O dia começa na quinta de Pedro Martins da Costa e Sara Taveira, os proprietários da Espargos Verdes, nos arredores de Guimarães. Como o nome indica, os espargos colhem-se verdes e viçosos com rigor e critério.

E é assim que, entre linhas de cultivo em modo biológico, que se estendem por seis hectares, que num dia de primavera em que o sol se fazia já sentir com mais força, o chef francês nos conduziu à dupla de agricultores/empreendedores que nos explicaram como se faz produção de espargos.

Julien Montbabut, à frente do restaurante Le Monument, em plena Avenida dos Aliados, habituou-se a vir aqui com frequência. Encontra na terra o rigor que levou da sua formação clássica, de base francesa, mas também uma lição mais profunda: a de que só se pode cozinhar o que se compreende, sobretudo quando se trata de produto nacional.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses créditos: Daniela Costa

Em 2018, Julien Montbabut e Joana Thöny Montbabut, ele chef de cozinha, ela chef pasteleira, trocaram Paris pelo Porto. Responderam a um anúncio do grupo francês que detém o hotel Maison Albar – Monumental Palace, com a missão clara de implementar uma cozinha de inspiração francesa, com ambição de estrela Michelin. Na altura, trabalhavam num restaurante parisiense com essa distinção, e o objetivo passava por replicar o modelo: trazer os produtos, os métodos e a filosofia da gastronomia francesa como se o Porto pudesse ser um novo arrondissement gastronómico de Paris. A ideia parecia simples no papel, mas revelou-se mais complexa do que antecipado. O chef cedo percebeu que o modelo importado dificilmente resultaria tal como lhe fora passado.

A oportunidade para repensar a abordagem surgiu de forma inesperada com a pandemia de COVID-19. Pela primeira vez em muitos anos, foi forçado a parar, ainda que não pelas melhores razões. Esse tempo de suspensão acabou por revelar-se decisivo: permitiu-lhe estar mais presente com a família, mas também mergulhar no país que escolhera para viver. Com tempo e disponibilidade, começou a viajar, a visitar mercados e produtores, a provar o que se cultiva e cria em Portugal. A cozinha deixou de olhar para Paris como ponto de partida, e passou a construir-se a partir do território.

Foi precisamente em 2020, numa dessas incursões pelo país, que Julien Montbabut conheceu a Espargos Verdes. “Encontrei-os no COVID. Antes de comprar e trabalhar o produto, tento vir cá para perceber o trabalho deles, as dificuldades, porque queremos espargos bem verdes”, explica o chef, enquanto se observa o gesto cuidado com que se colhem os espargos, um a um, no alinhamento meticuloso da quinta. Situada em São Torcato, a exploração trabalha exclusivamente em modo de produção biológico, e a biodiversidade do terreno é visível a cada passo: entre a vinha e os campos de espargos, há um equilíbrio vivo que se sente mais do que se vê. Para Julien, esse contacto direto com quem cultiva é hoje indispensável. Não se trata apenas de rastreabilidade: é uma questão de respeito.

A cultura do espargo pouco tem em comum com as restantes. Tudo começa com um campo aparentemente vazio, até que, de um momento para o outro, os primeiros rebentos surgem à superfície. A partir daí, entra-se num ritmo de colheita contínua. A planta exige precisão: o espargo tem de ser colhido com um tamanho específico, nem antes, nem depois. É uma cultura perene, sensível à temperatura, cuja vitalidade se mede a olho nu: quando os espargos começam a nascer demasiado finos, é sinal de que a planta está exausta e precisa de tempo para se regenerar. A planta seca, amarela, e hiberna até à nova época. Em São Torcato, os trabalhos retomam-se normalmente em fevereiro e estendem-se até meados de junho. A presença de várias variedades na mesma quinta permite espaçar as colheitas ao longo da temporada, e isso exige ainda mais atenção ao tempo e às particularidades de cada linha de cultivo. A grossura dos espargos — indicador da sua qualidade e vigor — depende diretamente da saúde da espargeira.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses créditos: Daniela Costa

Quando Pedro Martins da Costa e Sara Taveira começaram a produzir espargos em 2018, a ideia parecia, nas suas palavras, “uma loucura”. Nessa altura, o produto era praticamente desconhecido do público português. “As pessoas não tinham sequer ouvido falar de espargos, quanto mais discutir o terroir”, recorda o produtor. A decisão de avançar surgiu de um impulso difícil de explicar, mas claro nas suas intenções: criar um projeto agrícola sustentável, centrado num produto saudável, de qualidade e com identidade própria. “Temos de pensar fora da caixa”, admite Pedro. A escolha recaiu sobre os espargos quase por acaso, mas rapidamente se tornou uma convicção. “Olho para trás e penso que podia ter corrido tão mal”, diz, com um sorriso que denuncia tudo o que já passou desde então e o caminho que ainda se continua a fazer, dia após dia, linha após linha.

