
Já lá vai o tempo em que o sommelier era visto apenas como aquele que escolhe e sugere vinhos. Numa altura em que a restauração se profissionaliza cada vez mais e exige mais rigor, esta figura deixou de ser um luxo para se tornar uma peça-chave na engrenagem do serviço de sala. “Se o chef é o rei, tem de haver uma rainha”, que garanta que tudo flui com precisão, afirma Marc Pinto, Head Sommelier do Fifty Seconds (uma estrela Michelin), em Lisboa, e vencedor do título “Sommelier do Ano” do Guia Michelin 2025.
Com uma carreira moldada entre Portugal e grandes restaurantes internacionais, Marc vê nesta profissão uma mistura de gestão, sensibilidade, comunicação e humildade. “Não é sobre o vinho mais caro, é sobre o vinho certo para a pessoa certa, no momento certo”, assegura.
A figura do sommelier começa a estar cada vez mais presente, sendo obrigatória num determinado nível de restauração. Qual a importância desta profissão?
É importante no sentido em que se o chef é o rei nos restaurantes e as pessoas vão e querem ver o rei, quem está na retaguarda a organizar para que tudo corra bem e para que as pessoas tenham a melhor experiência a ver o rei, tem de haver uma rainha. Imagina, teres o prato certo, mas depois não estares sentada no sítio certo, não teres o vinho certo, à temperatura certa, o copo certo, o talher certo. Pode ser um prato fantástico, mas de repente passa a ser outra coisa, uma experiência que não está de acordo com aquilo que era a tua expectativa. Então, o trabalho do sommelier é muito isso. Daí eu achar que é um trabalho de sombra. E deve ser feito, não a pensar no ego do sommelier e aquilo que ele acha que são os melhores vinhos, mas naquilo que é o vinho certo para o cliente, para aquele prato e aquele momento. Hoje pode ser um vinho de 1.500€, amanhã a pessoa pode só querer gastar 50€ e continuar a ser o vinho certo. Esse é que é o real trabalho de um sommelier naquilo que é a componente de serviço e que as pessoas veem. Pois há muitas coisas que as pessoas não veem.
Quais são essas coisas que as pessoas não veem?
O sommelier não deixa de ser um gestor, que é um trabalho que alguns sommeliers não estão habituados quando chegam à posição de head sommeliers ou de sommeliers responsáveis. E temos alguma dificuldade porque falar sobre vinhos, normalmente escolher o copo certo, colocar à temperatura certa, fazer pairings, somos muito bons. Depois há sommeliers que se destacam também pela parte da gestão. Por isso é que, se calhar, nos últimos tempos, começaram a aparecer cada vez mais projetos a quererem ter um sommelier ou um diretor de vinhos porque perceberam a vantagem que pode ser entre faturares 30.000€ por mês em vinho ou faturares 120.000€. E isso é aumento de negócio. Além de que podes ter outros custos associados. Mas no final do dia faturas mais e tens uma margem bruta superior.
Ou seja, o sommelier hoje é também um gestor?
Se hoje em dia as pessoas já não olham para um chef como sendo um mero cozinheiro, é um gestor de um projeto, muitas vezes olham quase como se fosse o diretor de F&B do restaurante, o sommelier é o Beverage Manager do restaurante. Depois temos outras funções durante o serviço, o acolhimento ao cliente, estar com as pessoas. Mas somos, sem dúvida, a pessoa que faz a gestão daquilo que é o programa de bebidas. E isso cada vez tem mais impacto.
Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelos restaurantes atualmente?
Principalmente quando tu pensas que tu tens o mesmo restaurante que tinhas há 20 anos, está na mesma localização, mas tu hoje em dia tens muito mais custos. Ou tens uma renda superior àquilo que era há 20 anos. O que significa que precisas de ir à procura de maneiras de aumentar a tua faturação para cobrir as despesas extra que existem hoje em dia. Existe uma burocracia para teres um restaurante que é infindável. Tudo tem custos. E, portanto, acho que o sommelier passou a ser mais uma roldana neste relógio que é ter um restaurante que conseguiu que o funcionamento do relógio fosse mais certinho, mas, sobretudo, que exista mais cash flow nos restaurantes.
