Disse, numa entrevista, que a sua família sempre lhe deu permissão para sonhar. Com o que é que sonhava quando era mais pequeno?
Na altura tínhamos os livros d’Os Cinco, portanto tudo era um mistério. Quando alguém estava à noite, num sítio escuro, a carregar uma coisa num carro nós pensávamos logo: "O que será que alguém está ali a levar?" Qualquer coisa que saísse fora do normal naquela altura já tínhamos de ir investigar e fazíamos de tudo um mistério. Depois havia outro lado, que era a influência do meu pai na História, que era absolutamente fascinante. Quando parava e nos começava a contar as histórias dele sobre a História de Portugal era uma coisa absolutamente fascinante. Eu parava a olhar para ele, boquiaberto, e depois o resultado daquilo eram viagens incríveis: de um caixote fazia um navio, de um navio fazia um cavalo. Passava a vida a recriar aquelas coisas e sonhava com aquelas conquistas, com os grandes feitos e com os grandes homens. Isso foi uma coisa que acho que ficou no meu imaginário. Depois foi uma infância na Serra da Arrábida, em Azeitão, em que os dias não chegavam. Lembro-me de fazer as refeições a correr e perguntar: "Posso-me levantar e ir brincar mais um bocadinho." Era sempre uma aventura permanente e isso foi uma coisa muito saudável. Por outro lado, há a dualidade do tio Sebastião da Gama.
Que, por aquilo que sei, também foi uma figura marcante na sua vida...
É nascer com alguém na família que todos dizem: "O Tio Sebastião era a pessoa mais maravilhosa que tu possas imaginar." Era quase um santo na Terra porque era tão desegocentrado e tão afeiçoado ao amor por todas as coisas, por todos os seres vivos, pela serra e pelas pessoas. O tio Sebastião saía da Escola Veiga Beirão [em Lisboa] onde dava aulas, vinha uma florista, comprava flores para a tia Joana Luísa, mas no caminho encontrava dez pessoas, chegava cá e dizia: "Olha Joana, eu comprei-te umas flores, mas, entretanto, encontrei gente tão bonita no caminho que fui dando as flores todas". [risos]. Uma criança nascer nesta dualidade não é fácil porque subcarrega-nos o lado emocional e subcarrega-nos sonho de alguma forma. Mais tarde, lembro-me que comecei a ter relação com o vento, com a chuva, com o mar, com a serra e acho que, de alguma forma, isso era tudo uma herança dele. Se calhar, de toda a família, sou a pessoa mais próxima de tudo isso, até pelo meu lado criativo e pela profissão que tenho. E isto perante um pai e uma família paternal extremamente rígida, militarista sendo que, do outro lado, havia o lado emocional da avó Bina, da casa das tortas, da mãe e do tio Sebastião.
Falou de duas figuras muito importantes na sua vida: a sua avó e a sua mãe. Pegando na figura da sua mãe, curiosamente, a moda surge na sua vida para colmatar uma necessidade: o facto de esta não encontrar roupa que lhe servisse em lojas de pronto-a-vestir e ter de recorrer a costureiras…
Toda a vida fui um puto igual, ou parecido, aos outros todos e, de repente, fiquei um camião TIR gigante em que nada me servia: os sapatos não me serviam, as calças ficavam curtas, as camisas e as camisolas ficavam todas curtas nas mangas. Isto porque na altura tínhamos um país em que as pessoas consideraram que a altura média do português era 1,70m e eu tinha 1,90m. Portanto, era sempre o desgraçadinho da família porque estava sempre com os pés de fora, inclusivamente na cama. [risos] De repente há uma constatação: "se alguém vai ter de fazer alguma coisa para mim, então eu quero escolher porque sei o que quero, que gosto de determinadas cores" e isto aliado ao facto de eu desenhar desde sempre. Tinha muita facilidade para desenhar e comecei a fazer desenhos específicos para t-shirts. Lembro-me que na altura criei um bonequinho, cuja intenção era ter algo que pudesse reproduzir várias vezes, me permitisse fazer adaptações e tornar a coisa de alguma forma já produzível, e foi isso que acabou por acontecer. Com 16 ou 17 anos é o momento em que eu faço uns fatos de banho.
