Esta é uma conversa que parte de um mote. Bruno Aquino e Domingos Quaresma, amigos, praticam há vários anos um exercício que só o recente desenvolvimento de cervejeiras artesanais no nosso país permite. A dupla, explora de norte a sul do cantinho luso, todas as casas cervejeiras de mão artesanal. Juntos, entre Portugal e o estrangeiro, já degustaram dezenas de milhares de referências de cerveja. Também em dupla lançaram já este ano o livro “Uma viagem pelo mundo da cerveja artesanal portuguesa”.

É este, então, o mote para uma conversa que conta com um ausente. As férias estivais subtraem Bruno Aquino a esta troca de impressões sobre este novo mundo português em torno de cervejas que, para além de nos trazerem uma nova e – quase sempre – mais estimulante viagem pelo sabor dentro do copo, também são motor para reabilitar o orgulho e os produtos dos nossos territórios.

Porquê? Domingos há de responder-nos ao correr da entrevista. Opera, aqui, um quinto elemento, uma espécie de assinatura dos cervejeiros. Estes, sempre presentes nesta conversa, lutam num mercado que procura afirmação. Terá de valer, de acordo com o autor, a exigência do consumidor, a atenção dos chefes de cozinha, da restauração que terá de se habituar a incluir uma carta de cervejas, tal como o faz com o vinho. Têm ainda, superfícies comerciais, lojas de delicatessen trabalho a fazer.

Bruno e Domingos, os senhores que fazem a viagem de circunavegação ao mundo das cervejas artesanais portuguesas

Um tête-à-tête¸que não antagoniza cerveja e vinho, antes lhes encontra pontos em comum. Domingos Quaresma, um assumido apaixonado pela escrita, revela-nos qual a cerveja que o elevou ao Valhala cervejeiro. Um homem que acompanha o movimento cervejeiro artesanal desde 2005, adorador da cerveja belga que, certo dia, prometeu que havia de escrever o primeiro livro sobre cerveja artesanal portuguesa. Ele aqui está, em parceria com Bruno Aquino. Não o encontramos de viva voz nesta conversa, mas já por aqui passou. O SAPO Lifestyle falou anteriormente com um dos rostos da cerveja artesanal em Portugal e um dos nossos embaixadores em eventos no estrangeiro.

Presumo que haja um momento em que faz a sua entrada no mundo das cervejas artesanais. Consegue determinar esse momento, ou foi a soma de muitos momentos?

Romanceado um pouco, acho que houve um momento que me fez querer descobrir o mundo das cervejas. Sempre adorei cerveja, mas achava um mundo monótono. Há uns 30 anos, bebi uma cerveja incrivelmente diferente do que estava habituado. A partir dai desenvolvi o gosto por descobrir novas cervejas, não obrigatoriamente artesanais.

O mercado de cerveja em Portugal sempre foi muito dominado por duas marcas industriais, muito desinteressantes, com um foco cada vez maior no peso dos custos de produção. Logo, menor atenção à qualidade e cada vez menos interessantes enquanto cervejas. As cervejas importadas, na altura, traziam muito melhor qualidade. Como há 150 estilos de cerveja atualmente, há sempre o que descobrir.

Em 2005 conheci o Bruno. Na época falávamos de cerveja caseira e, esta, estimulava um grupo de pessoas que achava piada em fazer essas cervejas. Esta foi a génese da cerveja artesanal em Portugal. Gosto muito de beber, de provar, de pensar e escrever sobre o assunto, nunca fui um grande produtor. Quando decidimos avançar com o livro, foi uma escolha mútua.

Quando partimos para um livro temos um plano e uma ideia do que lá vamos incluir. No vosso caso, o que vos surpreendeu?

Houve duas coisas que achamos interessantes. O livro acabou por ter vários ajustes. Queríamos começar por fazer um anuário e a editora disse-nos que não havia nenhum livro sobre cervejas portuguesas. Achámos interessante a ideia. Acabámos por fazer um livro dividido em duas partes, uma primeira genérica, com descrição da história da cerveja e o percurso desta, artesanal, em Portugal.

A segunda surpresa, deu-se com as notas de prova. Avaliámos em prova cega, 150 cervejas artesanais portuguesas, com escala e parâmetros de avaliação e chegámos às novas de prova que apresentamos no livro. Tivemos muito boas surpresas com marcas incipientes, que quase ninguém conhecia. Tivemos algumas pequenas desilusões. As quatro ou cinco cervejas mais bem qualificadas ficaram com uma nota ao nível de topo. Usámos uma escala do zero ao 50, e temos algumas com nota de 45. É gratificante saber que se fazem cervejas em Portugal ao nível do melhor à escala internacional.

cerveja artesanal
Bruno Aquino e Domingos Quaresma.

Um reconhecimento fora de portas que já chegou?

