Num mundo tantas vezes preocupado em acentuar as diferenças, continua a ser recompensador praticar o exercício da partilha que liga culturas e povos, ou seja, a comida e a comensalidade. Para mais, quando a separação geográfica entre as ditas nacionalidades é mitigada à mesa, tornando-se esta um território comum. Podem variar as cozinhas, as combinações de ingredientes, as narrativas atrás de cada um deles. No caso vertente, quando portugueses e cubanos se reúnem à mesma mesa, a conversa flui e, aquilo que seria um almoço em torno dos comeres da grande ilha das Caraíbas, acaba por ser também uma salutar troca de impressões sobre permutas históricas, artísticas e emocionais.

A pretexto de mais uma jornada de cozinha no restaurante Bistrô & Tapas Restaurante, do hotel Tryp Lisboa Oriente, marcamos um almoço com dois artistas plásticos cubanos. Casados há 24 anos, Niurka Bou e Raonel, radicados em Portugal, dão-nos uma fresca e bem-disposta imagem daquele território tropical. Niurka participa pela segunda vez na iniciativa “10 Dias, 10 Pratos, 10 Euros”, que desta feita celebra os comeres cubanos, estes uma mescla das cozinhas europeia (especialmente a espanhola), africana e caribenha.

A artista plástica, formada na Escola Nacional das Artes em Havana, capital de Cuba, é durante esta festa da cozinha do seu país natal, a consultora à mesa do chefe residente, Paulo Anastácio. É na ampla cozinha deste restaurante instalado no Parque das Nações, em Lisboa, que podemos encontrar por estes dias Niurka.

Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
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Uma pintora, gravadora e desenhadora, com obra representada em inúmeras coleções, públicas e privadas, em países como Portugal, França, Cuba, Alemanha, Espanha, Japão e Suíça, que aqui veste outras artes, encarnando emocionalmente os comeres do país que ama.

Aqui, à mesa do Bistrô & Tapas, formalidades cumpridas com a habitual troca de apresentações, sentamo-nos para degustar uma parte da identidade alimentar cubana. Niurka Bou e Raonel, um casal com um início de carreira ligado à decoração de hotéis em Cuba. Um caminho com as suas limitações que os fez olhar para o mundo e querer sair do seu país natal.

Pegando numa das referências literárias cubanas contemporâneas, Pedro Juan Gutierrez, perguntamos a Niurka e Raonel se a visão dura, crua e textualmente violenta daquele pintor, escritor e jornalista cubano retrata o seu país. Uma questão em jeito de introdução de forma de tecer pontes, enquanto à mesa vai chegando um trio de entradas, em jeito de apresentação ligeira do elenco que nos aguarda.

Niurka bau
Um dos trabalhos da artista plástica cubana, intitulado "Habanas", série Óleos em cartolina, anos de 1995/1998.

Esta não é uma conversa política, nem com pretensões a tal. Antes, a procura de um retrato da sociedade cubana através dos seus comeres. Contudo, não há mesa sem cultura, nem cultura sem social. Por mais circum-navegar que possamos fazer aos assuntos, é às pessoas que vamos aportar.

Niurka: É um país muito rico culturalmente e na educação. Não vai encontrar analfabetismo e os estudos são integralmente gratuitos. A Revolução [1959] marcou anos de ouro em Cuba, com igualdade social. Um território que foi sempre muito desejado. Repare, foi o primeiro país da América Latina a ter televisão. O Embargo norte-americano mudou tudo.

Raonel: Sim, a condição geográfica de Cuba também é muito importante para percebermos a sua história. É uma ilha central nas Caraíbas e no contexto das américas, com um comércio muito forte na sua história. A Revolução tem um período dourado, mas também, posteriormente de uma certa decadência, não apenas arquitetónica… Contudo, é uma sociedade pacífica. Não vai encontrar nas ruas crianças a mendigar. Agora, é natural que um país que prepara as pessoas com um nível de educação tão alto, crie nelas o desejo de quererem seguir as suas carreiras profissionais, de marcar a sua individualidade.