Eu nunca gostei de pertencer a um grupo ou a coisas fechadas que me obrigam a ter de ser o que quer que seja
Que foram pintados por si...
Sim. Tenho ali o portfólio onde encontrei desenhos dessa altura, estamos a falar de 1984. Quando resolvo fazer os fatos de banho, aparece-me o Alain da Mr. Wonderful que adora, compra-me os fatos de banho todos, encomenda mais e eu começo a produzir daí para a frente. Aí as minhas aulas começam a ser muito abstraídas das matérias e já a pensar: "Tenho de fazer fatos de banho. Como é que vou fazer, quais as cores, os materiais." O meu cérebro já estava em função da coisa. O professor e arquiteto Amílcar Cabral disse-me: "Ó Nuno estás a perder o teu tempo. Olha para os teus cadernos: tu só pensas em fatos de banho e em roupa. Há um curso muito bom que acabou de abrir no Porto, no CITEX, portanto vai à tua vida." E pensei: "Vou tirar engenharia têxtil, começo a trabalhar, ganho dinheiro e vou tirar o curso mais tarde". Só que, entretanto, surgiu a oportunidade de me inscrever, e concorri sem dizer nada a ninguém. Tínhamos de fazer um portfólio e a única pessoa que soube na altura foi a minha avó Bina, que me ajudava a fazer as noitadas para adiantar o trabalho e para que ninguém fizesse muitas perguntas. Entretanto concorri e tive ali uns meses de "sufoco" à espera que chegasse um sim ou um não. Um dia estávamos a almoçar e, de repente, vi o carteiro a chegar e achei que as notícias vinham naquele momento. Levantei-me para ir buscar o correio, algo que toda a gente já achou muito estranho porque eu não recebia cartas de ninguém naquela altura, e vinha uma carta do CITEX. Acho que estive uns 5/10 minutos para ler a carta que dizia que tinha sido admitido para fazer os testes e fazer uma entrevista. Desatei aos gritos de felicidade, atirei tudo ao ar e a família toda perguntou: "O que é que aconteceu?" e eu disse: "Vou para o Porto". E o meu pai disse: "Vais onde?" "Vou para o Porto estudar, entrei para o CITEX". "Tu não vais para o Porto, coisa nenhuma." O meu pai ficou irritadíssimo por se sentir excluído e depois foi todo um processo de família de se aperceberem que aquilo era realmente o que eu queria e que ninguém me iria parar. Quando metia uma coisa na cabeça, era aquilo e não valia a pena perderem tempo.
Ninguém o demovia.
Se não fosse a nado ia de joelhos, se não fosse de joelhos ia às cambalhotas, mas eu iria lá chegar. E foi assim. A minha partida foi a 26 de agosto de 1986 e lá fui eu para o Porto.
Até porque começou a desenhar coleções muito antes de terminar o curso, correto?
Sim. Como sempre tive muita facilidade em relacionar-me, fui para o Porto e conheci logo uns grupos de pessoas. Depois fui trabalhar com o António Queilhas na Naf Naf, em seguida com várias pessoas em que fizemos coisas incríveis, até que no segundo ano fui para uma empresa onde estive algum tempo, a Fomentêxtil, onde ganhamos uma série de prémios e foi tudo muito rápido. Quando acabei o curso, as pessoas olhavam para mim e diziam-me: "Estás a acabar o curso agora? Mas tu já és nosso colega, já és profissional nisto". Isto porque, praticamente desde que fui para o Porto, já estava a fazer coisas e com visibilidade. Em 1988 fiz aquele que foi um grande desfile na altura, na primeira Artejo, no Padrão dos Descobrimentos, uma noite de agosto, ao som de Carmina Burana [de Carl Orff], que era um dos meus sonhos por influência do filme Les Uns et les Autres [de Claude Lelouch]...
