"Sente que precisa de ter mais validação, precisamente por ser 'o nepalês que está a fazer comida italiana'?" Esta questão, levantada durante a conversa com Tanka Sapkota, no Come Prima, o restaurante que atingiu os 25 anos, arranca uma gargalhada ao chef. Parece ser uma coisa óbvia, mas o seu percurso é tudo menos óbvio. É sobretudo uma história de superação.

Aos 22 anos, Tanka chegou a Portugal por acaso. Vinha só de férias, mas um imprevisto com um levantamento bancário mudou-lhe o destino. Três anos depois, abria o Come Prima, um restaurante italiano em Lisboa gerido por um nepalês — algo que, na época, e ainda hoje, parecia impensável.

Vinte e cinco anos volvidos, Tanka Sapkota continua a surpreender: trouxe a maior trufa branca da década para Lisboa, distribuiu 10.500 pizzas durante a pandemia, encontrou trufas negras em solo português e, mais recentemente, lançou um documentário com os maiores nomes da cozinha italiana.

Mas o que mais quer agora? Levar a meditação ao mundo. Esta é a história de um chef que não se vê como nepalês, nem como asiático. Vê-se como humano. Nesta conversa, Tanka fala de gastronomia, identidade, propósito. Da importância do tempo e do significado da palavra "dever". E do que realmente o alimenta, por dentro e por fora.

Celebramos este ano 25 anos do Come Prima. O tempo passou rápido?

Passou rápido! Porque todos os obstáculos foram desafios e quando nós temos saúde e equipa e, mais que tudo, quando o tempo ajuda. Tempo quer dizer quando a atmosfera ajuda. Porque juntos, somos fruto de alguma coisa, não é? Foram muitos obstáculos, mas encarei sempre como um desafio para avançar. Com a minha família, a minha mulher, sempre ao meu lado. Correu bem, foi rápido, até... Às vezes olho para trás, e pergunto como aconteceram tantas coisas na minha vida.

Lisboa mudou muito nestes 25 anos?

Sim. A cozinha italiana era muito fraca. A própria culinária era mais fraca e todo o acesso às coisas também era menor. Eu sou testemunha de 28 anos de Lisboa. Quando dou entrevistas no Nepal, dou o exemplo de Portugal, como o país conseguiu explorar muito a vertente turística. Porque os turistas querem comer bem e quando querem passear também querem estradas boas. Acho que é um exemplo enorme para mim, porque sou testemunha. Na semana passada, estava a falar no Nepal, na televisão. Os chefs portugueses também conseguiram explorar as suas origens.

A gastronomia portuguesa ganhou com essa evolução?

Mais rica, porque, ao mesmo tempo, o turista procura comida local. Então, foi um salto enorme. Neste momento temos 46 restaurantes estrelados, não é?

O grande desafio era eu, nepalês, provar que sabia fazer cozinha italiana

Na realidade, o sentimento foi que "soube a pouco", ou seja, estava-se à espera de mais.

Toda a gente está à espera de mais, mas 46 restaurantes estrelados para o tamanho que nós temos…. Podemos ter mais, obviamente, mas não é pouco. E temos de ter clientes de qualidade, que querem gastar dinheiro. Estamos mais ou menos num bom caminho. Portugal evoluiu bastante. E acho que a gastronomia, a política, trouxe muita gente. Por um lado, é mau, porque muitas pessoas não conseguem comprar casas, mas por outro lado acho que ganhamos.

Recorda algum desafio marcante nesta jornada?

O grande desafio era eu, nepalês, provar que sabia fazer cozinha italiana. Foram quase 12 ou 14 anos a provar às pessoas que conseguia fazer cozinha italiana, como deve ser.

Começou a trabalhar na restauração a lavar pratos. Como é que isso influenciou o seu percurso?

