O número 91 na Rua da Estefânia, em Lisboa, corre o risco de passar despercebido. Mas, por entre o burburinho e a agitação da hora de almoço, os olhares mais atentos podem notar um afluxo atípico de pessoas ao rés-do-chão. Não, não é um restaurante. É o refeitório associativo Hare Krishna. Ao entrar, cores pastel, mobiliário em madeira e música calma marcam o ambiente. Mas são as roupas de inspiração indiana de quem nos atende que mais revelam o que está para além da aparência e é ignorado por muitos frequentadores do espaço.
Sim, é verdade. Aqui há um motivo maior para se servir comida lacto-vegetariana, tal como para a forma como ela é confeccionada e servida. Está curioso? Explicamos-lhe tudo já a seguir, com a ajuda de Roy Kamiki, presidente do conselho diretivo da ISKCON, Associação Internacional para a Consciência de Krishna, que em tempos nos acompanhou numa visita ao espaço, explicando o conceito alternativo de uma alimentação que difere da tradicional.
Antes de chegarem ao consumidor final, todos os alimentos servidos no espaço Hare Krishna passam por um «ritual de oferecimento», como o responsável o descreve. «O primeiro a desfrutar da refeição deve ser Krishna [Deus]», refere. «Embora fisicamente ele não se sirva da alimentação, oferecer-lhe o alimento com devoção é a única forma de evitar a acumulação de karma», sintetiza, em jeito de explicação, Roy Kamiki.
Devoção e auto-realização
O karma é um conceito central dos princípios que regem esta alimentação. Trata-se de uma espécie de reação (positiva ou negativa) da natureza aos atos praticados por cada um, que se associa à crença na reencarnação e transmigração da alma. «O desejável é que todas as atividades praticadas em vida sejam um ato de oferenda, para que não sofram qualquer tipo de karma», explica Roy Kamiki.
É precisamente este o intuito do ritual realizado com todos os alimentos confecionados nesta cozinha. «São colocados num prato usado unicamente para esse fim, que é posto em frente ao altar. Depois, recitamos dois mantras para oferecer respeito a Krishna e outros dois para o glorificar e pedir que aceite o alimento», diz. A oferta do alimento com amor não se esgota na oração. Pelo contrário, envolve todo o processo de preparação das refeições.
O processo abrange desde a seleção dos «melhores ingredientes que existem na natureza», às atitudes à mesa, passando pela confecção. «Não experimentamos a preparação, nem sequer para saber se está bem de sal, porque os ingredientes não devem ser provados ou utilizados antes de o prato estar pronto», explica Roy Kamiki. Uma prática que difere da da cozinha habitualmente confecionada pela maioria dos portugueses.
O intuito de contribuir para a auto-realização é o segundo pilar deste tipo de alimentação, inspirado nos ensinamentos da escritura ayurvédica. «O conceito de saúde não pode ser universalizado, só é válido individualmente. Mas procuramos confecionar um alimento que proporcione longevidade e bem-estar geral», explica Roy Kamiki, que recusa, contudo, o rótulo de alimentação saudável.
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As classes dos alimentos
Para o movimento Hare Krishna, «cada alimento pode pertencer ao modo da bondade, modo da paixão ou modo da ignorância», refere Roy Kamiki. Carne, peixe, aves e ovos estão, desde logo, excluídos, já que são considerados «produtos kármicos». O motivo é claro. «Há diversas partes da nossa escritura em que Krishna afirma não aceitar qualquer ingrediente que tenha origem no sofrimento animal. Todos os seres têm vida, incluindo os vegetais, mas estes têm um nível inferior de consciência», refere.
Alimentos como o alho, a cebola, a pimenta, a malagueta, o café e o chá preto ou o chá verde estão igualmente excluídos, por pertencerem ao modo da paixão. Produtos considerados «em fase de decomposição», como o vinho, a cerveja e o vinagre (devido à fermentação) ficam também de fora da ementa. Em conjunto com os alimentos com fungos, como os cogumelos e o queijo, pertencem ao modo da ignorância.
«O nosso objetivo é confecionar uma refeição o mais próxima possível do modo da bondade, por isso evitamos na íntegra os alimentos do modo da paixão, que provocam agitação ou dependência, e os do modo da ignorância, que provocam letargia ou estagnação, já que não são consistentes com a auto-realização», explica Roy Kamiki. Ao rol de produtos banidos, acrescem algumas substâncias consideradas suspeitas, como os produtos transgénicos, conservantes e aditivos, nomeadamente de origem animal, que são evitados ao máximo.