Num ano em que se tem um incêndio e que se faz três cirurgias à coluna de seguida, o ego de certeza que não é a coisa mais importante na nossa vida
Esse foi o seu primeiro desfile?
Foi o meu primeiro desfile enquanto Nuno Gama. Entraram uns 20 homens com tochas acesas, todos de calções e de camisas, só que as camisas eram todas trabalhadas com golas inspiradas nos motivos manuelinos. Aquilo foi uma coisa que teve um impacto muito grande em toda a gente. Os manequins, inclusivamente, ficaram todos: "Uau, quem é este gajo que faz uma coisa tão diferente, tão fora da caixa, tão marcante e tão portuguesa ao mesmo tempo?".
Já nesta altura, a teatralidade fazia parte daquilo que é o ADN da marca Nuno Gama?
Sempre fez parte de mim. Eu fiz teatro, inclusivamente. Criei uma companhia em Azeitão onde fazia os cenários e encenava as peças, fiz dança, joguei rugby… Eu toda a vida fiz coisas porque realmente sempre tive um problema: não ter tempo para não fazer nada. Eu devo ter uma síndrome qualquer porque é impossível estar parado. [risos] Por exemplo, os terços Nuno Gama nascem dos momentos de praia em que eu, aborrecido com os meus amigos que passavam o dia inteiro a dormir ao sol, tipo lagartos, comecei a apanhar os restos das cordas e cordéis e comecei a dar nós. E lembrei-me de uns terços que havia dos Monges da Arrábida e pensei: "Se calhar também consigo fazer." Uma senhora a fazer crochê na praia era quase o meu equivalente, porque estava sempre a dar nós [risos]. Tornou-se uma obsessão em conseguir arranjar uma fórmula de fazer aquilo direito. E consegui. Esses terços que estamos a falar são um fio contínuo de 14 metros onde se começa a dar nós numa ponta e vai-se por aí fora.
Em 1993 regista a marca Nuno Gama. Como é que a define?
Não defino porque acho que as definições são algo cada vez mais difícil. Se há uns anos as coisas eram muito brancas e muito pretas, hoje em dia, cada vez mais, as coisas têm milhares de sabores, paladares, temperos, coloridos diferentes e texturas. Nós temos clientes muito novos, com 15/16 anos, mas também temos clientes com mais de 70 e isto dá-nos uma panóplia muito gigante. Tenho clientes que vêm aqui só fazer fatos e que nem olham para as coleções. Depois tenho outros que é só coleção, só querem as coisas mais exuberantes e não olham para nada que é discreto. Por exemplo, hoje estou de fato com um kimono por baixo, mas amanhã posso estar de fato e gravata ou só de jeans e uma t-shirt. Eu nunca gostei de pertencer a um grupo ou a coisas fechadas que me obrigam a ter de ser o que quer que seja. Até mesmo nos manequins há pessoas que lhes faz confusão a minha opção de manequins e a mim faz-me a inversa: o facto de as pessoas estarem, de alguma forma, estereotipadas e terem todas o mesmo look. Eu olho para os meus looks e eles são tão diferentes e acho isso tão maravilhoso.
Desistir não é uma opção para mim. Eu não desisto de nada nem de ninguém
Quando se mudou para o Norte do país e começou a dar os seus primeiros passos como estilista, como é que era a indústria da moda que o recebeu naquela altura face àquela que existe atualmente?
