Após uma conversa com Maria Ana Silva Vieira saímos com um novo olhar: Ver o chá com o respeito que este merece. O mesmo que acompanha a cerimónia que os orientais lhe dedicam e jamais chamar chá a inúmeras infusões que nos são apresentadas. Tília, jasmim, cidreira não são chás. “Apenas podemos chamar chá quando fazemos uma infusão com as folhas, talos e /ou rebentos de uma única planta chamada Camellia sinensis”. Este, um dos muitos princípios que Maria Ana Vieira, Sommelier de Chá e Tea Blender nos deixa nesta conversa.

Uma troca de palavras que aprofunda quais são as atribuições e qualidades de uma Sommelier e Blender de chá, que viaja até uma das mais enriquecedoras experiências profissionais da nossa interlocutora, o período que trabalhou no “monstro” mundial do chá, a marca francesa Mariage Frères.

A aventura mundial do chá, uma história contada pela Tea Blender Maria Ana Vieira
A aventura mundial do chá, uma história contada pela Tea Blender Maria Ana Vieira
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Os diferentes chás, a preparação dos mesmos, os benefícios para a saúde, a água que utilizamos, “o mito” relacionado com o preço baixo das saquetas de chá, são outras questões que servem de mote a esta entrevista.

Momento para abordarmos o livro de Maria Ana Vieira,  “Receitas à volta do chá” (edição Oficina do Livro) um manual sobre esta bebida universal que vai além das confeções em torno da mesma. Aqui há história, explicação, conselhos e carinho por parte da autora.

O Chá não é só para beber, também se come, partilha e é história
O Chá não é só para beber, também se come, partilha e é história

Maria Ana Vieira, comecemos pelo seu percurso académico, tem uma licenciatura e pós-graduação na área da Educação, contudo hoje estamos aqui para falar da sua atual profissão, Sommelier e Blender de Chá. Como se dá esta viragem?

Realmente a educação continua a ser uma das minhas paixões. No entanto, por razões familiares tive que abandonar todos os projetos relacionados com a área da minha formação inicial e durante cerca de quatro anos dedicar-me intensamente à minha família. No decorrer desse tempo, a minha busca por produtos que proporcionassem o bem-estar físico e mental fez com que começasse a olhar para o chá de uma maneira diferente.

Descobri que o chá é mais do que uma simples bebida. Está repleto de benefícios para a saúde e de histórias fascinantes que é impossível não nos encantar. Apaixonei-me por esta bebida milenar e por tudo o que estava relacionado com ela.

A possibilidade de ter uma profissão nesta área surgiu algum tempo depois. Esse motivo levou-me a fazer formações e especializações internacionais que me tornaram numa Blender e Sommelier de chá.

Estamos familiarizados com o Sommelier de Vinho. Podemos a partir deste extrapolar para o Sommelier de Chá?

Uma sommelier de chá é uma expert, uma especialista na área dos chás. À semelhança daquilo que acontece com os sommeliers de vinho, também no mundo dos chás, uma sommelier é alguém que tem um conhecimento sobre o chá, sobre a sua história, cultura, produção. Entre outras coisas, é alguém responsável pela elaboração de cartas de chá e serviços de afternoon tea em hotéis ou salões de chá, assim como, pela harmonização do chá com diferentes alimentos - tea pairing.

O Chá não é só para beber, também se come, partilha e é história
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Uma carreira ainda pouco falada no nosso país…

Em Portugal trata-se de uma carreira desconhecida. No entanto, internacionalmente é já uma profissão reconhecida, que permite arrecadar importantes prémios.

Neste momento, estou responsável por todas as dinâmicas associadas à minha marca Noblea. Portanto, o meu dia a dia divide-se entre um estudo constante, uma atenção permanente relativamente às tendências, à identificação dos melhores terroirs, assim como entre a realização de provas de chás para avaliar a qualidade dos produtos.

Enquanto tea Blender, a criatividade é a palavra de ordem. Trata-se de uma área fascinante, que exige inspiração e um conhecimento das características e notas de um leque de ingredientes para que o resultado final da mistura esteja em harmonia. Todos os dias dedico um bocadinho do meu tempo a aperfeiçoar os meus blends ou a fazer experiências com sabores.