As pessoas estão interessadas em ouvir falar de vinho?
Sim. Nós estamos num país vinícola e mesmo nos países não vinícolas as pessoas também têm interesse. Aliás, até diria que nos países não vinícolas há sommeliers que se conseguem ainda destacar mais do que em países vinícolas. Tirando França, que sempre foi um país com um classicismo muito alto em termos de profissão. Aqui em Portugal, durante muito tempo, apareciam os enólogos, os próprios produtores de vinhos, falavam de vinho. Grande maioria dos programas de televisão eram elaborados com produtores de vinho. E bem, porque a ideia era mostrar os terroirs, as adegas, as origens. Mas acho que a comunicação com arte, que um sommelier consegue fazer, vai além daquilo que um produtor de vinhos ou um enólogo consegue fazer. E é aí que nós temos que nos posicionar. Um, sermos gestores. Dois, mostrar que fazemos a diferença naquilo que é a comunicação de vinho. Contarmos uma história à volta de vinho. Histórias reais. Isso de inventares histórias hoje em dia, com três cliques, consegues perceber se a pessoa está a dizer uma verdade ou se está a contar a “banha da cobra” e depois de mentires a primeira vez, já ninguém vai confiar em ti.
Como é que lidas com a perceção dos clientes sobre vinho?
Para te dar um exemplo prático. Tu às vezes podes intuir que a pessoa até percebe de vinhos, mas se a pessoa te diz que não percebe de vinhos, numa primeira instância, tu ages como tal. Às vezes acontece-me isso. O cliente diz, 'ah, não percebo muito, recomendas aí umas coisas'. E depois acabas o jantar e a pessoa mostra-te uma foto de uma garrafeira que tem em casa com 50 mil e de stock. Alguém que tem 50 mil euros em vinhos, se calhar percebe alguma coisa, não é? Mas no início disseram-te que não percebiam muito, até para perceber como é que tu fazes o approach ou se calhar para não ires logo para vinhos muito caros. Porque nem sempre queremos gastar assim tanto dinheiro. E às vezes parece que, porque mostramos que sabemos um bocadinho de vinhos, já nos querem recomendar de 300 euros.
Como é que vês o mercado de vinhos em Portugal?
Estás num país que que já não vejo como BBB - bom, bonito e barato -, estamos num posicionamento agora de value for the money, ou seja, temos um grandíssimo valor para aquilo que os nossos vinhos custam. Ser barato ou não é muito discutível. Agora, valor, face o que se paga, somos dos melhores a nível europeu. Depois, se formos competir com países do Novo Mundo, eu não sei, porque tínhamos que lá estar para perceber e, infelizmente, eu nunca tive a oportunidade de viajar para fora da Europa para países vinícolas. Viajei para outros países, mas não para países vinícolas. Imagino que lá o preço-qualidade também seja muito bom. Tem a ver com várias coisas: com a maneira de eles fazerem vinho, com a vinificação, para aí fora. Agora, aqui, sendo um país tradicional e de cultura clássica, temos um preço espetacular. E não somos indústria.
Temos um modelo diferente de produção de vinhos em comparação com outros países?
Por exemplo, Espanha também tem preços fantásticos, mas industrializa mais do que nós. Tu tens muito poucos projetos em Portugal que são industrializados.
Porque somos mais pequenos?
Somos mais pequenos, mas depois temos um nível de produtor, enologia e enólogos, que são super criativos. Então, tens um produtor que faz 150 mil garrafas, mas tem 25 rótulos. Isso é uma desvantagem no sentido em que, às vezes, nem sabes muito bem qual hás-de escolher. Depois faz com que tudo seja numa escala pequenina, muito tailor-made, ou seja, poucas produções, produções pequeninas. Para o consumidor é confuso, para nós é uma ferramenta de trabalho espetacular.