É tudo diferente. Era uma indústria poluidora, que deixou de o ser poucos anos depois, não havia os meios de comunicação que há hoje, não havia autoestrada e irmos do Porto a Braga era uma aventura que podia demorar um dia. Hoje em dia existe toda uma facilidade de comunicação e depois há outra vantagem: quando chegamos a uma fábrica nova há toda uma aprendizagem a fazer de início de relação. Depois de passarmos algum tempo com essas pessoas, já há uma linguagem e já nos começamos a entender, como tudo na vida. Era uma indústria com muito mais gente do que agora. Imensa gente ficou pelo caminho e imensa gente evoluiu, e eu acho que essa evolução é que é o mais saudável. Hoje em dia, e isso também teve a ver muito com a nossa entrada na Comunidade Europeia, as empresas tiveram de evoluir de forma a não serem poluidoras, de forma a serem uma série de coisas novas que atualmente são regras fundamentais e que faz muita diferença na nossa indústria, felizmente.
O ano de 1998 foi muito marcante para si tanto a nível profissional - o incêndio fruto de um curto-circuito que destruiu o seu atelier na baixa do Porto - como a nível pessoal - com várias operações à coluna devido a uma hérnia. É em alturas como estas em que se põe a vida em perspetiva?
São oportunidades de evoluir. Eu acho que há três há formas de reagir: não fazermos nada e ficarmos a pasmar, cortamos os pulsos ou então olharmos para as coisas e fazermos perguntas à vida. É toda uma oportunidade de crescimento, de evolução e de fortalecimento. É duro, custa, foi uma travessia do deserto, mas foi uma travessia do deserto absolutamente extraordinária que, no fim, a gratidão com que se olha para a vida é completamente diferente. A perceção é completamente diferente, a paixão com que se faz as coisas é completamente diferente e, sobretudo uma coisa magnífica que é a invencibilidade que ganhamos, até porque o ego deixa de estar cá em cima. Num ano em que se tem um incêndio e que se faz três cirurgias à coluna de seguida, o ego de certeza que não é a coisa mais importante na nossa vida.
Desistir da moda nunca foi uma opção si?
Desistir não é uma opção para mim. Eu só desisto quando não há mais caminho e depois de tentar todas as fórmulas possíveis e imaginárias. Eu não desisto de nada nem de ninguém. Só depois de ter a certeza de que já tentei tudo o que era possível e já não vejo mais caminho nem mais alternativa.
Eu acho que é impossível fazer qualquer coisa sem autenticidade, porque eu acho que quando nós perdemos a autenticidade passamos a substituir as máquinas
E como é que se reergue a marca Nuno Gama após algo deste género? Fale-me dos anos que se sucederam onde colaborou com a Maconde e a Pinho Vieira.
Os anos seguintes são anos maravilhosos e uma segunda hipótese de escola. Tive a minha formação no CITEX, já tinha tido a minha experiência a nível nacional e internacional, mas de repente entro numa máquina gigantesca chamada Maconde em que estamos a falar de gente de todo o mundo: Austrália, Taiwan, Japão, México, Chile, América do Norte, Dinamarca, estamos a falar de Calvin Klein ou de Paul Smith, de H&M ou de Zara. De repente tinha de se falar todas as línguas e isto dá-nos um jogo de cintura completamente diferente. Mais uma vez é uma grande oportunidade de aprender imenso e de ganhar imensas ferramentas novas, como falar imensas línguas, perceber mentalidades, perceber porque é que na Austrália adoram cor-de-rosa e nós aqui não gostamos. Todas estas coisas que, aparentemente, às vezes são estranhas e difíceis de entender, mas quando temos de trabalhar com elas são extremamente interessantes. Acho que o resultado do meu trabalho, onde sou criativo, mas comercial ao mesmo tempo, também tem muito a ver com o facto de ter criado uma relação muito forte em relação à expectativa do cliente. Aquilo que o cliente quer, quando é ele que vai vestir isto, como é que se lava, como faço a manutenção desta peça? Há uma série de questões inerentes ao processo do dia a dia da vestibilidade que são essenciais e sempre primordiais no desenho da peça. São várias etapas da minha vida.