Em Portugal o Sommlier de chá é uma carreira desconhecida. No entanto, internacionalmente é já uma profissão reconhecida, que permite arrecadar importantes prémios.

Ana, uma das marcas mais conhecidas de chás por onde passou profissionalmente é a Mariage Frères, qual a importância que esta casa teve na sua carreira?

Quando nos referimos à Mariage Frères, temos que ter a noção de que estamos a viajar no tempo. Vamos às raízes e continuamos lá, numa experiência contemporânea.

Para percebermos a sua história nunca é demais recordar que os irmãos Mariage foram os primeiros franceses a partirem nas viagens para o Oriente, encorajados pelo rei Luís XIV, em meados do séc. XVII. Nessa altura tiveram contacto com a planta do chá e tornaram-se grandes conhecedores das suas técnicas e segredos. As pisadas dos irmãos Mariage foram seguidas pelos seus descendentes e, em 1854, foi fundada a companhia de chá Mariage Frères, com o objetivo de importar e fornecer chás da melhor qualidade aos retalhistas, aos salões de chá e aos hotéis.  Passados 130 anos, a companhia abriu a sua própria loja para venda de chá a retalho, com mais de 500 variedades de alta qualidade.

Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira
Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira

Para além disso, os seus salões de chá de inspiração colonial destacam-se na cidade de Paris com elevada distinção. Fazem as delícias dos paladares não só franceses, como também de turistas que fazem fila para tomar um chá. A excelência dos seus produtos – e a arte nas técnicas de preparação ancestrais, fazem da Mariage Frères um dos locais a visitar para tomar um chá.

Sempre que estou em Paris, Mariage Frères é uma paragem obrigatória. Aproveito para me inspirar nas maravilhosas combinações de sabores que encontro nos seus blends e enriqueço-me sempre com novidades fantásticas. É uma escola com experiências e formações que não pretendo abandonar.

Maria Ana, como bem percebemos no seu livro, os chás não são todos iguais. Contudo, podemos agrupá-los em famílias, certo?

Imediatamente a seguir à colheita das folhas, o chá passa por diferentes processos de elaboração. E são esses processos que nos vão permitir classificar o chá em seis tipos.

Por exemplo o chá branco é o tipo de chá menos processado de todos. Para a elaboração deste chá, as folhas apenas são murchas e secas e não passam por nenhum processo de oxidação. O mesmo acontece com o chá verde. Todavia, neste tipo de chá para desativar a enzima que causa a oxidação é feita uma fixação quer seja com aplicação de calor seco, quer através de calor húmido.

O chá amarelo trata-se de um tipo de chá que é processado de forma semelhante ao chá verde, mas que passa por um processo de fermentação não enzimática.

Já o chá preto distingue-se pela sua oxidação total. O chá oolong ou semioxidado é característico pelo facto de se tratar de um tipo de chá que sofre uma oxidação parcial. Os dark teas são os únicos que passam por uma etapa de fermentação pós-produção - durante o armazenamento - onde microrganismos vivos atuam sobre as folhas.

No entanto, devo dizer-lhe que dentro destes seis tipos de chá existem centenas de variedades. Isso acontece devido a uma serie de fatores, como por exemplo o terroir, o tipo de planta, o padrão da colheita e a época da colheita.

Quando fazemos uma infusão com outras plantas como por exemplo camomila, tília, lúcia-lima, erva-cidreira, erva príncipe, erva mate não devemos chamar chá

Quando falamos em chá, temos tendência para generalizar e englobar também as infusões, que são diferentes…

Quando surge esta dúvida, eu costumo dizer que o chá é uma infusão, mas nem todas as infusões são chá.

Ou seja, apenas podemos chamar chá quando fazemos uma infusão com as folhas, talos e /ou rebentos de uma única planta chamada Camellia sinensis ou “planta do chá”.

Quando fazemos uma infusão com outras plantas como por exemplo camomila, tília, lúcia-lima, erva-cidreira, erva príncipe, erva mate não devemos chamar chá, mas antes infusão de camomila, tília, entre outras.