Acho que é uma jornada linda, mas não é para qualquer pessoa. Eu saí do Nepal porque tinha receio que o meu pai me arranjasse um casamento. Antes disso, eu pedi um bilhete, um saco de viagem, vim com mil dólares na altura, para ir embora. E também prometi que se ele me ajudasse, eu faria tudo o que fosse possível até ao fim da vida dele. Assim aconteceu. Desde os meus 18 anos eu tratei [do meu pai] até aos seus 97 anos. Vim para a Alemanha, onde tudo era diferente: a cultura, a comida, as pessoas. Eu vim de um país não desenvolvido e rural. E fui para a Alemanha estudar, numa cidade super desenvolvida.

Se fosse outra pessoa, talvez descrevesse o meu percurso como exploração de trabalho. É uma forma de ver a vida. Por mim, agradeço a quem me deu trabalho

Qual foi a cidade?

Estugarda. Fui com entusiasmo, mesmo sendo muito diferente. Estava com o meu irmão que me disse "começas aqui a fazer alguma coisa, a lavar pratos, ou vais estudar". E com receio que talvez o meu pai mudasse de ideias, comecei a lavar pratos, e assim foi durante um mês e dezanove dias. Tenho de agradecer à pessoa que me deu trabalho e ajudou. Ajudou não. Eu é que, durante 23 ou 24 semanas, estive sem folga para poder aprender o que eu queria aprender.

Porquê? Como funcionava?

Um dia alguém estava de folga, então ficava a fazer a folga dessa pessoa. A pouco e pouco, em menos de três anos, não sei como foi possível, fiz de ajudante de cozinha, fiz de barman, fiz de pizzaiolo, fiz de empregado de mesa e, no final, fiquei como chef de cozinha. É muito interessante porque, se não fosse assim, nunca seria possível conseguir gerir restaurantes hoje tão falados. Porque podia ser grande cozinheiro, mas não sabia nada da sala. Hoje sei. Eu não gosto que uma pessoa faça muitas coisas, mas é bom ter noção para perceber o lugar do outro, seja da sala, da pizzaria ou da copa. Perceber onde é que há problemas ou qual é que é o problema. Mas se fosse outra pessoa, talvez descrevesse o meu percurso como exploração de trabalho, o ter estado em vários lugares. É uma forma de ver a vida. Por mim, agradeço a quem me deu trabalho.

E quando se deu a chegada a Portugal?

Chego em 1996. Mas tive problemas em levantar o dinheiro que o meu primo enviou. Vinha por duas semanas, como férias e para tratar de alguns documentos. Então fico aqui a trabalhar. Quando comecei vi que não precisava de trabalhar por conta de outrem. Na altura a cozinha italiana era muito fraca. E pensei "se ficar cá, consigo montar um restaurante".

Muitas vezes acontecem coisas que nós pensamos que são más, mas trazem muito mais coisas boas

O restaurante onde estava na Alemanha era um restaurante italiano?

Sim, e considerando a altura, era um bom restaurante italiano olhando para a oferta que havia em Lisboa. Hoje já não é assim, mas na altura era muito mais acima.

Que idade tinha na altura?

Tinha 22. Às vezes olhamos para os problemas como um sofrimento, mas muitas vezes acontecem coisas que nós pensamos que são más, mas trazem muito mais coisas boas. Se não tivesse tido o problema com o dinheiro, voltava para a Alemanha, não tinha esta experiência, e não ia ter este trabalho feito. Em 1996 fiquei a trabalhar num restaurante italiano e depois disse ao meu irmão para vir ter comigo. Como éramos dois irmãos, tinha mais força. E em 1999 abrimos o Come Prima.

Uma pessoa, quando tem sede, procura a fonte, mesmo longe, porque a sede está contigo.

O Come Prima nasceu com um objetivo pessoal, mas acabou por elevar a cozinha italiana em Lisboa?

Primeiro quis abrir o restaurante para mim. Estava como empregado e queria abrir uma coisa minha. Mas também fiz a minha luta. Desde que abri, as pessoas perguntavam: "De onde é a tua família? De onde é o gerente? De onde é o chef?" Havia muitas perguntas diárias. Até que, em 2006, embarquei para Itália para dizer: "ok, aprendi na melhor escola do mundo, com o melhor chef do mundo de cozinha italiana". Tenho de agradecer à minha mulher porque me deixou ir, na altura, com dois filhos, um tinha só 15 meses e o outro tinha dois anos e meio, não chegava a três. E o restaurante estava aberto. Todas as semanas vinha à sexta-feira, a Lisboa, e domingo voltava para Roma. Durante dois anos. Mas uma pessoa, quando tem sede, procura a fonte, mesmo longe, porque a sede está contigo.

