, pela cozinha. Mas também por Espanha, Portugal, Chile e tudo o que o mundo tem para oferecer. É uma verdadeira estrela de rock’n’roll, só que, além das guitarras, os tachos e panelas também fazem parte daquilo que é.

A sua formação inclui passagens por restaurantes de renome mundial, como o El Bulli de Ferran Adrià e o restaurante de Pierre Gagnaire, que moldaram o seu estilo irreverente e inovador. Ao longo da carreira, levou o seu conceito a sítios tão diferentes como Abu Dhabi, Mumbai, Verbier, Santiago do Chile, Barcelona e Madrid, conquistando um lugar de destaque na gastronomia mundial. E não ficou só pelos fogões: tornou-se uma figura conhecida na televisão, graças a programas como o MasterChef ou Top Chef. Hoje em dia, já não está tão interessado em publicar livros, prefere focar-se nos seus restaurantes e na televisão. O que Arola tem é um nome que já é uma marca, e isso não é para todos.

Mas há uma faceta menos conhecida que merece destaque. O chef é também um talentoso artista. Quando está a criar um prato, não se limita a experimentar na cozinha. Em vez disso, pega num caderno e desenha o prato com o respetivo empratamento, com todos os ingredientes discriminados. É quase como uma obra de arte em papel. Depois, envia esse desenho à sua equipa de chefs – Vladimir Veiga, em Portugal, chef Massimiliano Ascione em Verbier, na Suíça, e para José Juan Rodriguez, em Monterrey, no México – para que possam replicar fielmente a sua criação. É um método pouco comum, que revela a atenção ao detalhe e a exigência que define o seu trabalho, onde a técnica se alia à criatividade numa combinação muito própria. Desta vez também partilhou fotos com o chef Vladimir, depois de lhe ter enviado os primeiros desenhos anteriormente.

Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação
Três menus, um país no prato e uma estrela que sabe a pouco: Sergi Arola e o Lab em constante transformação Chef Vladimir Veiga créditos: Divulgação

Sergi Arola guarda muitos desses cadernos de desenho, apesar de admitir ter perdido alguns ao longo dos anos. “Devo ter uns 20 ou 25. Há coisas que já não fazem sentido, mas continuo a guardar.” Alguns pratos antigos regressam ao menu, como uma raia de 2016 que, diz, foi um dos pratos que contribuiu para a primeira estrela Michelin do restaurante e que vinha do restaurante de Madrid.

Lab by Sergi Arola

Morada: Penha Longa Resort
Estrada da Lagoa Azul, Sintra

Rerservas
(+351) 219 249 011
lab@penhalonga.com
www.labbysergiarola.com

Horário
Aberto ao jantar, de quarta a sábado, das 19h00 às 22h30

Lançamos a provocação na despedida: para quando as duas estrelas Michelin? A resposta vem com um sorriso meio trocista: “Nós pertencemos àquela categoria de restaurantes que merecem muito mais do que aquilo que a Michelin lhes dá.” E acrescenta, sem se levar demasiado a sério: “Eu não sou dos preferidos dessa categoria. Outro dia até me ri porque o Guia Repsol nos deu um Sol. E eu, em Madrid, sempre tive três.” Não há azedume, apenas a ironia de quem já viu muito. Em setembro, o chef promete voltar para uma nova empreitada.

O SAPO Lifestyle esteve no Lab by Sergi Arola a convite do Penha Longa.