Muitas vezes - incluindo em espaços comerciais - ouvimos as expressões “chá de cidreira”, “chá de camomila”, “chá de tília”. Tal acontece pelo facto destas bebidas se obterem de forma idêntica ao chá, ou seja, colocando as folhas em água quente. Apesar de originarem infusões saborosas estas plantas não permitem fazer chá, nem são chá.

Devemos começar a utilizar os termos corretos.

Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira
Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira

Depois da água esta é a segunda bebida que mundialmente é consumida em maior quantidade, quais os benefícios em termos de saúde?

Muitos estudos foram realizados em torno das propriedades químicas da Camellia sinensis, e acerca dos efeitos do chá no organismo humano.

Nenhum outro produto, oriundo da natureza, possui constituintes tão completos e harmoniosos como aqueles que se encontram nas folhas da planta do chá – essa foi uma conclusão unânime ao longo de todos estes anos de estudo.

Destaco a ação antioxidante do chá -fornecida pelas catequinas- essencial para o fortalecimento do sistema imunitário e no combate aos radicais livres que são responsáveis pelo envelhecimento precoce do organismo e pelo aparecimento de uma serie de doenças.  De igual forma, a toma prolongada de chá contribui para controlar os níveis de colesterol no sangue, combater a hipertensão arterial e doenças cardiovasculares. As catequinas e teoflavinas (presentes no chá preto) aceleram o metabolismo, ajudando no emagrecimento através da eliminação de gorduras, mais rapidamente, durante a digestão.

Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira
Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira

Temos também a cafeína/teína - presente nas folhas de chá- que possui um efeito de estimulação cerebral, permitindo o aumento da concentração, do foco mental e da atividade motora. Além disso, atua no organismo como um excelente diurético, contribui para o bom funcionamento dos rins, para a eliminação de resíduos e é coadjuvante na perda de peso.

Quero ainda salientar a L-teanina- um aminoácido raro que existe quase exclusivamente no chá. A L-teanina apresenta muitas vantagens para o organismo humano. Por um lado, promove o relaxamento sem causar sonolência, diminuindo a ansiedade e a tensão causadas pelo stress do dia a dia. De forma complementar, age favorecendo as atividades intelectuais, melhorando os níveis de concentração, de aprendizagem e de criatividade. É esta substância que permite que a cafeína, presente nas folhas da planta do chá, seja absorvida de maneira peculiar e mais gentilmente pelo nosso organismo.

Se fizermos o nosso chá com uma água canalizada sem filtrar, os sabores desinfetantes vão entranhar-se na infusão interferindo com o sabor original do chá

Da experiência que tem tido em Portugal, como tratamos este bem alimentar para o consumir e quais os erros mais comuns?

Julgo que os erros mais comuns se prendem com a questão da água, da temperatura da água e do tempo de infusão. O chá é um produto delicado que absorve sabores com muita facilidade. Logo, se fizermos o nosso chá com uma água canalizada sem filtrar, os sabores desinfetantes vão entranhar-se na infusão interferindo com o sabor original do chá. Também se fizermos o nosso chá com uma temperatura e tempo de infusão inadequados, isso vai libertar maior quantidade de taninos e o chá vai ficar mais forte e adstringente do que o esperado.

E quanto à temperatura da água, o mais comum é deixarmos ferver e preparar.

Esse é outro erro comum. Quando a água é deitada sobre as folhas, não pode estar a ferver. Tão-pouco deverá estar acima da temperatura indicada para o chá que pretendemos confecionar. Esse descuido pode abrasar as folhas e destruir as suas qualidades. Além disso, será uma péssima experiência pois originará infusões amargas e adstringentes.

O chá em folhas soltas, sendo mais caro, é de maior qualidade, contudo, convenhamos que a saqueta é mais prática, podemos beber um bom chá feito a partir de uma saqueta?

O preço das saquetas de chá é um mito. Se compararmos o preço de uma embalagem com 25 saquetas (normalmente 50 g) com a mesma quantidade de folhas soltas, vai ficar surpreendido. Entretanto, hoje em dia já é possível encontrarmos no mercado chás em saquetas de nylon, com formato tridimensional cujo conteúdo é composto por folhas inteiras de excelente qualidade e que permitem que as folhas tenham espaço suficiente para abrirem na infusão. Realmente, são muito práticas e de fácil utilização. Nem sempre temos ao nosso dispor um bule com um infusor para fazer o nosso chá. Eu própria preparo as minhas saquetas com os meus chás para levar quando saio de casa.