A maior lição que esta quinta tem ensinado é o timing, essencial para a colheita e para respeitar os ciclos da planta. Atualmente, produzem cerca de 40 toneladas de espargos por ano. “Já fomos para lá do limite para perceber o limite”, conclui Pedro, evidenciando a experiência e o respeito profundo que desenvolveram pelo ritmo da natureza.

Todo este conhecimento sobre o espargo, a sua cultura delicada e a necessidade de um timing rigoroso, é algo que Julien Montbabut transporta diretamente para a cozinha do Le Monument. Para o chef, não basta servir um produto de excelência, é preciso entendê-lo profundamente, respeitar as suas fases e a sua história. É essa ligação íntima com os produtores, como Pedro e Sara, que permite criar pratos onde o espargo se revela na sua melhor expressão, longe de artifícios e modas gastronómicas, mas com toda a elegância e precisão que a alta gastronomia exige.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses No menu primavera apresentado os espargos são cozinhados ao sal. créditos: João Bizarro

Durante a viagem, foi-se tornando claro o grau de envolvimento de Julien Montbabut com os produtores. Mais do que uma escolha profissional, trata-se quase de uma necessidade pessoal. Por ser francês, o chef sentiu que precisava de conhecer o país com outro grau de atenção, através da terra, das pessoas e daquilo que se colhe. Essa proximidade reflete-se na forma como conduz o seu trabalho: é ele que faz questão de tratar das encomendas semanalmente e de visitar os cerca de 40 fornecedores sempre que possível. Não delega. Porque, para si, cozinhar começa muito antes do momento em que os ingredientes entram na cozinha. Começa no terreno, na confiança construída ao longo do tempo, e no respeito por quem produz.

Julien Montbabut aprendeu a falar português e usa a língua para se expressar, reforçando a sua integração cultural e o compromisso sincero com o país, os seus produtos e as suas pessoas. Esta escolha traduz o respeito profundo que tem pela identidade portuguesa, que vai muito para além da cozinha.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses créditos: Daniela Costa

Esta viagem do campo à mesa ganhou uma dimensão ainda mais humana durante um almoço informal no solar da família de Pedro, onde o chef preparou uma seleção de espargos brancos e verdes. Foi ali, entre conversas descontraídas e sabores genuínos, que se percebeu a verdadeira paixão do chef pelos produtores nacionais e a sua vontade de contar, prato a prato, a história da terra que escolheu para viver.

À mesa: o campo no prato

De regresso ao Porto, a viagem continua, mas agora à mesa. No Le Monument, não se entra diretamente na sala de refeições. O percurso começa sempre na cozinha, onde o chef Julien Montbabut recebe pessoalmente os clientes e serve as primeiras entradas. É uma forma de mostrar que tudo parte dali: da cozinha e da relação com os ingredientes.

O menu de primavera que degustámos parte dessa premissa: uma viagem por diferentes regiões de Portugal, através dos produtos e dos pequenos produtores com quem o restaurante estabelece relações próximas. Cada prato é apresentado como uma paragem no mapa, mas o percurso nunca é inteiramente fixo: a carta vai mudando ao sabor das estações, mas nunca por completo. Como um organismo vivo, há pratos que se mantêm, outros que se transformam, adaptando-se à sazonalidade, à disponibilidade e até ao próprio ritmo da terra.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses créditos: João Bizarro

A abertura faz-se com um gesto de hospitalidade profundamente português: pão e azeite. Um pão folhado com flor de sal, servido com azeite biológico exclusivo do restaurante, vindo de Vila Nova de Foz Côa. Simples, mas carregado de significado — como nos lembra o ditado citado na ementa: “Em toda a casa portuguesa não pode faltar pão e vinho sobre a mesa”.