Em 2011, ao fim de 25 anos, dá-se a sua transição do Porto para Lisboa onde viria a abrir uma loja em nome próprio. Como foi essa experiência?
Com o incêndio perdi tudo. Fiquei sem nada e mal sobrevivi eu. Depois estive na Maconde e daí fui para a Pinho Vieira. Da Pinho Vieira regressei novamente às coleções e, entretanto, abri a loja sozinho, no Porto, sendo que ainda tive uma ou duas lojas em sítios diferentes. Vim para Lisboa em 2011, com a morte do meu pai, porque percebi que não ia ter a minha mãe muito mais anos. Embora ela estivesse bem na altura, houve ali um alerta e, para além disso, a minha família e os meus sobrinhos estavam a crescer. As crianças que tinha na minha memória, já estavam a ficar adultas, a casar e a ter filhos e eu disse: "Isto não faz sentido". E, devido à evolução que falámos, deixou de ser necessário irmos todos os dias à fábrica tratar diretamente das coisas e podemos mandar coisas por email.
A abertura desta loja na capital foi, de certa forma, um recomeço, para a marca Nuno Gama depois dos últimos anos?
O Nuno é a marca Nuno Gama, e para o Nuno todos dias é um recomeço. Todos os dias tenho uma tarefa matinal que é direcionada para os outros, mas que é sobretudo um exercício para mim: a primeira coisa que eu faço de manhã é desejar um bom aniversário às pessoas que estão nas minhas redes sociais. É obrigar-me a canalizar-me de energia boa para dar aos outros. Eu não acordo maldisposto, acordo sempre "on" porque há essa tarefa matinal. Portanto, isto é a minha vida.
O raciocínio de pensar uma coleção masculina e feminina são raciocínios completamente diferentes
Disse que não há uma distinção entre o Nuno Gama indivíduo e da marca Nuno Gama. Um é a extensão do outro?
Nem é uma extensão pois somos ambos as duas coisas. Todas as opções que eu faça recaem sobre mim e sobre a marca, que também sou eu. Sou eu que faço as coisas, que dou cara, dou entrevistas e as minhas fotografias estão por toda a parte, portanto é assim que eu sei fazer a vida. Não me vou esconder, nem vou fugir. Eu tenho esta responsabilidade e tenho de arcar com as consequências das coisas. Não faz sentido de outra maneira.
Referiu em entrevista que a autenticidade é uma das qualidades que mais admira em alguém. Para si é impossível fazer moda sem autenticidade?
Eu acho que é impossível fazer qualquer coisa sem autenticidade, porque eu acho que quando nós perdemos a autenticidade passamos a substituir as máquinas. O lado incrível da vida é a forma como podemos fazer a diferença. Por exemplo, eu gosto de cozinhar e, quando vou para a cozinha, tudo se anula à minha volta. Entro numa bolha onde o importante é o amor e carinho que eu vou dar às pessoas que vão usufruir daquele momento comigo. É como as pessoas que resolveram atravessar um temporal e teimaram em ir ao meu desfile, onde tínhamos quase 400 pessoas a assistir. Tocou-me muito. Senti-me muito grato, muito amado, muito acarinhado. Se tivesse estado um dia lindo de sol, se calhar éramos mil ou dois mil, mas o importante é que num dia de temporal de fim do mundo como estava, houve imensa gente que veio para estar comigo. Isso é toda a diferença humana que podemos fazer das coisas. Essa diferença é a nossa autenticidade, é o nosso melhor, é o nosso lado mais especial.
Para além da autenticidade, um dos segredos para ser bem-sucedido nesta área passa por ouvir as necessidades do cliente?