Podemos dizer que esse sacrifício compensou?

Sim. Os chefs e a escola, a Gambero Rosso, foram um grande privilégio, porque como era um rapaz, o nepalês, de cozinha italiana em Lisboa, deixar dois filhos, o restaurante, ir estudar todas as semanas para lá, voltar a Lisboa para trabalhar. Mais do que visitar a família, era mesmo trabalho. Se não fosse o trabalho, vinha menos vezes. E isso também é uma experiência. Mas valeu a pena.

De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota
De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota créditos: Simon Says Studio
É muito mais difícil fazer uma pizza, como deve ser, que um prato

O que mudou no restaurante após essa formação?

Mudou pouca coisa em pormenor, porque até ali também fazia o melhor que podia. Melhorou? Pequenas coisas ajudaram a melhorar. Antes disso, em 2006, já tinha tirado pratos que não eram italianos, como pizza com abacaxi ou pizza com frango e banana. E a minha mulher disse "O que estás a fazer?" "Então, eu quero chegar a um destino." No início ela não percebeu, mas depois sim. Se não fosse assim, o Come Prima nunca chegaria aos 25 anos.

É importante não reduzir a cozinha italiana a apenas um prato?

Absolutamente. Mesmo quando falamos de pizzas têm de ser bem feitas, porque o problema é que olhamos para as pizzas de uma maneira banal. Pizzas bem feitas não são banais. E não é fácil de fazer. É muito mais difícil fazer uma pizza, como deve ser, que um prato. Uma fermentação bem feita, ou a temperatura dos fornos, para mim tornam mais difícil fazer uma boa pizza que uma boa comida. Porque temos de encontrar o ponto certo. Na cozinha consegue-se elaborar um bocadinho mais. Mas Lisboa também percebeu, nos últimos anos. Como o Forno D'oro foi distinguido com vários prémios, temos recebido o mais variado tipo de pessoas que podemos imaginar, do país e do mundo, para comer uma pizza. Isso é fantástico.

Ou seja, acabou mesmo por contribuir para isso.

Nesta altura posso dizer que sim, sinto-me a contribuir. No início adaptámos a cozinha italiana para o português ou para estrangeiros. Mas percebi que assim não ia longe. Em 2006, cortei todas as coisas que não eram italianas a 100%. E mesmo assim, não teve muita quebra. Nós explicávamos ao nosso cliente porque não o fazíamos e correu lindamente.

Tem um papel educativo com o cliente?

É muito difícil educar os clientes. Nós dizemos, "não façam isto, não ponham o queijo, não ponham isto, não ponham aquilo". E muitas vezes os clientes ficam aborrecidos. Mas eu penso que é meu dever fazer isto, já que é o nepalês está a fazer cozinha italiana, pelo menos pede ao cliente para ter respeito pela comida, que foi feita com muito carinho.

Sente que precisa de ter mais validação, precisamente por ser "o nepalês que está a fazer comida italiana"?

(Risos) Preciso. E porquê? Uma vez, numa tasca italiana muito conhecida, quando estávamos numa viagem por Itália, perguntei à dona, que era muito amiga nossa "então, como fazes o risoto?" Ela diz-me, "eu uso o arroz meio cozido no início, dá perfeitamente, muitos fazem assim". Eu respondi-lhe "Tu és italiana, podes fazer o que quiseres, mas eu como nepalês não, senão vão apontar-me o dedo".

Em 2018, o chef trouxe uma trufa branca de Alba com 1,153kg, que foi considerada a maior da década. Como foi essa experiência?

A minha história com a trufa começa em 1992, depois em 2007 pego a sério quando pensei fazer cozinha com trufas para pessoas que têm menos dinheiro conseguirem provar. No início, em duas semanas, não chegava a gastar um quilo. Em 2010, 2011, comecei a ganhar fama. Fui fazer um documentário de cozinha italiana em Piedmont e nesse momento sou agraciado com o título de cavaleiro da trufa branca.