Como isso impacta o mercado português de vinhos?
Vou-te dar um exemplo concreto. Em Espanha, tens uma marca famosíssima, que é a Vega Sicilia. O Único, que é o vinho mais caro que fazem. Num ano excecional produzem 120 mil garrafas. Tu não tens nenhum vinho que custe 250€, como eles. Quer dizer 250 não, mais, porque o consumidor final paga, 400. O valor de 250 é o que custa para nós, restauração, mais IVA. Não tens nenhum vinho desses em Portugal em que se produza nessa escala.
E como se compara na produção portuguesa?
Tens, eventualmente, um Barca Velha, que sai de três em três anos e fazem 30 mil garrafas, 35 mil garrafas num ano excecional. Tens o Vale Meão, que sai todos os anos, mas também fazem 25 mil, 30 mil garrafas. São sempre produções pequenas. Nós não industrializamos tanto, mesmo nos produtos premium. Tenho imenso respeito por Vega Sicília. Para mim eles são exemplares. Mas fazem 180 mil garrafas, 150 mil, 80 mil, que para nós é uma escala enorme. Mesmo 80 mil garrafas para nós é enorme. O país é maior, mas não quero dizer que por causa disso tenham de produzir mais ou tenham de ser um bocadinho mais industriais. Mas o que é certo é que os são. Nós não. E desde 2000 que, eventualmente sou jovem para estar a fazer uma afirmação deste género, mas daquilo que tenho provado, percebe-se perfeitamente que no ano 2000, 2001, Portugal muda completamente. E entra-nos tecnologia suficiente para nos equipararmos com qualquer país do mundo a nível de viticultura e enologia.

Qual é o percurso que um sommelier faz? Como é que foi o teu percurso até chegares a onde estás neste momento?
O meu percurso, se calhar, não foi o mais académico comparativamente a outras pessoas. Obviamente, começa de maneira académica, mas depois foi muito self-made guy, a ler e a estudar por mim próprio porque a maior parte das formações hoje em dia, internacionais, também são assim. Alguém que se torne Master of Wine ou Master Sommelier tem de estudar por si próprio, não pode ficar à espera que alguém o ensine, porque isso não vai acontecer. Então, fui fazendo isso, só nunca entrei nas certificações em si. Comecei em 2009, na Escola de Hotelaria, em Santa Maria da Feira. Alguém me levou para este mundo do vinho através da sua paixão intensa, que era o Vitor Pinho, e a partir daí fui sempre estudando muito sobre o tema. Tive períodos em que estudava mais, outros em que estudava menos, mas sempre tentando manter-me atualizado. Foi muito comprar livros, dissecar esses livros, separar o trigo do joio. Porque às vezes num livro de 300 páginas, há 100 que te interessam e 200 que são apenas contextualização, imagens, gráficos, que para nós, ou pelo menos, vejo desse ponto de vista, não são assim tão interessantes. Porque o cliente não quer saber quantos hectolitros de vinho é que são permitidos fazer na região da Rioja. Eventualmente, temos de saber se o ano foi mais produtivo ou menos produtivo, porque isso impacta na sensação que tu tens na boca, em termos de vinho, mais aguado ou mais concentrado. Agora, a quantidade de litros que está lá, em termos de regra, acho que não é assim tão importante.
Como é que a tua experiência internacional influenciou o teu percurso e conhecimento sobre vinho?