Estamos ainda aquém. Somos um país pequeno, com uma produção pequena, disseminada por produtores também com pouca dimensão. Em 2011, 2012, começaram a surgir as primeiras cervejas artesanais comercializadas. São marcas com cinco ou seis anos de maturação. Portugal é um país sem cultura cervejeira, pouco conhecido lá fora, as marcas nacionais têm poucos recursos para irem ao estrangeiro. Mas chegará com o tempo.

Comparo esta progressão com o vinho. Se calhar somos o vinho chileno de há 20 ou 30 anos. Depois deste tempo, está a ter reconhecimento internacional. A parte boa é que para os consumidores portugueses já há boas cervejas, para os turistas há boas surpresas.

Portugal é um país sem cultura cervejeira, pouco conhecido lá fora, as marcas nacionais têm poucos recursos para irem ao estrangeiro.

Para termos o atual panorama com pequenas unidades produtoras de cervejas artesanais tem de mudar algo na procura. Em concreto o que tem de mudar e já mudou no consumidor?

Há muitas coisas que têm de mudar. Somos um país muito consumidor de cerveja. A penetração desta bebida é muito grande. Há uma apetência enorme para experimentar coisas novas. A cerveja artesanal tem tanta notoriedade e boa imagem, que as cervejas industriais se colam. Parecem cervejas artesanais mas não o são. É o segmento sexy das cervejas e os consumidores estão para aí virados.

Se vamos a um restaurante, genericamente, não encontramos uma carta de cervejas. Há, aí, um trabalho grande a ser feito?

Acho caricato irmos a um restaurante com estrela Michelin, pedimos a carta de cervejas e verem-nos como extraterrestres, mas nenhum de nós aceitaria ir a esse restaurante, pedir a carta de vinhos e não a ter. Contudo, na cerveja, dada a nossa falta de cultura cervejeira, é aceite por quase toda a gente. Porque os chefes, infelizmente, e aí há um bom trabalho das marcas, têm contratos com as grandes cervejeiras nacionais, com compromissos publicitários. As próprias marcas fazem algo parecido com uma carta de cervejas, mas algo muito limitado. Há lojas gourmet de produtos nacionais com uma ou duas marcas, quando temos cem marcas. É ridículo.

cervejas artesanais

A frase é vossa: “Num mundo perfeito a cerveja seria artesanal”. Querem com isto dizer que a industrialização da cerveja nos afastou desta bebida na sua forma mais pura?

E não só da cerveja. Olhando para vários mercados, por exemplo, o do pão nos centros urbanos. Teve uma explosão de qualidade nos últimos anos. Regressou-se ao artesanal. Mas o que diz é verdade, a industrialização matou a qualidade deste produto. Este despertar do segmento artesanal e o ganhar terreno é um caminho para se chegar à qualidade. Algo inatingível em termos industriais, dadas as condições que já apontei. Se provássemos as mesmas cervejas de há 20 ou 30 anos, veria que era muito mais saborosa, intensa. As matérias-primas são caras, há que reduzir custos. Por um cêntimo que uma grande marca ganhe em cada litro; tudo somado, em milhões, de litros é muito dinheiro.

A cerveja artesanal tem tanta notoriedade e boa imagem, que as cervejas industriais se colam. Parecem cervejas artesanais mas não o são.

No livro referem um quinto elemento para a produção da cerveja. É nele que consideram que está a verdadeira assinatura da cerveja?

É o quinto elemento que os mestres cervejeiros exploram mais como sua assinatura e onde se conseguem diferenciar. A combinação dos outros quatro [água, malte, lúpulo e levedura], obviamente dá resultados diferentes, mas este quinto permite a diferenciação. Este é infindável, não tem limites. Tudo se pode utilizar para aromatizar cerveja. Mesmo a nível mundial, a criatividade vai muito por aí, por exemplo as norte-americanas.

As nossas cervejas artesanais estão a reabilitar produtos locais?

Exatamente. Há dias fizemos uma palestra relacionando produtores e regiões. A sua produção é muito mais disseminada do que qualquer outro produto. Lisboa e Porto não têm o exclusivo, há as em muitas regiões. E estas marcas apostam nos produtos locais. Quando se fala de uma cerveja com alfarroba ou figo-de-pita, sabemos que é do Algarve; no Fundão associamo-la à cereja.

cervejas artesanais

Para o Domingos a cerveja vai percorrer um caminho semelhante ao do vinho?

Costumo dar o exemplo do vinho pois somos um país de cultura vínica. Percebemos bem onde a cerveja vai chegar comparando com a evolução do vinho. Os vinhos estão bem segmentados nos lineares e as cervejas estão ao molho. As artesanais nem 10% ocupam nos lineares. Eu e o Bruno gostamos de vinhos, mas, claro, muito mais do mundo das cervejas.

Acho caricato irmos a um restaurante com estrela Michelin, pedimos a carta de cervejas e verem-nos como extraterrestres.