Passado uma semana exatamente, alguém tenta contactar-me a dizer que tem uma trufa, com mais ou menos 1,2 kg. Normalmente não olho para o WhatsApp, mas ia ao ginásio e vi: 1,2 kg. Apanhei um susto. Perguntei à minha mulher: compramos ou não? Ela disse, "deixa pensar", ao que respondo, "não se vai pensar, sim ou não? Porque daqui a uns minutos não vai estar lá". E ela disse sim e pedi ao meu primo para pagar aquilo logo. Saio daqui [do Come Prima], até ali, onde é a praça de táxis. Recebo uma chamada em que dizem que já não querem vender. "Não querem vender não, eu já paguei! Vou mandar comprovativo". Cheguei no ginásio e acho que só corri dois ou três minutos, porque a cabeça não estava a acompanhar. Falei com a advogada, que por acaso, mesmo sendo um sábado, atendeu. Tinha de fazer cartas rapidamente para pedir uma indemnização, porque certamente alguém tinha oferecido mais dinheiro.

Quanto podia valer aquela trufa?

Podia ter valido mais de 250 ou 300 mil euros. A maior, que está no Guinness, foi vendida por 330 mil dólares, mais ou menos 300 mil euros. Por isso, qualquer pessoa, qualquer chef do mundo, podia comprar. A única coisa que fiz em termos de marketing foi esta. Passados sete anos continua-se a falar, daqui a vinte, trinta ou quarenta anos vão continuar a falar. E tudo ocorreu no tempo certo: pagámos a tempo, a advogada, se não tivesse atendido, era um problema. E consegui fazer chegar a trufa de 1,153 kg a Lisboa, para o Come Prima.

Estamos a falar de quanto tempo, em termos de linha temporal?

Começámos no sábado, às 8h, e domingo, às 17h disseram que iam vender-nos a trufa. Porque estivemos sempre a pressionar. Pedimos meio milhão de euros de indeminização porque já tínhamos falado com os jornalistas. Eles disseram sim, mas depois de dizer sim e não vender, também era um problema. E só na segunda-feira seguinte, quando empacotaram e mandaram a fotografia é que ficámos mais descansados. Foi um processo incrível.

Pode partilhar quanto é que pagou pela trufa?

Nunca partilhei e só três pessoas sabem, nem os meus filhos sabem. Um dia vou contar-lhes.

E o projeto de busca por trufas em Portugal?

Eu gosto de chamar-me louco. Ainda mais a minha mulher, porque no início não aceita, mas depois aceita as minhas loucuras todas. Como na história das pizzas. São coisas difíceis de fazer em circunstâncias normais. Na altura, na pandemia, todas as coisas estavam fechadas. Então eu fiquei parado em casa. Fiz uma ação de solidariedade com o Banco Alimentar, em que distribuímos 10.500 pizzas, porta a porta, qualidade Forno D'Oro a pessoas carenciadas. Falei com a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, e disse que gostava de fazer isto porque toda a gente diz que não há. Mas como é que posso dizer que não há se nunca ninguém verificou? No início parecia tudo bonito, mas, na verdade, é muito difícil procurar os terrenos apropriados no país inteiro. Houve várias noites em que não consegui dormir porque não queria largar uma coisa tão interessante, mas percebemos que era extremamente difícil.

Irá o chef Tanka Sapkota encontrar em Portugal o tesouro dos bosques? A caça às trufas está a correr o país
Irá o chef Tanka Sapkota encontrar em Portugal o tesouro dos bosques? A caça às trufas está a correr o país créditos: Luís Rodrigues

Em algum momento pensou em desistir?

Falámos com quase 20 cientistas, com quatro universidades. Diziam que era uma loucura, que estava a procurar uma agulha no palheiro. E nesta situação com cientistas, ministérios, universidades a falar contra, que sou louco em avançar. Ninguém acreditava, mas ajudaram. Desde Vimioso, até ao Algarve, começamos a procurar. Encontrámos muitas trufas vermelhas, mas todas pequenas, tipo azeitona. Algumas coisas um bocadinho maiores, mas nada especial. Percorremos Norte a Sul em seis, sete semanas.