Tive a grande sorte de passar por grandes casas. Passei por restaurantes com duas estrelas Michelin [Enoteca Paco Perez], e um deles, que era duas estrelas quando lá entrei, acabou por se tornar, ao final de um ano e meio, três estrelas [Lasarte], e no qual estava com um Head Sommerlier. Aí, já se abre um mundo de portas infindável, pelo prestígio, que é muito grande. E depois, em Portugal também. Desde que ingressei no Fifty Seconds, tive muita sorte, fui muito acarinhado por todos os produtores em Portugal e aprendi imenso também. Para te ser honesto, aprendi mais sobre vinhos portugueses após 2018 do que antes disso, porque a minha carreira acabou por ser um bocadinho mais feita no mercado internacional. E ainda bem, porque nessa altura em Portugal se calhar não havia tanta afluência de vinhos internacionais como hoje. Isso abriu-me muitas portas e catapultou-me rápido para uma esfera que, se calhar, em Portugal poderia lá chegar, mas o investimento da minha parte seria muito maior. Porque tinha de ser eu a pedir vinhos, a comprar, a provar, a ir à procura de outras pessoas que me pudessem ajudar, enquanto no mercado internacional foi super fácil. Não vou dizer que não me tive de esforçar, mas o esforço não foi tão alto como se calhar teria sido cá. Dou muito valor a quem tem um conhecimento brutal sobre vinhos internacionais e só trabalhou em Portugal. Porque essas pessoas tiveram de fazer um esforço muito grande para estarem nesse nível.
Este mundo é muito dinâmico. Como é que isso se reflete na forma como escolhes os vinhos?
Tens de estar sempre atento. Tens alturas como esta, em que o álcool passou a ser um “amigo não grato”, digamos assim, e agora procuram-se vinhos menos alcoólicos. Mas, se recuarmos 15 anos, todos queriam fazer vinhos de 14, 15, 16 e até 17 graus. Isso foi uma tendência, muitas das vezes impulsionada pelos críticos de vinhos. O excesso de barrica, a concentração na cor. Agora estamos a caminhar no sentido inverso. Isto também é cíclico, parece que, de repente, para quebrar uma tendência, tens de criar uma nova.
Fala-se muito da era Parker.
Exatamente. E hoje está-se a criar uma era completamente diferente. E uma tendência quebra a outra. Agora, há algo que se mantém sempre: os vinhos clássicos e intemporais. Esses devemos respeitar, porque a verdade é que eles estão no mercado, às vezes há um século. Durante esse tempo, devem ter existido muitas tendências, mas esses vinhos mantêm sempre as mesmas pautas, a mesma qualidade, sem mudar muito o estilo. Se calhar podem mudar algumas nuances, algum detalhe, mas mantêm a essência. Esses vinhos, para mim, educam-me mais do que as novas tendências. Por isso, defendo sempre os pequenos produtores, porque muitas vezes são mais rápidos a embarcar nas novas tendências. As casas grandes, como a Sogrape ou o Esporão, entre outras, têm mais dificuldade em abraçar as novas tendências.
Porque são “obrigadas” a respeitar o padrão?
Sim, têm o padrão. As pessoas já estão à espera disso. Então, ou crias novas marcas ou não podes mudar drasticamente as marcas existentes, com o risco de às vezes perderes o consumidor que já estava habituado a aquele estilo. Por exemplo, o Chaminé [da Cortes de Cima], que o meu pai consumia. De repente, transformou-se num vinho de posicionamento mais alto, com um estilo completamente diferente. O Chaminé já não existe como era antes, tem um rótulo e uma vibe completamente diferentes. Numa veia de muito menos intervenção. Então, o meu pai já não vai consumir esse vinho. Se calhar, eu comecei a consumir mais. Mas nós somos consumidores diferentes. Ele bebe mais vinho do que eu, mas eu tenho mais instrução no mundo dos vinhos, e isso faz com que procure mais qualidade ou nicho. Mas ambos, enquanto consumidores somos importantes para o mercado do vinho.
E em relação ao preço, como vês isso no contexto português?