Seguem-se pratos que revelam a ambição do projeto: conjugações improváveis e sofisticadas que nascem de ingredientes humildes. O “Despertar dos Sentidos” é um desses momentos, com a carne minhota a encontrar a delicadeza dos cogumelos e a intensidade salgada da raia seca. Em Guimarães, reencontramos o espargo verde de Pedro Martins da Costa, agora com poejo e amêndoa — numa homenagem à harmonia natural que se observa no próprio campo.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses Versão final do prato de espargos créditos: João Bizarro

Os mariscos portugueses surgem em força, desde a sapateira de Vila do Conde reinterpretada com yuzu e mostarda Savora, até ao mexilhão de Matosinhos, servido com toucinho e ervilha, um prato que evoca os mercados tradicionais e as rotinas do litoral.

Mais a sul, chega o peixe-galo de Peniche, com alcachofra e capuchinha — uma combinação onde o vegetal e o mar se encontram com subtileza. Depois, já no Alentejo, destaca-se o borrego merino, acompanhado por espargos brancos, numa alusão direta à dualidade entre rusticidade e precisão que define a cozinha de Julien.

Na reta final, surgem infusões e doces em crescendo de elegância e detalhe. A infusão de chá verde de Fornelo, com maçã e groselha, antecede o trio de sobremesas “Da Joana...”, criado por Joana Thöny Montbabut, chef de pastelaria e parceira do chef também na vida. Entre morango e manjericão, milho e malagueta, pão torrado, chocolate e café, o menu encerra com a mesma atenção ao território e à criatividade que o abriu.

A última paragem dá-se em Alfândega da Fé, com uma infusão criada em exclusivo para o restaurante a partir das plantas aromáticas cultivadas por Tiago, um produtor com quem o chef mantém uma ligação próxima. Os petits fours que acompanham esse momento final fecham o percurso com discrição, como quem sai de viagem com a certeza de que há caminho para revisitar.

Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses
Le Monument. A evolução de uma cozinha francesa para a essência dos produtos portugueses A equipa de enologia acompanha o jantar com propostas de vinhos nacionais e internacionais. créditos: João Bizarro

A carta de vinhos revela o mesmo equilíbrio entre raízes e amplitude internacional: os vinhos portugueses surgem ao lado de referências estrangeiras, num esforço consciente de valorizar a produção nacional e colocá-la em diálogo com o que se faz lá fora. “Há vinhos que são oferecidos por nós, como um vinho verde servido em malga ou um palheto, e essa experiência é mais emocional. As pessoas acabam por recordar esses momentos”, explica o chef, num dos momentos em que, com naturalidade, percorre a sala, detendo-se em cada mesa para confirmar que tudo está de acordo com os padrões por si definidos.

O Le Monument oferece o menu “Um Itinerário por Portugal”, disponível em duas versões que celebram a diversidade gastronómica do país. A opção Grande Viagem, com sete passos e harmonização, tem o preço de 180€, enquanto o menu com harmonização em 7 passos custa 160€. Existe ainda a versão Passeio, com cinco passos, ao preço de 140€, e a harmonização correspondente de 5 passos é 120€. Esta proposta reflete a ambição do restaurante, que conquistou a estrela Michelin em 2022, de proporcionar uma verdadeira viagem pelos sabores portugueses, adaptada a diferentes ritmos e desejos.

Le Monument

Morada: Avenida dos Aliados, 151 4000-067 Porto

Contactos

Telefone: (+351) 227 662 410

Mail: porto.info@maisonalbar.eu

Reservas

(+351) 227 662 418

porto.reservations@maisonalbar.eu

Instagram

Le Monument_restaurant

No Le Monument, cozinha e território já não vivem separados. A gastronomia de Julien Montbabut, ainda que assente numa base francesa, foi ganhando alma portuguesa à medida que o chef se foi deixando transformar pelo país onde escolheu viver. Não se trata de fazer uma cozinha “de fusão”, mas antes de afinar o olhar: perceber que o terroir português tem tanto para oferecer como qualquer outro — desde que haja tempo para escutá-lo.

Essa escuta também se traduz em gestos simples, mas firmes: ir ao campo, conhecer quem produz, colher com as mãos antes de cozinhar com a cabeça. Talvez por isso esta cozinha pareça tão focada, porque resulta de uma entrega mútua. Do lado dos produtores, a coragem de arriscar e experimentar. Do lado do chef, a humildade de começar de novo.

E é assim que, no coração do Porto, num salão com o charme dourado dos anos 1920 que parece saído de um romance de F. Scott Fitzgerald, se serve uma comida que começa bem antes da cozinha: começa no tempo, no campo, nas mãos. Com espargos bem verdes, e ideias ainda mais claras.

O SAPO Lifestyle esteve no Le Monument a convite do restaurante.