No entanto, no meu ponto de vista, os chás em folha solta são os únicos que oferecem uma experiência sensorial ímpar, libertando para o nosso paladar os aromas e sabores na sua totalidade - características fundamentais da sua qualidade.

A qualidade da saqueta também é importante?

Esse é outro aspeto que não devemos descurar. O problema da maior parte das saquetas é a qualidade dos materiais utilizados que libertam sabores desagradáveis para a infusão. Devemos ter esse cuidado sempre que comprarmos chás em saquetas.

Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira
Que não se volte a desrespeitar o chá depois de uma conversa com a Sommelier Maria Ana Vieira

E quanto à conservação do chá, recomenda alguns cuidados especiais?

O chá absorve cheiros e humidade com muita facilidade e, como tal, deve ser armazenado com muita cautela. Se pretender preservar a frescura e os sabores do chá pelo tempo recomendado, aconselho a que o acondicione em recipientes preferencialmente herméticos e metalizados, para barrar a entrada do ar, da humidade e da luz. Guarde-o num local fresco, seco, longe da luz e de outros ingredientes com odores fortes.

No seu livro, apresenta várias receitas elaboradas a partir do chá, o gosto pela cozinha é igualmente importante como o gosto pelo chá?

De facto, cozinhar é uma arte, mas eu nunca me tinha aventurado por não ser a minha. Com o chá descobri que posso fazer experiências enriquecedoras. Quem sabe o chá não seja a quintessência da arte de cozinhar?

Devemos e podemos olhar para o chá e considerá-lo como um ingrediente principal à mesa?

Eu também olho para o chá dessa maneira. Considero-o mesmo como um “superalimento”, pela quantidade de benefícios nutricionais que apresenta. Aliás, durante o período histórico associado à dinastia Tang- 618-907 d. C.-, o chá era considerado como um tónico e um alimento e preparado como tal. Ou seja, era cozinhado como uma espécie de sopa, em que lhe adicionavam vegetais, cebolas, sal, arroz, gengibre e até leite.

Para além do chá existe mais algum ponto comum nas receitas que apresenta no livro que agora dá aos escaparates?

Todas as minhas propostas foram pensadas no sentido de haver uma harmonização entre as notas encontradas nos diversos chás e os sabores dos restantes ingredientes. O objetivo é o mesmo que utilizo quando tenciono fazer tea pairing, ou seja, conseguir um equilíbrio agradável de sabores. De igual forma, tentei – sempre que possível- não defraudar os nutrientes do chá e utilizar ingredientes mais saudáveis em detrimento de outros com efeitos mais nefastos.

Peito de frango marinado com chá preto
Peito de frango marinado com chá preto
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Estas receitas foram desenvolvidas para o livro ou já habitualmente as fazia?

Uma grande parte das receitas que aparecem no meu livro, já não são nenhuma novidade para os meus familiares e amigos. Apenas uma pequena parte das receitas foram desenvolvidas tendo em atenção os paladares portugueses.

Atualmente uma das principais razões que afasta as famílias das cozinhas é a falta de tempo, as receitas que propõe são de fácil execução?

No meu ponto de vista, a maior parte das receitas que proponho são de fácil e rápida execução. Julgo que aquelas mais complicadas são as que implicam algum tempo para levedar ou marinar, e uma ou outra sobremesa.

Quer dar-nos alguns exemplos de receitas que apresenta no seu livro?

Esta questão é a mais difícil. No entanto, sugiro um prato salgado que não vai desiludir: Risoto da floresta. Os Biscoitos de matcha têm feito um sucesso imenso entre os meus amigos e familiares. Um smoothie muito fácil de fazer: Smoothie de matcha com melão, banana e coco. Com o Gelly Iced tea vai certamente brilhar quando receber os amigos numa tarde de verão.  E por último, mas não menos importante, não deixe de provar o doce, aveludado e floral chá oolong Tie Kuan Yin.

Entrevista inicialmente publicada em dezembro de 2018