Vives num país onde o vinho continua a ser uma bebida de refeição, e isso é muito importante. Não podemos esquecer que, se focarmos apenas em vinhos de preços mais elevados, podemos prejudicar o mercado de vinhos mais acessíveis, que as pessoas consomem no dia a dia. Se os vinhos começarem a custar mais de 15€, essas pessoas podem deixar de consumir vinho e, se calhar, passar a consumir cerveja. É importante perceber que estamos num país em que se gosta de consumir vinhos de um valor acessível. Temos de mudar isso, mas muito lentamente, de forma gradual."
Ganhar “Sommelier do Ano” é uma validação ou uma responsabilidade?
Todos os prémios que ganhei até hoje deram-me aquela Síndrome do Impostor, no início. Olhava para o lado e pensava, “há tantas pessoas boas, porque fui eu?” Isso traz uma responsabilidade, porque passas a ser uma figura pública e as tuas palavras começam a ter impacto. Tens de estudar mais, ser mais cauteloso com o que dizes, ouvir mais e falar menos, sobretudo opiniões pessoais. Quando ganhei o campeonato nacional de escansões, foi gratificante porque competi com outros sommeliers e, pelo menos naquele dia, fui o melhor. Mas no fundo, cada prémio vai trazendo um peso diferente, seja para te aumentar, entre aspas, a tua autoestima, ou para estudares mais, ou então para teres algum cuidado naquilo que dizes. Também tem a ver com a idade, vais ganhando maturidade.

Sentes que te tornas mais interessante para os produtores ao ganhar esses prémios?
Sim, eventualmente sou mais interessante para os produtores hoje em dia do que era há dez anos, há sete. Mas sempre fui alguém que gosta de estabelecer relações de longo prazo. O que é que eu quero dizer com isto? Que tenho vindo a fazer um trabalho de fundo há muito tempo com diferentes instituições, diferentes empresas ou diferentes produtores. Obviamente, nunca vou conseguir ter todos os vinhos de Portugal na minha carta. Mas sempre que alguém me pergunta porque é que o vinho deles não está, nunca vou dar essa resposta de “ah, o teu vinho não tem qualidade para estar na minha carta”.
Como se justificas as tuas escolhas?
Se tens um vinho muito bom, que representa uma região, um terroir, o outro tem de ser melhor para retirares esse e colocares outro. Porque não podes ter um catálogo infindável. Não faz sentido. A nível de gestão, vai correr mal.
E como fazes essa gestão na prática?
Se há coisa que não quero, é que a adega do Fifty Seconds, no dia em que eu saia, seja uma herança envenenada para o sommelier que vem a seguir, ou seja, compramos, compramos, compramos, nunca vendemos, e depois há coisas que deixam de ter valor comercial ou de ter qualidade. E depois, quem vem a seguir tem de se “livrar delas”. E isso não é bom.
Já tiveste experiências contrárias?
Graças a Deus, nunca passei por isso. Sempre trabalhei em casas que, quando eu chegava, estavam sempre muito limpinhas, muito organizadas. E a do Fifty Seconds construí-a do zero. Portanto, se alguma coisa está mal feita, tem a ver comigo.
Qual é a tua filosofia nesse tipo de trabalho?
Acho que é super importante estarmos sempre a pensar que, no futuro, vai haver outro sommelier por trás daquela garrafeira. E a garrafeira tem de ter um sentido, ter um nexo. Muitos sommeliers têm garrafeiras com um inventário grande. A do Fifty, por exemplo, tem à volta de 300 mil euros de inventário. O que, para mim, é grande, porque temos dez mesas apenas, o que significa que temos 30 mil euros investidos por cada uma das mesas. É muito dinheiro. No dia em que entregarmos a chave, temos de entregar uma coisa que foi bem mantida, bem conservada, e que tudo tem uma justificação para estar dentro daquela adega. Isso é um trabalho importante.
Como geres as expectativas dos produtores?
Sempre fui tentando fazer esse trabalho de justificar, às vezes, o porquê de os vinhos não estarem [na carta], mas sem ser agressivo. Já vi colegas meus a darem aulas de como fazer vinho, a produtores de vinho. Colegas de profissão, outros sommeliers. E isso, não sei se nos compete, muito menos em praça pública.