Os principais ingredientes
Dos ingredientes mais utilizados, Roy Kamiki destaca dois produtos lácteos, o panir e o ghee. «O panir é um espécie de queijo fresco que extraímos directamente do leite, usando sumo de limão como coagulante», explica. Por sua vez, o ghee é uma manteiga à qual são retirados os componentes lácteos. A manteiga comum é aquecida em lume brando, até se formar uma camada branca que é retirada com uma colher.
O resultado é uma «manteiga clarificada, de aspeto dourado, quase transparente», explica. Como alternativa às proteínas animais, a escolha recai sobre leguminosas como feijão, grão-de-bico e lentilhas, além do seitan (derivado de proteína do trigo) e tofu (queijo de soja). Mas, segundo Roy Kamiki, o produto mais aceite pelo público é o granulado de soja. Os cereais mais usados são o arroz basmati integral, cuscuz, o trigo-sarraceno e a quinoa.
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A técnica massala
Segundo Roy Kamiki, «a diferença da técnica de culinária indiana ou ayuvérdica está na forma de combinar os temperos». «Nem todos os temperos podem ser utilizados juntos, enquanto outros combinados de certa forma têm efeitos favoráveis», defende. A esta técnica chama-se massala e é utilizada para tornar a comida mais saudável e saborosa. O procedimento envolve «aquecer uma panela com óleo ou ghee e, antes de chegar aos 180ºC, deitar o tempero adequado», diz.
«A gordura absorverá todo o aroma. Só depois se acrescentam os alimentos para serem cozinhados», esclarece. A massala é usada para todo o tipo de preparações e, segundo Roy Kamiki, os temperos mais usados são cominho, coentros, tomerique, açafrão e assa-fétida, um ingrediente feito com base na resina de uma árvore que é usado como substituto do alho, muito comum nesta cultura.
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Os pratos-estrela
Na cantina do movimento Hare Krishna, o menu é minimalista. Em cada dia da semana é servido um prato diferente, variável a cada dois meses. Dependendo da altura do ano, poderá provar iguarias como strogonoff de seitan e batata ao molho branco, matar panir (o queijo caseiro frito com ervilha ao molho de tomate especial) ou almôndegas vegetarianas de batata com queijo e molho rosé.
Feijoada vegetariana, sushi vegetariano e cannelones de espinafre podem também constar da ementa que, segundo Roy Kamiki, tem sido «ocidentalizada», de forma a aumentar a aceitação do público. A lasanha vegetariana é dos pratos mais populares. No leque de pratos tipicamente indianos incluem-se a dhal, «uma sopa cujo ingrediente principal é uma lentilha de cozedura rápida».
Habitual é também a halava (na imagem), «uma sobremesa muito popular na Índia, à base de sêmola de trigo. É semelhante a um bolo, mas de consistência um pouco diferente e deve ser comida quente», descreve. Bolos, doces à base de fruta e iogurte e gelatina à base da alga agar-agar completam a lista de sobremesas.
As bebidas
Para os seguidores da filosofia Hare Krishna, as bebidas são indispensáveis numa refeição. «Segundo a escritura ayuvérdica, a refeição deve ser composta por 1/3 de sólidos, 1/3 de líquidos e 1/3 de ar. Uma pessoa que se alimente segundo essa proporção terá energia para continuar o dia, mesmo logo a seguir à refeição», fundamenta Roy Kamiki. Mas nem todas as bebidas servem.
Além das bebidas alcoólicas, todos os líquidos frescos estão também excluídos à partida. «A digestão é comparável ao elemento fogo, logo ingerir líquidos frios pode interrompê-la», explica o responsável. Desta forma, são privilegiadas as infusões servidas a uma temperatura superior à do corpo humano. «Cerca de 40º C é considerado o ideal», refere.
As regras a seguir na cozinha e no refeitório:
- Não se entra na cozinha com calçado da rua. Por «uma questão de higiene e respeito», como sublinha Roy Kamiki, os cozinheiros têm calçado específico para esse espaço.
- Não se come na cozinha, por ser o local onde são confecionados os alimentos.
- Os membros do movimento Hare Krishna evitam conversar enquanto comem, sobretudo de assuntos que perturbam a tranquilidade mental.
- A música ambiente destina-se a provocar «entusiasmo espiritual», como descreve Roy Kamiki. Por isso, as letras glorificam Krishna e o volume do som é sempre baixo.
- O mobiliário é em madeira, por ser um material natural, considerado «o mais próximo possível do estado original», assegura o responsável.
- Toda a loiça é em inox, por ser o material que «isola mais a energia, mesmo depois de utilizado muitas vezes», explica Roy Kamiki.
- O refeitório está aberto a todo o tipo de pessoas, religiões, crenças e regras de etiqueta à parte.
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