E o que aconteceu depois?  Só em 2024 é que se confirmou a existência de trufas em Portugal.

Como foi falado nas televisões e nos jornais, há um homem que encontra uma coisa preta. Vê no Google e parece trufa. Ele procurou-me e quando vi, parecia trufa. Mandámos fazer uma análise e dizem que é trufa negra de verão. E depois procuramos em mais sítios e encontramos em quatro lugares diferentes. No início nós pensávamos que era só uma trufa, foi num pinhal manso com 10, 12 anos. Depois encontramos num pinhal de 30 anos, havia trufas ainda maiores, em Alenquer e Sobral de Monte Agraço. Por isso, acho que há muito mais trufas do que nós pensámos. Mesmo depois de ter trufas na minha mão todos os dias, eu não acreditava.

Houve uma altura em que me sentia como o Nepalês. Noutra altura comecei a senti-me como o Asiático. Neste momento, quero sentir-me humano
De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota
De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota créditos: Divulgação

Vamos falar do documentário “Sabores de Itália”. Como surgiu a ideia?

O que acontece é que apesar de ter estudado na melhor escola [em Itália], ainda não estava satisfeito. Gostava de falar com os chefs de estrelas Michelin, em Itália. Eu conhecia só dois jornalistas, que abriram muitas portas, mas não era suficiente para ir a qualquer lado. Esta semana, por exemplo, vamos falar com o Oscar Farinetti, que é o maior empresário da restauração em Itália, com coisas de qualidade. Então pensei, vou levar um amigo e vamos fazer uns vídeos, fazemos divulgação. Esse amigo diz-me que não é possível, que devia falar primeiro com a televisão. Mas eu não tinha esse tempo e tinha de ser naquela altura. Fomos com uma equipa de 12 pessoas fazer as filmagens. Foi difícil, mas abriram-se todas as portas que podíamos imaginar. E fui tão bem recebido, as pessoas mais importantes de culinária e vinhos receberam-me de braços abertos. O documentário demorou um bocadinho a sair, mas agora está na TVI e também na CNN. É assim que acontece o documentário, de uma maluqueira.

Quero aproveitar as coisas boas, de qualquer religião, para o meu dia a dia e a meditação consegue fazer ver de forma mais clara

Hoje, o que o move?

Houve uma altura em que me sentia como o Nepalês. Noutra altura comecei a senti-me como o Asiático. Neste momento, quero sentir-me humano. Não quer dizer que quero deixar uma marca, mas quero deixar alguma coisa. Há uma palavra que quero sublinhar: dever. Dever como filho, como pai, como marido, como família, como uma pessoa que nasceu no Nepal, como pessoa que fez da cozinha italiana a sua carreira. Mas deixar alguma coisa para a sociedade, que puder melhorar. O meu slogan é, "eu não posso mudar o mundo, mas posso ajudar a melhorá-lo". Basear uma vida numa palavra é muito difícil.

nós somos fruto do tempo. Porque se fosse hoje, mesmo com a minha persistência, como há muitos mais restaurantes italianos, eu morria na sombra

Uma das suas atividades conhecidas são as causas humanitárias para as quais contribui.

Sim, fizemos várias coisas. Para o Banco Alimentar, fizemos as pizzas, fizemos comida para os hospitais, fizemos uma petição para a União Europeia para dar ajuda ao Nepal, porque é mais pobre, por causa do terramoto em Itália, terramoto no Nepal, ajuda para Moçambique. Mas nesta altura estou a pensar em coisas que podem ajudar a longo prazo e o meu sonho é levar a meditação junto da sociedade. Porque a meditação não pertence a nenhuma religião. Se alguém diz que pertence é porque não sabe nada do que é a meditação, é um património humanitário. O maior descobrimento interior da pessoa. Nós vimos desenvolvimento tanto por fora, material, mas há 2600 anos, Buda descobriu que a verdadeira paz está dentro de ti. Se uma pessoa nasce, o sofrimento nasce e o sofrimento existe. Mas há um caminho para sairmos do sofrimento. Acho que essa é a mensagem. Eu não sou budista, nem quero ser nunca. Quero aproveitar as coisas boas, de qualquer religião, para o meu dia a dia e a meditação consegue fazer ver de forma mais clara, quais são as nossas obrigações. Porque muitas vezes nós vivemos na superfície. Este seria o meu sonho principal. Vamos ver o que consigo fazer.

