A Quinta da Ramalhosa fica em Tondela, na sub-região de Besteiros, no Dão. Passou das mãos do avô de Micael, Adriano Batista, para as do pai, Paulo Batista. Este era um pequeno projeto familiar cuja produção de vinho servia para consumo próprio e venda a granel. Entretanto, o paradigma mudou e hoje conta com nove referências no mercado.

A evolução deve-se a Micael Batista que promete não ficar por aqui. O SAPO Lifestyle conversou com o jovem empreendedor.

consegui ter uma infância com liberdade

Começaste muito cedo neste trajeto, aliás, demasiado cedo. Conta-nos: como foi a tua infância e o que despertou este interesse, primeiro, pela agricultura – porque tiraste um curso de produção agrária – e, depois, pelos vinhos?

Posso dizer que fui – ou ainda sou – das últimas, ou das poucas gerações, que ainda conseguiu ter uma infância minimamente divertida, porque, aqui no interior, o mundo é um bocadinho à parte. Ainda consegui ter uma infância com liberdade: eu ia para a escola sozinho – era na aldeia –, ainda ia o meu avô buscar-me e, isso tudo, está a perder-se com o tempo. Depois da escola ia brincar com os meus amigos, íamos para casa uns dos outros, até às tantas da noite. Ficávamos cheios de pulgas, porque andávamos no meio do mato. Acho que essa é a parte ainda boa – que na altura não tinha graça nenhuma –, mas que, olhando para os dias de hoje, penso que fui sortudo. Sempre achei que sou e não troco a aldeia por nada. A minha infância sempre foi muito feliz. Lembro-me perfeitamente quando era pequenino, aos cinco anos, de ir para as feiras com os meus pais… daí esta proximidade com a agricultura, com a parte das vendas, com a parte comercial. Sempre foi uma coisa que me apaixonou bastante, é uma coisa que me move: lidar com pessoas, comunicar com pessoas, conhecer vários géneros, várias pessoas. É esta parte que me fascina. Gosto imenso. Sim. Falo demasiado (risos).

E qual é a aldeia onde cresceste? 

É Nagozela, pertence ao concelho de Santa Comba Dão. É onde cresci, vivo e está implementada metade da minha operação. Lembro-me também de outra parte da minha infância aqui na Quinta. Eu tenho mais uma irmã, o meu pai é filho único. Então, a minha parte paterna só teve dois netos e, como eu era o único rapaz ( ainda havia um bocado aquela mentalidade), vinha sempre para aqui. Brincava com o meu vizinho, fazíamos construções... É outra das áreas que gosto, a do imobiliário – só não tenho é ainda dinheiro –, de construir. Fazíamos obras com lamas, destruíamos, tínhamos um quintalzinho pequenino, que depois plantávamos umas batatas. Se em duas semanas não desse batatas, arrancávamos tudo outra vez. E voltávamos a plantar outras coisas, a pôr flores... Tínhamos um quintalzinho que tomávamos conta, eu e o meu vizinho, aqui em Mouraz, que pertence a Tondela, ou seja, é o limite do conselho de Santa Comba com Tondela. É aqui onde a minha vida se passa,  na aldeia de Mouraz. Tenho a quinta aqui, a adega, a quinta que a minha avó e o meu avô compraram e plantaram as vinhas. Também vivi aqui grande parte da minha infância. Depois, na minha aldeia, Nagozela, foi onde estudei, onde ainda moro e onde tenho a minha cervejaria, que é o projeto que quero lançar para o ano.

Fez o primeiro vinho aos 17 anos e não parou. Conheça Micael Batista, o jovem por trás do sucesso da Quinta da Ramalhosa
Fez o primeiro vinho aos 17 anos e não parou. Conheça Micael Batista, o jovem por trás do sucesso da Quinta da Ramalhosa Em 2015, aos 17 anos, Micael fez o seu primeiro vinho, que chegaouao mercado como Quinta da Ramalhosa Field Blend tinto 2015 Divulgação

Até foi curioso falares que tens uma cervejaria, porque durante o curso criaste uma cerveja artesanal que ganhou dois prémios.