Onde está, então, a linha entre opinião e crítica?
Uma coisa é nós dizermos: “Não encaixa dentro do meu objetivo, restaurante, carta de vinhos.” Outra coisa é querermos dar lições de moral. Ou seja, uma coisa é explicarmos o porquê de o vinho não fazer parte da nossa carta, ou acharmos que não faz sentido para o nosso projeto. Outra coisa é dizermos a um produtor que não sabe aquilo que fez, ou que fez um trabalho que não está correto. No final do dia, aquele vinho é o reflexo de um terroir, de uma região, de uma vinha, mas também é o reflexo da pessoa que o fez. Não tem de ser o reflexo da pessoa que o vai comprar ou da pessoa que o está a julgar. Ele vai encontrar compradores e não-compradores. E nós, como não-compradores, não temos de julgar nem opinar demasiado sobre o trabalho das pessoas.
Há um paralelo com o julgamento nos restaurantes?
Sim, quando entram num TripAdvisor, num The Fork, numa rede social de um restaurante e fazem um comentário negativo sobre nós, também não gostamos. Então, devemos ter um bocadinho mais de consciência quando estamos a julgar, a criticar vinhos de outras pessoas. Porque tiveram um trabalho de 365 dias para chegar àquele resultado, no mínimo, pois o vinho fica a envelhecer em barrica, às vezes em garrafa, etc. Às vezes é um trabalho de sete anos, ou mais, até sair para o mercado. E julgarmos em dois minutos algo que demorou sete ou oito anos a ser feito — ou nem que seja só 365 dias — acho que não é o correto.
É algo que criticas?
Sim, é a única coisa que critico em alguns sommeliers. E isso acontece muito no início da profissão. Achamos que, de repente, temos algo que é interessante, porque os produtores ficam interessados em nós, e que temos o direito de fazer isso. E eu acho que o sommelier não tem esse direito. Uma coisa é se nós formos muito amigos do produtor e estivermos em sua casa, à porta fechada, e quisermos dar a nossa opinião, ou se nos pedirem opinião. Porque acaba por ser quase um ataque pessoal. E aquilo tem muito trabalho por parte da pessoa.
Chegaste a assistir a esse tipo de situação?
No início, quando vim para Portugal, chegou-me a acontecer em algumas visitas a produtores. E a mim sempre me disseram: “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.” E fui-me afastando das pessoas que, às vezes, faziam essas críticas grátis.
Como achas que é tua imagem no setor?
Ao longo destes anos, fui construindo uma imagem — acho eu — junto dos produtores, de uma pessoa séria, que respeita o trabalho das pessoas. Até porque eu também faço vinho, a título particular, para consumo próprio — não é para venda — mas sei o trabalho que isso dá e os custos inerentes à produção de vinho. Portanto, ninguém fica rico a produzir vinho, a menos que seja uma empresa muito grande e muito bem gerida, porque há muita margem para rapidamente perdermos um ano de trabalho.
Como se reflete a complexidade da produção de vinho no dia a dia?
Jogamos com a natureza. Portanto, não deixa de ser uma profissão que está em três setores: está na agricultura, enquanto a uva está na vinha; passa por um processo de industrialização, que é a transformação da uva em vinho; e, entretanto, vai para o mercado dos serviços, porque existe venda, comunicação, marketing, e por aí fora. E isso tudo tem custos pesadíssimos. Costuma dizer-se — ou existe uma frase feita — que é: “Para teres uma pequena fortuna em vinhos, deves começar com uma grande fortuna.” Ninguém fica rico a produzir vinho. Ou em 80% dos casos não vão ficar ricos. Tenho muito respeito. E depois há o respeito histórico. Isto faz parte da nossa cultura, daquilo que é a gastronomia de estilo mediterrânico. E esse trabalho deve ser muito respeitado.
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