Com certeza que sim. Isto é um meio de comunicação, aquilo que nós fazemos é para as pessoas vestirem e é para os clientes. Se isto não existir, nada disto faz sentido. Isso é a alma da história. Uma dúvida que, pelo menos eu tenho quando estou a fazer as coleções, é o que estou a pôr a menos e o que estou a pôr a mais. Tento perceber: "Ok, se já tenho um casaco com um detalhe, então posso pôr uma coisa mais básica". Fazer esse jogo de equilíbrio acaba por ser uma técnica, uma matemática de alguma forma. Não é só um processo emocional porque 'sim e me apetece'. Isso não faz sentido.
Todas as coleções acabam por ter uma história e uma memória fantástica de alguma coisa que as torna a todas especiais
Em 2014 apresentou uma coleção feminina com um desfile no Terreiro do Paço. Recorda-se das primeiras peças que desenhou para mulher e por que motivo nunca deu continuidade a este tipo de propostas dentro daquele que é o universo Nuno Gama?
No início, em 1988, quando estava a trabalhar na Fomentêxtil criei a coleção Oficina da Moda, que era uma coleção de senhora que chegámos a apresentar até a nível internacional. Durante muitos anos tive coleções masculinas e femininas, mas depois do incêndio deixei de ter porque me especializei em vestuário masculino na Maconde. Hoje continuo a fazer algumas coisas, temos alguns clientes que nos pedem peças para casamentos e ocasiões especiais, mas, em 2014, fiz uma pequena cápsula quando foi o desfile no Terreiro do Paço. O raciocínio de pensar uma coleção masculina e feminina são raciocínios completamente diferentes. O comportamento do homem dentro de uma peça de roupa não tem nada a ver com o da mulher.
E que comportamentos são esses?
À mulher basta-lhe estar sexy, gira e, desculpe a expressão, "boazona" que já está feliz e contente de alguma forma, salvo aquelas senhoras extremamente conservadoras. O homem não tem sequer este raciocínio, tendo de estar confortável e de se sentir adequado à situação. São raciocínios completamente diferentes e eu acho que estou muito bem neste raciocínio. Acho que faço este papel muito bem, gosto muito dele, até pela minha forma de ser, e pela minha masculinidade é-me fácil de interpretar esse lado masculino. A senhora põe-me um bocadinho fora de pé e, se calhar, leva-me para sítios em que eu possa ser menos assertivo ou sentir-me mais desconfortável de alguma forma, como se veste bem ou se está a magoar.
A portugalidade e as tradições da cultura portuguesa são fonte de inspiração para si e o tema central de muitas das suas coleções. Esta é uma forma de mostrar ao mundo que tem orgulho em ser português?
É, e o logótipo Nuno Gama é exatamente isso. Se reparar a cruz está dentro do "o" e não dentro de outra letra e o "o" simboliza o mundo. O grande objetivo da marca Nuno Gama é levar a cultura portuguesa ao mundo. Essa é a nossa máxima. Assim como eu também não gosto de estar parado, na minha família ninguém também estava parado e sempre assisti aos serões a fazerem tapetes, crochê, quadros de ponto cruz, toalhas de mesa, presentes de Natal, roupa para crianças que iam nascer. E isso é uma coisa que se aprende a admirar: estas artes culturais que nós temos, o feito à mão e as pessoas que se recusam a deixar de dar o seu melhor e a deixar de fazer especial. E isso fascina-me. Prefiro saber que tenho um casaco que foi feito à mão por alguém especial de uma forma especial. Acho que isso faz toda a diferença e isso é a marca Nuno Gama também.
Sei que tenho vontade de fazer coisas diferentes. Se as vou fazer com a ModaLisboa ou não, não sei
Das mais de 50 coleções que já desenhou, alguma que tenha um significado especial para si ou recorde com mais carinho?
