Nas alturas, onde o vento sopra mais forte e o frio da noite é rude, setembro traz um prenúncio de outono ríspido. No calendário serrano da Estrela prepara-se uma migração sazonal, com origens anteriores à Nacionalidade, recuando à ocupação romana e às aventuras nos Hermínios do pastor e guerreiro Viriato. É chegada a hora, antes das neves, dos pastores e seus rebanhos de ovinos descerem às terras baixas, atravessando a larga Cova da Beira, subindo à Serra da Gardunha para, dai, chegarem longe, para lá do Tejo, ao Alentejo até às pastagens ricas próximas a Ourique. Em Junho, pelo São João, o caminho é inverso. Secam os pastos nas terras baixas, avançam as culturas do milho e da batata. Por seu turno, crescem viçosas as pastagens nos baldios acima dos 500 metros da Estrela. Sobem as ovelhas até próximo do céu. Completa-se mais um ciclo anual de Transumância.
Hoje, esta é uma narrativa de sobrevivência perpetuada nas recolhas documentais, assim como em espaços museológicos que recuperam as memórias da transumância. O pastoreio é atualmente uma atividade em vias de extinção, o gado apascenta em pastagens controladas, a própria paisagem serrana mudou, com os fogos florestais, abandono dos territórios, introdução de novas culturas e modelos de criação animal.
Um cenário onde saem valorizadas iniciativas que visam manter e lançar no futuro traços da identidade das populações serranas. Isso mesmo recria há 15 anos o município do Fundão chegado o mês de setembro. O “Chocalhos, Festival dos Caminhos da Transumância”, tornou-se roteiro obrigatório para milhares de visitantes que acorrem à vila de Alpedrinha, na vertente sul da Gardunha. Uma iniciativa do município do Fundão e da Junta de Freguesia de Alpedrinha, tornando a localidade com perto de dois mil habitantes o epicentro das memórias da pastorícia, das artes e ofícios, dos produtos decorrentes como o Queijo Amarelo da Beira Baixa produzido com leite de ovelha e cabra, e o património genético que é preciso salvaguardar. Veja-se o caso da autóctone Ovelha Churra do Campo, em 2004 dada quase como extinta, hoje em lenta recuperação. Um animal pequeno, adaptado ao calor e com um leite rico em gordura, excelente para queijo. Pesa em desvantagem para o animal os 25 ml de leite por ordenha. Pouco quando comparado com o quase litro de outras raças ovinas e caprinas, mais dadas a produções rentáveis.
Serra acima com o rebanho:
Momento alto deste “Chocalhos”, a recriação da Rota da Transumância. Pelas oito da manhã de domingo, 18 de setembro, a Praça do Município, no Fundão, fervilha de expectativa. Já se juntaram centenas de participantes para três horas de caminhos na serra. Em breve chegarão as ovelhas e os pastores. Com eles estará aberto o cortejo que ao longo de seis quilómetros recria parte da antiga rota de cinco a seis dias, desde a Estrela até Alpedrinha.
Um frenesim de chocalhos agita o Largo. Chega o rebanho de ovelhas Bordalesas, num torvelinho de lã rala e castanha. Ergue-se um coro de balidos no carrocel de 60 animais em movimento entre a multidão. À chamada dos pastores, o grupo arranca em direção à serra. A abrir a comitiva, os chocalheiros de Vila Verde de Ficalho, da alentejana Serpa. Homens de diferentes idades agitam em harmonia dezenas de chocalhos. “O grupo tem 20 anos”, adianta Bento Ramos Sargento, “somos os únicos a nível mundial. O que aqui vê são 30 chocalhos, todos diferentes uns dos outros, alguns com vários quilos”. Ficamos também a saber que o tamanho e comprimento do badalo determinam um som diferente. Segredos de uma arte reconhecida pela UNESCO como Património da Humanidade.
Vida de pastor:
Ala em direção à serra! A alta Gardunha espera pelos seus pastores e rebanho. Um dorso granítico e xistoso, com 20 quilómetros de comprimento, povoado de carvalhos, oliveiras, urzais. Uma paisagem que integra a reserva natural Rede Natura 2000 e o Geopark Naturtejo. Esta é também uma terra de cerejais, não estivéssemos nós na Cova da Beira e na vertente norte da montanha. Aqui aconchega-se a aldeia de Alcongosta, capital regional da cereja, motivando anualmente, em junho; um festival. Uma iniciativa num ciclo de eventos que acompanha o calendário agrícola da região e onde cabe, também, o pêssego, o queijo, os míscaros e o azeite.