Niurka: É verdade que em Cuba há muitas privações, mas não vai encontrar pessoas nas ruas. Há falta de bens nos mercados, mas a qualquer hora entra nas urgências e é logo assistido. Não é garantido, contudo, que encontre os medicamentos que precisa. Tudo tem os seus prós e contras.

Sobre a mesa descansam os pratos com uma Ensalada de papas e queso crema, ou seja umas batatinhas cortadas miúdas, cobertas com queijo-creme e com agrião em folha. Acompanham-nas umas cabeças de espargos e salsa picadinha. A par com esta salada, uma Dourada Marinada, semelhante a um Ceviche sobre alface com molho de cebola e um pimento a rematar. A fechar este tríptico, uma Ensalada de pepino e papas, o mesmo é dizer, Batata com maionese, ananás, com alface, agrião, um pouco de ovo cozido e sumo de limão.

Raonel: O Ceviche crioulo é muito popular em Cuba, com a característica de nunca levar picante. Apesar de ser um prato transversal a muitos países da América Central e do Sul tem diferenças regionais. Aqui chega-nos em pratos largos, mas em Cuba provavelmente estaria a come-lo em pratinhos, ou mesmo em copos pequenos.

Cuba: Esta cozinha tem arte, carisma e uma generosa dose de tempero tropical
Pratos de peixe apresentados nestas jornadas gastronómicas cubanas.

Estando à mesa com dois cubanos radicados em Portugal, naturalmente, este nosso estar luso acaba por motivar conversa.

Raonel: Vocês são um povo muito cívico, talvez dos mais cívicos da Europa. Muitas vezes vistos como a cauda da Europa, mas são na realidade a entrada. São muito Ocidentais e dispostos a falar com todos. Na atitude poderiam ser um povo do Norte da Europa, embora geograficamente estejam no Sul.

Palavras abonatórias que não encontram em Niurka correspondente, quando nos viramos para a História do território que é atualmente Cuba. Isto a pretexto de perceber as origens desta cozinha de fusão de produtos e tradições culinárias de diferentes continentes. Sobre a mesa repousa, agora, a segunda sugestão da carta. Uma tripla presença de peixes.

Niurka: A História colonial levou a dizimação de toda a população autóctone que vivia no território onde é atualmente Cuba. Uma população pacífica que se dedicava à pesca, caça e agricultura.

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Obra da autoria de Ranoel "Mediterrâneo".

Por isso não temos traços nas nossas feições dos indígenas da América do Sul. Verá que temos uma população com traços africanos e europeus, especialmente espanhóis e mesmo portugueses que mantiveram em Cuba comércio. Há ainda, em Havana, a capital, próximo da zona portuária, algumas ruas com nomes portugueses.

Raonel: Em certa altura os ingleses ainda tiveram pretensões sobre Cuba. Os britânicos atacaram a capital e ficaram com o porto e uma parte da cidade. Os espanhóis conseguiram contudo recuperar o controlo. Trata-se de uma ilha enorme no contexto das Caraíbas, povoada de pequenos arquipélagos.

Cuba chega agora à mesa através de alguns dos seus pratos de mar. Um Lomo de pescado releno com marisco, no caso vertente perca no forno recheada com camarão e acompanhada de batata-doce. Um prato que em Cuba é hoje apresentado, especialmente, em unidades hoteleiras como sublinha Niurka. Nas casas a pescada é ingerida simples.
Uma mesa de peixe que não dispensa o Filete de pescado com pinã (filetes de perca braseados com abacaxi) e um Enchilado de pescado (uma perca frita com molho picante).
Marcante neste prato, como acompanhamento, os medalhões de banana verde cortada às rodelas amplas e grossas (dois dedos). Explica-nos Niurka: Descasca-se a banana, frita-se e, quando estiver dourada, retira-se para uma bancada e imprimimos-lhe uma pancada. Vai de novo a fritar e junta-se uma pitadinha de sal.

A acompanhar este elenco marinho, chega à mesa um pratinho com picante. “A cozinha cubana não é de muito picante. Por isso, aqui é apresentado à parte”, explica-nos Raonel.