Já percebemos que o chef Tanka é uma pessoa persistente e que valoriza muito a questão do tempo.

O principal é o tempo. O tempo também manda muito, não é? Já viu há dez anos, por esta casa [aponta para o prédio em frente] pediram 150 mil euros. São quatro andares. Hoje devem pedir dois milhões ou mais. Isto é tempo. Ninguém conseguia imaginar há 10 anos que ia ser assim. Por isso nós somos fruto do tempo. Porque se fosse hoje, mesmo com a minha persistência, como há muitos mais restaurantes italianos, eu morria na sombra. Se não tivesse acontecido o COVID, não havia trabalho solidário, talvez nem houvesse trufas. O tempo é mais forte que qualquer coisa que nós podemos imaginar.

De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota
De lavar pratos a chef de três restaurantes premiados. A história que parece ficção, mas é a realidade de Tanka Sapkota Restaurante Forno D'Oro créditos: Divulgação

Além do Come Prima, também tem o Forno d'Oro e o Il Mercato, que têm sido galardoados. Como é que se deu a expansão?

Eu vou falar toda a verdade. Em 2010, eu tinha a Casa Nepalesa, aberto em plena crise. Mas dei ao meu irmão para gerir. Depois eu não queria sentir-me estrangeiro e queria que os meus filhos fossem para uma boa escola. Tinha muitas ideias na cabeça. Uma altura, eu e a minha mulher, estávamos em Itália, em Veneza, e disse: se queremos dar estudos aos nossos filhos, tenho uma ideia muito boa, mas é um grande risco. Porque em 2010, na altura da crise, as pizzas napolitanas em Portugal não existiam. Então, planeámos o Forno D'Oro. Um pizzaiolo fazia massa três vezes por dia, eu chateava muitas vezes. E um dia, apareceu uma massa de pizza como eu queria, depois de 300 ou 400 vezes, a fazer testes. Nasce o Forno d'Oro assente em três pés: um na pizza, outro no forno e outro na cerveja. Se estivesse sentado apenas num, podia cair facilmente. Mas o conceito foi fabuloso para o mundo inteiro, porque juntou o melhor forno do mundo, com cervejas artesanais, com os melhores ingredientes nacionais e italianos. Por isso é que o restaurante já fez 10 anos.

Em 2006, tinha dois caminhos: ir para o caminho do guia de Michelin ou fazer a minha própria jornada. Não estou nada arrependido

E o Il Mercato, no Pátio Bagatela?

Com o Il Mercato... Eu matei dois projetos, mas o meu primo tinha pressa, queria abrir em seis meses, de qualquer maneira, para não ficar sem fazer nada. Então comecei a cavar e apareceu. Foi um dos primeiros conceitos com garrafeira, em 2016. Hoje em dia já temos muitos conceitos parecidos.

Que balanço faz das suas escolhas?

Em 2006, tinha dois caminhos: ir para o caminho do guia de Michelin ou fazer a minha própria jornada. Não estou nada arrependido. Respeito imenso quem está no guia, mas acho que fiz um caminho mais interessante do que conseguir uma estrela.

O chef já referiu que sente o dever, fazer algo mais.

Exatamente, o meu dever não é para o hoje. O meu pai, quando tinha 91 anos, vendeu todo o património para ajudar uma fundação de crianças. Isto é o que quero dizer quando fazemos coisas para o longo prazo: é fazer valer a pena.

Já falou dos projetos que teve, dos que concretizou, mas o que é que ainda gostava de concretizar?