Por agora os cerejais descansam, preparam-se para o inverno duro. Nos seus ramos já não há flor, nem o fruto carnudo essencial para a economia da freguesia e do concelho. Alcongosta, a meia encosta da serra, é terra que obriga a subida árdua. Um relevo que parece não afetar ovelhas e pastores. Gil Cabecinha da Cruz já foi pastor. Nasceu no Sabugueiro, na Serra da Estrela, mas há 20 anos faz vida no Fundão. É com ele que franqueamos a porta da vida errante de pastor. “É um trabalho muito solitário, uma labuta que não dá descanso todos os dias do ano”, conta o homem que trocou a pastorícia pelo trabalho na Escola Profissional do Fundão. “O bom pastor tem de ter paciência, saber como entrar nos terrenos. Sabe que o sorgo mata uma ovelha?”, pergunta Gil Cabecinha e acrescenta, “temos de saber selecionar as melhores pastagens se queremos bom leite”.
Meses de convívio diário com as ovelhas geram empatia mútua entre animais e pastor. Algo que se traduz numa espécie de linguagem expressa em arremedos de assobio, silvos e outros chamares que nos parecem encantatórios. Aqui, entre campos de batata, milho e aveia, sob um sol forte de setembro, Gil Cabecinha lança uma ordem ao rebanho que estaca. Os animais descansam alguns minutos. “Está a ver, temos ali a Luisinha e a Cabreira”, aponta o antigo-pastor para o rebanho. Sabe o nome de todos os animais, estes reconhecem-lhe o odor. Gil Cabecinha aconchega na mão o extremo do cajado, também ele produto de adaptações milenares. “O cajado tem de ter de comprimento a altura do ombro. Sabe a razão? Para apoiarmos nele o braço e o queixo. Descansamos e estamos vigilantes”.
Na próxima página desça a serra da Gardunha com os pastores.
Há festa na vila:
Aproximamo-nos do cume da Gardunha. Avançamos em lajedo antigo, calçada que remonta ao período romano. Hoje faz calor, bem diferente das noites geladas da montanha, particularmente na Estrela. Ela ali está, a Norte da Gardunha, altiva. Lá, o verão a mais de 1000 metros de altura é duro. “Faz muito frio à noite”. Recorda Gil Cabecinha, “o pastor que noutros tempos subia aos pastos no verão tinha a sua casa transportável. É a choça construída com ramos, palha, pouco mais. Isto são coisas do antigamente, hoje em dia desapareceram”.
Uma memória que vive contudo, em alguns núcleos museológicos, como o da aldeia de Salgueiro, a poucos quilómetros da capital de concelho. O Núcleo Museológico da Pastorícia para além de um conjunto de artefactos ligados à arte pastoril apresenta registos audiovisuais de entrevistas com os pastores em relação às suas memórias, às suas práticas e aos percursos de transumância.
Franqueado o pico da montanha, eis as planícies que tocam a Sul em Castelo Branco e prenunciam o Alto Alentejo. Próximo, Alpedrinha está a poucas centenas de metros. Ou melhor, ouve-se a poucas centenas de metros. No seio da localidade a festa é rija. Uma semana de folguedo, com bombos, chocalhos, uma representação do País Basco, grupos folclóricos animam a terra. Junta-se a vontade dos Alpetrenienses em abrir a porta de suas casas e convidar a petiscar. Há dezenas de habitações convertidas em tasquinhas e, nestas, sobre o balcão, os licores, as aguardentes, os enchidos, os queijos, os petiscos de tacho, os doces regionais.
Sobe a festa de tom com a entrada do rebanho e comitiva na vila. Primeira passagem pelo Palácio do Picadeiro, estrutura do século XVIII convertida pelo município em espaço de conhecimento do território, nomeadamente da transumância e da arte dos embutidos em madeira. O rebuliço nas ruas estreitas agita o rebanho. Um sobressalto rapidamente apaziguado pelos pastores nos metros finas de mais uma edição da Rota da Transumância.
Uma recriação, é certo, num tempo em que as migrações de gado se fazem na garupa de camiões. Mas uma encenação com objetivos bem determinados, como nos confidencia, já em Alpedrinha, ao som de música Basca, o presidente do município Paulo Alexandre Fernandes. “Olhamos para o território de uma forma integrada, inovando face a produtos locais. Temos nesta região várias Denominações de Origem Protegida, nomeadamente o azeite, o borrego, o vinho, cereja e queijo. Exportamos para os Estados Unidos, Médio Oriente, Chile, países nórdicos, Brasil”.
De acordo com o edil, “esta Rota da Transumância inserida no ` Chocalhos` valoriza um produto com forte presença na região, o queijo misto muito rico”. Ainda de acordo com o autarca, “este produto representa para a economia local 30 milhões de euros por ano. Temos neste momento 43 queijarias todas familiares que produzem anualmente três milhões de queijos. Uma capacidade instalada que pode produzir o dobro”.
Para Paulo Fernandes “a proteção e valorização do património natural e humano, o alargamento das áreas protegidas atrairá mais visitantes ao Fundão. Dai a valorização dos percursos da natureza”. Isto numa região que se cruza com as Aldeias Históricas, Aldeias do Xisto e uma rede de áreas protegidas.
Para saber mais sobre a Transumância, um estudo de Maria da Graça Antunes Silvestre (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
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