Todas as coleções acabam por ter uma história e uma memória fantástica de alguma coisa que as torna a todas especiais. É difícil dizer uma, mas há uma história que é, talvez mais marcante, por todo o conteúdo. O meu pai tinha um sobretudo cinza príncipe de gales com um filetezinho mel. Eu e os meus irmãos quase que brigávamos a ver quem é que acordava mais cedo para o vestir. Isto foi há muitos anos, devia ter nove anos no máximo, mas em 2010/2011, estava a escolher tecidos e na coleção que eu estava a ver do Almatex surge-me um tecido quase igual ao do casaco do meu pai só que de cor diferente: era verde, antracite e mel. E aquele tecido trouxe-me uma série de memórias: o meu pai enquanto pessoa, o meu pai nas histórias que me contava, nas fantasias dos heróis da História e de uma série de coisas que foi muito ele que me deu. E a partir dali é como se tivesse aberto uma caixa com memórias que tinha a ver com ele. Nessa altura o meu pai já estava a ficar bastante doente, o que também me ajudou a sarar a situação de alguma forma e perceber que existem doenças evolutivas graves, que acabam por nos levar as pessoas.
Para mim foi absolutamente extraordinário ter tido essa chance de ter feito essa despedida ao meu pai. Ajudou-me a sobreviver a ausência, ajudou-me a ultrapassar as dores dos momentos que, às vezes, são difíceis de ultrapassar. Ele morreu dias antes da apresentação da ModaLisboa e e disse: "Nem sequer vou apresentar a coleção, não faz sentido nenhum. Acabamos de enterrar o pai, não vou fazer uma festa a seguir". E a minha mãe virou-se para mim e disse: "Não. Vais e vamos todos, porque foi para isso que trabalhaste e, onde quer que estejas, é isto que o teu pai espera de ti porque fizeste isto para ele e é isso que tens de contar aos outros: a história de porque é que o teu pai foi especial para ti." E assim foi e, mais uma vez, a minha mãe deu-me mais uma bofetada de luva branca e empurrou-me para a frente. Ela era uma mulher com essas capacidades especiais. [emociona-se]
A joalharia sempre foi um complemento forte da sua marca. Acredita que os acessórios são capazes de elevar ou arruinar por completo um look?
Acho que faz toda a diferença, mas que isso tem muito a ver com as pessoas. Eu venho de um sítio onde as coisas eram valorizadas. A avó Bina tinha caixas, caixinhas e caixotinhas de coisas de há dois séculos e onde tudo era religiosamente guardado. Todos os objetos vinham carregados de história, de memórias, de coisas boas e bonitas, de respeito, de carinho, de afeto e acho que este meu lado [vaidoso] tem muito a ver com a avó Bina porque era vaidosa e não saía sem se arranjar.
Há pouco falou no seu último desfile outono/inverno, que descreveu como emotivo, e que se realizou no Castelo de São Jorge. Como descreve a coleção Essência?
É uma coleção engraçada porque começa por uma metade. Tive o desafio de fazer um trabalho com o mestre [pintor e escultor] José de Guimarães. Não nos conhecíamos e fiquei completamente fascinado pela forma como nos conhecemos, pelo espólio e isso ajudou-me a perceber a sua obra de uma forma mais fascinante. Quando surgiu a vontade de fazer o desfile sozinho, conversei com o Dr. Carlos Moedas e ele disse: "Ah, então chegou a hora do Nuno fazer um desfile no Castelo de São Jorge." Um desfile no Castelo de São Jorge? Achei assim uma coisa um bocadinho fora das rotas.
Agrada-me saber que marco a diferença e que não sou mais um banal igual aos outros todos
Então não foi uma ideia sua?
Não. E eu disse: "Por que não?". Fui ao Castelo de São Jorge e quando lá cheguei, o primeiro senhor que me cumprimentou foi a estátua de D. Afonso Henriques e daí para a frente tivemos uma grande conversa. Tivemos muitos dias a conversar, eu a ler, à procura, a perceber. Depois, a minha melhor amiga, que esteve aqui comigo, mora na Rua D. Afonso Henriques, no Estoril, depois havia a minha comenda [Ordem do Infante D. Henrique].
São uma série de coincidências...