Cuba: Esta cozinha tem arte, carisma e uma generosa dose de tempero tropical
O casal de artistas plásticos cubanos, Niurka Bou e Raonel.

Queremos saber mais sobre estes comeres cubanos. O que os diferencia dadas as várias influências e permutas históricas no território, não só alimentares, com a entrada de produtos de outros continentes, como também sociais; temperada com a tradição culinária europeia, ali transformada no clima quente, e os comeres africanos, associados à entrada em séculos passados de centenas de milhares de escravos.

Raonel: É curioso, mas vocês apesar de terem fortes ligações a África não comem muita mandioca.

Niurka: A mandioca é deliciosa e consumimos muito. Acresce que é muito fácil de preparar, corta-a em cubos ou lascas grossas. Ao contrário da batata, a casca vai sair com muita facilidade. Coze-se e vai servi-la com um pouco de azeite, alho, cebola. Fica tenra e muito agradável.

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Uma trilogia de carnes de sabor cubano.

Raonel: Também usamos muito o abacate. Mas, em Cuba, este fruto é enorme, muito maior do que aquele que vocês aqui conhecem. Faz um delicioso creme de abacate com alho. Fresco é incrível.

Niurka: As frutas são maravilhosas, têm muito açúcar. Temos, por exemplo, diferentes tipos de manga. Há uma espécie, pequena, que basta espremer para sair um sumo delicioso. As crianças adoram-nas. O nosso ananás é muito doce. Há um prato com porco que acompanha com este ananás. Outro acompanhamento delicioso é a banana frita que vai com muitos pratos. Para nós não é uma sobremesa, como aqui.

Cuba: Esta cozinha tem arte, carisma e uma generosa dose de tempero tropical
Sobremesas cubanas.

Raonel: Em Cuba damos muita importância ao sabor. Por exemplo, um arroz só com feijão é temperado de forma a saber bem. Não vai ter lá a carne, mas nem vai sentir a sua falta. Não há aditivos a mascarar o sabor dos ingredientes. Não concorda que um molho muito picante vai “matar” o sabor de cada um dos alimentos?

A fazer prova desta essência de sabor na cozinha cubana, um último tríptico de pratos principais em jeito de degustação. Desta feita uma mostra das carnes apresentadas nesta edição do evento “10 Dias, 10 Pratos, 10 Euros”.

Picadillo a la havanera, apresenta-se como um prato singelo mas pleno de sabores. As batatas cortadas aos cubos, chegam envoltas com carne de novilho, acompanhadas de umas passas, cebola, pimento alho e uma golpada de vinho seco. Quase que nos recorda o tão nosso pica-pau. Segue-se nesta troika um Lomo de cerdo com piña, uns medalhões de lombo de porco com abacaxi. Finalmente, umas Masas de cerdo con arroz moros e cristianos (cubos de perna de porco fritos com arroz moros e cristianos)

Verá o leitor neste último prato de carne a tão europeia alusão a Mouros e Cristãos. Trata-se, neste caso de uma clara ligação ao arroz e feijão preto que chegam à mesa juntos ou separados. Quando cozidos juntos a receita é chamada de Congri, Moros ou Moros e Cristianos (feijão preto e arroz). Se cozinhado separadamente é denominado de Arroz con/y Frijoles (arroz com/e feijão).

Niurka e Raonel, vivem e trabalham atualmente em Pinhal Novo, a 20 quilómetros a sul da capital. Têm, contudo, estabelecimento artístico em outros pontos do país. Um Portugal que adoram e como nos confidenciam, também gosta do seu trabalho. Para fechar esta refeição Niurka sugere-nos um trio de sobremesas (3,50 euros/cada).

Arrancamos para esta última etapa de mesa cubana com uma sobremesa de creme de batata-doce bêbada (Boniatillo borracho), a fazer-nos lembrar o recheio das nossas tão próximas azevias. Prosseguimos com Majarete, um doce de milho também tão familiar a muitas comunidades portuguesas. Terminamos com umas Torrejas em almíbar y hellado de vainilla. O mesmo é dizer que as fatias douradas à cubana com gelado de baunilhas nos fazem sentir em casa.