Eu gostava de divulgar a comida do Nepal e a sua cultura para o mundo. Para Portugal e para o mundo, eu gostava de trabalhar mais a meditação. Este é o meu sonho neste momento. São duas coisas. Espero que se concretize, se o tempo poder ajudar.

Cronologia de uma carreira

2016 – É eleito o “Jovem Empresário Empreendedor do Ano 2016” em Portugal, pela AHRESP.

2018 – Come Prima é eleito entre os melhores 70 restaurantes italianos do mundo, incluindo Itália, pelo Extraordinary Italian Taste.

2018 – É eleito Cavaleiro da Trufa Branca de Alba, reconhecimento entregue apenas a 20 pessoas no mundo, sendo o único em Portugal.

2019 – Forno D’Oro é eleito como a 16ª melhor pizzaria do guia 50 Top Pizza Europa. É também distinguido como o 21º melhor restaurante do top das 50 Melhores Pizzas da Europa de 2021, da Big 7 Travel, em todas as categorias, incluindo Itália. É o único restaurante português a integrar a primeira edição do 50 Top Pizza Europa, do reconhecido guia 50 Top Pizza World.

2020 – Forno D’Oro integra o “Top Ten da Pizza Napolitana no mundo”. Recebe ainda os prémios de “Melhor Pizzaria de Portugal”; 22ª Melhor Pizzaria entre as 50 Melhores da Europa, do 50 Top Pizza Europa 2020; e é distinguido como a pizzaria com a “Melhor Lista de Cervejas da Europa”, pelo mesmo guia.

2021 – Forno D’Oro é escolhido como a 20ª Melhor Pizzaria entre as 50 Melhores da Europa, do 50 Top Pizza Europa 2021.

2022 – Come Prima é eleito como a “Melhor Cozinha do Mundo em Portugal”, pela revista Grandes Escolhas. Forno D’Oro ocupa a 16ª posição do 50 Top Pizza Europa e o 13º lugar do Best Pizzas in Europe 2022, sendo o único português a figurar esta lista da Big 7 Travel.

2023 – Forno D’Oro é eleito como o 16º melhor restaurante do Top 50 Pizza Europa 2023.

2024 – Forno D’Oro ascende à 12ª posição do 50 Top Pizza Europa 2024.

E para os seus restaurantes?

Tentar sempre fazer qualquer coisa melhor, mas não abrindo mais restaurantes. E trabalhar nas trufas porque o meu sonho é um dia estar cheio de árvores para conseguir cultivar trufas. Era fantástico.

Já pensou ter uma quinta?

Eu pensei, mas para mim é mais importante motivar as pessoas. Eu podia fazer 10 hectares. O marketing era maior, para mim e para o restaurante. Mas por outro lado, se se fizer bastante barulho, em vez de 10 hectares, conseguimos fazer 1.000 ou 10.000. E hoje, se divulgar produtos diferentes com maior alcance para a sociedade, em vez de focar em mim, ficamos com um projeto muito maior. Acho que isto vai acontecer, com a trufa vai acontecer com certeza.

Quando foi para a Alemanha, também foi com a intenção de estudar?

Pensava em estudar, tirar o curso alemão, mas depois comecei a gostar de cozinha e aconteceu.

Queria que os seus filhos tivessem bons estudos. Conseguiu concretizar?

Sim. A minha filha está em Inglaterra a estudar gestão e o meu filho parece ser um cantor, vamos ver. Mas está a estudar, quer fazer gestão. Eu não queria que ele deixasse os estudos para cantar, porque é muito arriscado. Mesmo que ele seja músico, tem de saber gerir. É como na restauração: podes abrir um grande restaurante e depois não o saber gerir. E ele tem-nos ajudado bastante na parte digital do restaurante. Eu não quero que ele venha assegurar o meu negócio, porque é extremamente desgastante. É um restaurante que está há 25 anos no topo.

Mas valeu a pena?

Eu digo que não tenho dois filhos, tenho seis, com os restaurantes. Mas estes quatro dão muito mais trabalho que os filhos. Os meus filhos não dão trabalho nenhum. Não consegui dar tempo aos meus amigos, mas consegui dar tempo aos meus filhos. Para já, estão muito bem encaminhados.