De repente havia uma série de coincidências que eu disse: "Ok. Já percebi que é este o caminho.” Quando comecei a pensar nos conteúdos havia algo que me fascinava: de repente há um homem que casa, recebe um condado em herança de casamento e um dia, insatisfeito, resolve ir por aí abaixo de espada na mãe e diz: "Isto não me chega, eu quero mais e quero fazer disto um país chamado Portugal". Eu acho isto uma coisa assim absolutamente extraordinária e na minha pessoa isto causa assim um efeito "uau". Depois olhava para o mestre José Guimarães e via de alguma forma um paralelismo: o artista que, perante a pedra bruta e a tela branca, tem esta vontade e esta necessidade de compartilhar com os outros e de dizer: "Eu fiz isto, eu acredito nisto, isto é belo e quero-vos dar isto de alguma forma". E essa busca por essa essência do ser português é algo que vai comigo para a cova porque vou procurar isso eternamente. Há aqui algo misterioso que eu ainda não encontrei. Ainda não posso escrever assim 'A essência do ser português é A + B = C'. A fórmula não a tenho, estou à procura dela.
O desfile Essência foi a sua primeira apresentação a solo depois de dizer adeus à ModaLisboa após a edição primavera/verão. Por que sentiu necessidade de fazer este desfile nesta altura da sua vida?
Porque fazemos 30 anos de marca, porque não se faz 30 anos todos os dias e porque chegou a altura de fazer as coisas de maneira diferente. Não ter de fazer da maneira que os outros entendem, mas da maneira que eu acho que é correta para mim, para os meus clientes, para a marca, para as pessoas que trabalham connosco, para o país e para todos.
Mas este é um formato a que pretende dar continuidade daqui para a frente?
Não sei. Neste momento ainda estou a arrumar toda esta situação muito recente [do desfile]. Não sei. Sei que tenho vontade de fazer coisas diferentes. Se as vou fazer com a ModaLisboa ou não, não sei. Se as vou fazer sozinho? Não sei. Mas garanto que não vou desistir de mim mesmo, nem vou abafar a mim mesmo pelo quer que seja. Isso é mais forte do que eu porque não me quero triste, quero-me feliz.
O perfume é uma das coisas que gostaria de fazer e gostaria muito de voltar aos percursos internacionais
Em 30 anos de marca Nuno Gama já desenhou uniformes, fardas, já fez parcerias com marcas de carros. O que é que gostava de fazer e que ainda não fez?
Criar, finalmente, o perfume. Eu sou vaidoso e há várias coisas que são muito importantes para mim: as joias, que são os anéis de alguma forma, e o perfume. Ainda ontem os meus amigos diziam: "O Nuno já chegou" porque o meu cheiro sente-se de alguma forma. Agrada-me saber que marco a diferença e que não sou mais um banal igual aos outros todos. O perfume é uma das coisas que gostaria de fazer e gostaria muito de voltar aos percursos internacionais, porque isto de ficar aqui armado ao que quer que seja não chega. Gostava de ir lá para a luta [risos].
E isso vai concretizar-se em breve?
Eu acho que na vida, às vezes, não temos de completar todas as nossas tarefas dos nossos objetivos. Para mim faz sentido que eu construa algo que, alguém a seguir, um dia possa fazer. Se calhar, daqui a algum tempo eu, vou seguir a minha viagem para outra freguesia feliz e contente, onde finalmente vou rever os meus entes queridos que já foram, e isso não me assusta absolutamente nada. Acho que cada vez que penso nisso, automaticamente a ideia que tenho é paz. Mas se alguém a seguir pegar na marca Nuno Gama - que espero que o faça - possa fazer algo que, algures no tempo, eu tinha feito mal feito. A mim ninguém me garante que, daqui a um mês ou dois, eu não consiga reunir condições suficientes para o fazer. Não sabemos o dia de amanhã e a vida dá tantas voltas. Acho que o importante é estarmos atentos e de coração aberto.
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