Lembro-me perfeitamente de uma conversa com o meu pai: " Tu cresceste na agricultura… por que não tiras um curso profissional?".  E assim foi. Fui para Montemor-o-Velho, entre Coimbra e Figueira. Com 15 anos, lá vai o Micael Batista. Só vinha aos fins de semana para casa. Ainda hoje me pergunto como é que os meus pais me deixaram fazer isso. Ainda bem que me deixaram fazer porque é nestes momentos que ou nos tornamos o maior rufia ou nos tornamos a melhor pessoa. Pus à prova as bases que recebi durante a minha infância. De uma pessoa super desmotivada [com o ensino geral], acabei o curso como o melhor do ano. Acabei o meu curso com a parte da cerveja artesanal. Porquê? Pensei, há muito vinho, tenho que me diferenciar um bocadinho. Então, por que não cerveja artesanal? Estava a rebentar a moda da cerveja artesanal, estamos a falar de 2014, 2015, 2016, em que as pessoas faziam cervejas em casa.  Hoje tenho a cerveja, que quero ver se para o ano implemento no mercado, tenho o vinho, onde também fiz parte do projeto e tenho a base de negócio dos meus pais. Ajudo-os sempre que posso porque também é daí que nasce algum rendimento para ainda sustentar o negócio dos vinhos. Acredito que mais um ano  consigo que as coisas melhorem.

Está tudo ainda step by step?

Sim, estão muitas coisas consolidadas, não sei o que eu quero para a minha vida, só que ainda há coisas que eu tenho que jogar. Mesmo hoje, vou ter um grupo de quase 20 pessoas a jantar, vou estar a cozinhar para eles. Fui agora comprar o bacalhau, vou fazer um arroz de bacalhau.

o que me move ainda mais é a parte da gastronomia

Então, mas o que é que tu não fazes? Também cozinhas?

Eu gosto muito da parte da gastronomia. É uma coisa que me fascina e que, no meio disto tudo, acho que o que me move ainda mais é a parte da gastronomia. Tenho como intenção tirar um curso fora do país, de média duração, porque eu gosto imenso de gastronomia, move-me. Gosto de criar, adoro ir a restaurantes e fazer pairings… Às vezes, tenho amigos que têm restaurantes e que me convidam para dar opiniões. Então, quero começar a estudar um bocadinho mais.

Estou aqui a descobrir muita coisa.

Está tudo ligado ao vinho. O turismo está ligado, que é uma coisa que também queria fazer, mas só que aí já tem que ser algo muito bem ponderado. É muito investimento, tens de ter uma marca consolidada no mercado para fazer sentido e trazer pessoas para cá. Mas gosto muito da parte da gastronomia, do vinho, das bebidas. Gosto, move-me bastante. O meu mundo está muito à volta disso.

E os jantares, por exemplo, este que hoje vais fazer, são abertos ao público ou é algo mais restrito?

É um pouco mais restrito. Por acaso, este que vou ter hoje, é de um grupo de amigos. Amigos que têm 40, 50 anos. São do grupo da Patrícia (ela também vem), a nossa enóloga. A Patrícia Santos está connosco desde o início. Vamos juntar-nos aqui todos e relaxar um bocadinho.

Mas, às vezes, costumo fazer jantares com grupos. As pessoas entram em contacto comigo, marcamos, fazemos um plano, fechamos o dia, eu cozinho para eles, bebemos uns copos e provamos umas coisas diferentes na adega.

Para vender [o vinho] tinha que ser uma marca

Entretanto, tiveste esta experiência (o curso) e, depois, decidiste assumir a parte do negócio do vinho da tua família. Não pensaste em fazer outras coisas? Como ainda eras muito novo.

Sim, era novo, e esta ingenuidade, esta maluqueira, ingenuidade por parte dos meus pais... Lembro-me  perfeitamente de dizerem: "o desemprego é garantido". Os meus pais são empresários, têm muita aquela veia da independência, do risco – ponderado, claro.  Agora, está cá o filho para fazer um risco mais arriscável, maior. Rapidamente, percebemos com uma dúzia de contactos no meio, que as coisas não eram bem assim. Para vender [o vinho] tinha que ser uma marca, tinha que ter uma garrafa, tinha que ser todo um storytelling por detrás do produto. Quando eu tirei o curso profissional foi com o intuito de pegar neste negócio, mas naquela: se dá, dá, se não dá, não dá. Mas o melhor possível para ter uma noção do que é que eu realmente quero. Sempre com bases consolidadas, se for para a agricultura, tenho a base dos meus pais, se for para o vinho, ok, tinha aqui qualquer coisa. A única coisa fora da caixa era a parte da cerveja.

Da cerveja?

Sim, era o nosso Calcanhar de Aquiles, uma coisa mais fora da caixa. Depois, parei um ano e comecei a tirar enologia.  Então tirei este curso já com o intuito de perceber um bocadinho das bases. Agora, eu era jovem? Era. Podia gostar de outras coisas? Podia. Só que a parte comercial é o que me move.