Temos um estilo de cerveja português?

Todos, no mundo da cerveja artesanal, estamos a procurar um estilo de cerveja que possa ser certificada como o estilo português. Uma Portuguese Grape Ale, ou seja, enriquecida com mosto da uva, adicionado durante a fermentação da cerveja. E terá de ser um vinho português, um Porto ou Moscatel, qualquer coisa por aí. Logo, estamos a ir buscar inspiração ao vinho. Logo à complementaridade. Na gastronomia há a na confeção dos pratos e nos momentos de consumo. Recentemente convidaram-me para uma refeição onde ia provar muitos vinhos algarvios. Para sobremesa, levei uma cerveja, uma Imperial Stout, com notas muito fortes de café, de ameixas, de fumados. A cerveja espantou toda a gente pela qualidade, por ser portuguesa e um excelente complemento para os doces fortes algarvios. Há é que saber explicar. O livro é um contributo para isso mesmo.

cervejas artesanais

Famílias, estilos, escolas, as classificações no mundo das cervejas pode ser um campo complexo. Em suma, havendo tanta diversidade, há sempre uma cerveja que se adequa a todos os gostos?

Permite dar a imagem perfeita às pessoas da variedade do mundo das cervejas. As cervejas têm 150 estilos diferentes. Quando alguém me diz que não gosta, o que acontece é que ainda não provou a que se adequa à sua personalidade e perfil de consumo. Quando me dizem que as cervejas amargam, há as sem amargor. Se me dizem que têm muito gás, há as sem gás. É uma questão de descoberta.

Todos, no mundo da cerveja artesanal, estamos a procurar um estilo de cerveja que possa ser certificada como o estilo português. Uma Portuguese Grape Ale, ou seja, enriquecida com mosto da uva.

Podemos matar uma boa cerveja dentro de um copo desadequado?

O copo tem mais a ver connosco. Permite-nos apreciar as qualidades da cerveja, sobretudo o aroma e o sabor. O feitio do copo ajuda a concentrar alguns aromas, permite-nos apreciar melhor algumas cervejas. Eu, que sou um bom apreciador de cerveja, em minha casa, tenho cinco copos. Quando vou de férias, levo um copo comigo e bebo e aprecio todas as cervejas que vou encontrando. Há um bocadinho de imagem quando se explora a importância do copo.

cervejas artesanais

Nas suas viagens já houve alguma cerveja que tenha deixado uma marca inesquecível?

Gosto muito de cervejas belgas. Quando começamos a beber cervejas de qualidade começamos a apreciar alguns estilos. E nestas adoro as Trapistas, feitas pelos monges. Há uma que acho impossível ser melhorada, a Cerveja Orval, feita num mosteiro na bélgica. Tem uma matriz comum que nos permite identificar a cerveja, mas varia no sabor de ano para ano. Provar uma Orval feita há dez anos e que evoluiu dentro da garrafa é diferente de apreciar uma mais recente. É uma cerveja que segue o método artesanal, com ingredientes muito naturais e respeito pela produção.

A cerveja evolui bem na garrafa?

Em teoria a cerveja é feita para ser bebida o mais rapidamente possível. Beneficia sempre com a frescura. A frescura dos ingredientes, dos sabores são mais intensos quanto menos tempo a cerveja estiver na garrafa ou no barril. Mas, pode ser interessante experimentar envelhecer cerveja. Quando tem um corpo complexo, teor alcoólico superior e açucares não fermentados, estes ainda podem evoluir dentro da garrafa. Embora, sublinhe, é um processo muito experimentalista. No livro deixamos algumas pistas para quem quer envelhecer cerveja, mas com as devidas ressalvas, pois é um alimento vivo.

Quando me dizem que as cervejas amargam, há as sem amargor. Se me dizem que têm muito gás, há as sem gás.

Quem se quer lançar nas cervejas artesanais pode recorrer a alguma associação?

O mundo da cerveja artesanal em Portugal é pequeno e existe um prazer grande em ajudar. Basta visitar a página de Facebook “Cervejas do Mundo”, partilhar as suas experiências e dúvidas e será ajudado. Porque alguém já fez esse percurso. Toda a gente é amiga, não há segredos. Muitas vezes estou com produtores que tiram duvidas entre eles, apesar de serem concorrentes no mercado. É fácil começar neste meio porque a ajuda é muito grande.

Domingos, o que gostaria de ver num futuro próximo no mundo das cervejas artesanais?

O que gostava que acontecesse é que houvesse uma mudança de mentalidade face à cerveja. De toda a gente, que os chefes de cozinha percebessem o potencial, que houvesse mais consumidores a experimentarem, mais garrafeiras e lojas gourmet com boa exposição da cerveja artesanal, porque os produtores vão continuar a lançá-las e desenvolver. Este livro foi pensado para quem quer começar a experimentar. Uma aposta no crescimento na quantidade e na qualidade.