Foi juntar o melhor de dois mundos.

Sim, a melhor escola do mundo é a feira, é o mercado, é onde se aprende mais.

Depois, durante esse processo, produziste o teu primeiro vinho?

Tinha 17 anos e engarrafei-o quando tinha 18.

Muito cedo... 

Foi um vinho que fiz com o meu pai, em 2015, mas percebemos que o caminho não era aquele. Sabiamos fazer vinho, mas queríamos algo mais. E aí conhecemos a Patrícia através do mundo das feiras, de um dos viticultores que trabalha numa quinta, que tivemos negócios em comum. Foi nosso fornecedor de morangos que passou o contacto ao meu pai e que depois passou-o a mim.

E foi desde aí...

Foi desde aí, sim. Depois conhecemo-nos pessoalmente e começamos a abraçar o projeto. O meu pai já tem pouco cabelo, é careca, mas já punha as mãos ao cabelo porque estava tudo mal feito, mal estruturado. A Patrícia, desde o início, fez-nos uma consultoria do zero para pôr tudo como deve ser.

Micael Batista e Patrícia Santos
Micael Batista e Patrícia Santos Micael Batista e Patrícia Santos créditos: Divulgação
Tenho a sorte de ter mulheres muito bem resolvidas à minha volta

Tem outra visão.

Tem uma visão do terreno, tem várias experiências, várias dimensões de projetos. É a melhor pessoa com quem posso aprender. Estou completamente tranquilo. Esse vinho aos 17 anos... A Patrícia provou todos os vinhos que cá tinhamos e o único que se safou, foi esse. Já me viu algum potencial e também achou engraçado o vinho feito com o pai aos 17 anos. Ela basicamente finalizou-o, preparou o vinho e engarrafou-o em 2018. Começámos em 2017 do zero com a Patrícia nas vindimas. Depois veio a história dos incêndios... Um mês depois das vindimas que fizemos em setembro. Em outubro, veio o incêndio, que nos desvastou tudo o que eram alfaias, alfaias novas que nunca tinham ido à terra, tratores, o pavilhão que estava todo dimensionado para pôr as alfaias. O pavilhão tinha meio ano e ardeu. Todo o negócio dos meus pais, carrinhas, jipe, estufas, o stock que estavam nas estufas, o armazém, foi tudo, ardeu tudo. Ficámos com as duas casas e com a adega. Por acaso, foi a minha avó, que tinha 72 anos na altura, que conseguiu tomar conta do incêndio, sozinha, uma mulher rija. Tenho a sorte de ter mulheres muito bem resolvidas à minha volta, sabem o que querem e são mulheres de garra mesmo. Tenho sorte de ter isso ao meu lado, desde as minhas avós, à minha mãe, à Patrícia.

E faz a diferença?

Todo o meu negócio está à volta de mulheres. As pessoas que vêm cá trabalhar, maioritariamente são mulheres e recebem todas igual aos homens, por isso, aqui não há desigualdade.

E o tempo tem sido um grande desafio?

Sim, é a natureza. Não podemos estar com um guarda-chuva nas videiras, é o que é. Torna este negócio um bocado instável, mas especial. Cada ano é um ano e esta é a nossa filosofia.

E os rótulos também são especiais? Como é que foram pensados?

Por acaso foi um designer, que, infelizmente, faleceu no ano passado. É um design muito importante, que também nos ajudou bastante na idealização do projeto. Nós já tínhamos a identidade e ele transportou isso para os rótulos. Neste momento, temos três segmentos de rótulos. A gama Ramalhosa, que é mais jovem, mais comercial, mais fácil de se gostar, muito direcionada para o mercado jovem, que iniciou o consumo de vinho, com pouco álcool, vinhos com menos tração, mais elegantes, mais frescos e vinhos para o novo mundo. É um pouquinho a tendência mundial que se está a revelar de vinhos mais elegantes. Depois tenho a Quinta da Ramalhosa, que são vinhos um bocadinho mais clássicos, com mais idade. Não é questão de ter mais madeira ou não, nós temos, por acaso, só duas referências que levam estágio em barrica. Gostamos de buscar na base e percebermos como é que podemos retirar o máximo de potencial deste vinho. Tanto é que temos vinhos com cinco, seis anos de estágio em garrafa. Achamos que faz sentido para aquela base e não tem qualquer madeira. É um vinho muito interessante e diferente. Depois temos os vinhas velhas.

O projeto começou com o Quinta da Ramalhosa, o segmento médio, em que são rótulos que vão buscar a serapilheira, que é um tecido, um farrapo que os agricultores levavam as suas hortícolas frescas para os mercados de manhã, um pouco da história dos meus avós, da base, da origem. Os meus avós eram moleiros, os maternos. Ah, também há outra coisa, também gosto de fazer pão. Fui o único da geração da parte materna que aprendeu a fazer a broa de milho, a moer o milho. E também é uma das coisas que eu gostava imenso de ter: um moinho de pedra e de água, porque gosto imenso, é incrível. E gostava de trazer as raízes. As gerações a seguir já não sabem o que é isso. Para além da oportunidade de negócio, acho que é uma preservação das tradições.

Fui buscar um pouco essa história de envolver a garrafa, de conservadora para a garrafa. Tanto é que o rótulo dá à volta à garrafa como uma questão de conforto, de conservar o vinho. Depois, lancei o segmento de vinhas velhas palhete, que é o rótulo de madeira natural. Também, novamente, um bocadinho ligado à história: antigamente os vinhos eram guardados em pipas de carvalho português ou de pinho, e então aqui a ideia foi ficarem os nossos vinhos com bom estágio em barrica. Claro que nós utilizamos barrica de carvalho francês. Então, a ideia é mantermos o rótulo a abraçar a garrafa, mas só em madeira para trazer a história de que também os vinhos eram estagiados em barrica de carvalho. O palhete não vai a estágio, mas antigamente também guardavam os vinhos, então nada melhor do que a tradição do palhete para passarmos isso para frente. Fomos nós a fazer o primeiro DOC Dão palhete, em 2019. Agora, já é uma tendência. Foi o que nos ajudou a alavancar depois dos incêndios.

Pois também apanharam vários...

Nós apanhamos tudo: desde os incêndios, à pandemia, guerra, crise inflacionária....

sou das poucas pessoas que acreditam que o interior vai ser o futuro

A pandemia foi algo muito inesperado... 

A vantagem de viver no interior é: na pandemia, tivemos seis meses sem comprar uma única coisa no supermercado, seis meses. Nós temos mais arcas do que pessoas em casa. Então, produzimos animais, desde ovelhas, cabras, cabritos, leitões, porcos, patos, galinhas, galos, coelhos, tudo. Então, lembro-me que pouco antes da pandemia, compramos logo 200 kg de arroz, porque quando comprávamos, era logo assim. E lembro perfeitamente que a primeira coisa que compramos foi o bacalhau.

As oportunidades aqui são um bocado limitadas. Já foi pior, sou das poucas pessoas que acreditam que o interior vai ser o futuro, vai ser o futuro no mundo até, mas em Portugal, porque se olharmos para os Estados Unidos, o nosso interior está a 100 metros, 120 metros da costa.

E planos para o futuro?

Estou com 26 anos, gostava de começar a pensar em família. Ando a apostar muito em trabalho, quero começar a pensar em criar família. Estou solteiro ainda, mas gostava de dedicar um pouquinho de mais tempo nisso. E a gastronomia, um pouquinho mais de independência, estabilizar os negócios que tenho e continuar a ser feliz, mais nada.

E daqui a 10 anos, esperas continuar aí?

Daqui a 10 anos...

Há dois anos entrei pela primeira vez em burn out

Mais ou menos...

Já disse aos meus amigos: quero teoricamente estar reformado, só gerir o que tenho, os meus negócios, não estar com esta pressão porque senão dou em maluco. Há dois anos entrei pela primeira vez em burn out. Este ano estou um pouco no limite, as vindimas são muito stressantes. Então, ando aqui muito no fio da navalha. Quero estabilizar, mas daqui a 10 anos, vejo-me já com família, claro, com negócio bastante solidificado, exportação ao máximo, produzir já umas garrafinhas valentes, com alguns prémios. Gostava de ser o produtor do ano... Tenho vários objetivos, acho que a vida vai me dizendo o que é que eu devo ou não fazer.  Se eu fosse estar a dizer qual é que eram os meus objetivos, as pessoas iam me chamar completamente de maluco.

Às vezes, até se diz que é para não se revelar...

Eu acho que é o sonho que comanda à vida. Por isso, as coisas vão aparecendo. E quando menos esperas,  as coisas aparecem. Eu gosto de pensar desta forma. Tenho sempre os meus planos, os meus objetivos, mas são sempre dinâmicos. Vou ajustando, vou mudando o leme e lá vão as coisas a andar.