Em todo o mundo, mas sobretudo nos continentes asiático e africano, o uso de cremes branqueadores é uma prática relativamente comum e que gera volumes de vendas de milhões de dólares para a indústria que os produz.
Segundo a empresa norte-americana de estudos de mercado mundial StategyR, o mercado dos branqueadores de pele – que inclui sabonetes, loções, cremes e comprimidos – deverá atingir este ano os 8,8 mil milhões de dólares (8,3 mil milhões de euros). Em 2026, este valor ascenderá a 11,8 mil milhões de dólares (11,2 mil milhões de euros).
A maioria dos produtos (54,3%) é consumida na Ásia/Pacífico. Só na Índia, 54% das mulheres assumem que já recorreram a estes cremes e 38% ainda o faz, indica o mesmo estudo de mercado.
A obsessão por uma pele mais clara neste país, em que as estrelas cinematográficas de Bollywood apresentam uma pela clara e brilhante, leva a que algumas recorram a produtos mais baratos, como sabonetes com mercúrio, que é uma substância proibida e que causa graves riscos para a saúde física e mental.
Em 2020, a autoridade que regula o setor do medicamento em Portugal (Infarmed) retirou três produtos – sabonete, loção e creme corporal - do mercado por conterem na sua composição mercúrio, com o sugestivo nome de ‘Fair & White’ (“Claro e Branco”)
Outro ingrediente proibido nos cosméticos, mas usado como branqueador, inclusive em lojas de produtos variados, em Lisboa, é a hidroquinona, com risco cancerígeno.
O uso destes produtos em Portugal não se compara com o que se regista na Índia. Consciente da dimensão deste problema, a organização de mulheres indianas que combatem as práticas discriminatórias Women Of Worth (Mulheres de Valor) lançou, em 2009, a campanha ‘Dark is Beautiful’ ("Escuro é bonito") que visa combater o colorismo, uma discriminação em que as pessoas são tratadas de forma diferente com base nos significados sociais ligados à cor da pele.
Estas pessoas sofrem, segundo a Women Of Worth, discriminação baseada na cor da pele na justiça criminal, nos negócios, na economia, na habitação, nos cuidados de saúde, nos meios de comunicação e na política nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa.
Os tons de pele mais claros são vistos como preferíveis em muitos países de África, Ásia e América do Sul, ainda segundo a organização.
Ao mesmo tempo que são seguidas e o seu branqueamento seguido pelas fãs, muitas figuras públicas são criticadas por recorrerem a esta prática.
O caso mais famoso é, sem dúvida, o de Michael Jackson, mas também outras estrelas têm sido o rosto do aclaramento, como Beyoncé, Rihanna e Nicki Minaj, ou a cantora nigeriana Dencia que usou em todo o corpo um creme aclarador que ela própria criou, e vende, tendo sido criticada por isso nas redes sociais.
A indústria não fica indiferente aos movimentos pró e contra o uso de branqueadores. Em 2020, quando o mundo assistia a manifestações antirracismo nos EUA, na sequência da morte de George Floyd por um agente da polícia local, a empresa L'Oréal anunciou que iria deixar de usar a palavra "branqueamento" em todos os produtos de pele.
Na mesma altura, a filial indiana da Unilever também decidiu mudar o nome de um dos seus cremes branqueadores mais famosos ‘Fair & Lovely’ (“Clara & Adorável”) para ‘Glow & Lovely’ (“Brilhante e Adorável”).
A fotografia que ilustra a embalagem deste creme, que se encontra à venda em várias lojas no centro de Lisboa, ainda que sem o obrigatório rótulo em português, conforme as regras que a legislação impõe para estes produtos (Decreto-Lei n.º 296/98), é a de uma mulher com a pele clara.
Mulheres que branqueiam a pele arriscam a saúde por “um modelo ocidental ilusório”
As mulheres que utilizam branqueadores de pele procuram “uma representação ideal da beleza que não existe”, redefinida segundo “um modelo ocidental ilusório”, pela qual arriscam a saúde, afirmou a fundadora de uma organização que alerta para esta prática perigosa.
Catherine Tetteh fundou a Melanin Foundation, sediada na Suíça, há três décadas, com o propósito de combater a difusão do uso dos cremes branqueadores de pele, após assistir aos efeitos nefastos desta utilização em familiares.
Apesar de reconhecer que é impossível avançar com rigor o número de pessoas que recorrem a estes cremes – alguns dos quais com substâncias ilegais, como a hidroquinona, vendidos ilegalmente no centro de Lisboa - a cosmetologista e especialista em saúde pública avança com uma prevalência entre 25 a 75%, dependendo da região do mundo, conforme estimada por algumas publicações científicas.
Em declarações à agência Lusa, por escrito, Tetteh afirmou que este é um problema sobre o qual as autoridades de saúde públicas ocidentais “estão cientes”.
“Em alguns países, o serviço aduaneiro organiza apreensões de cremes de aclaramento da pele”, disse. Paradoxalmente, acrescentou, “os maiores fabricantes de produtos despigmentantes encontram-se na Europa”.
Segundo Catherine Tetteh, é longa a lista de riscos para a saúde que os utilizadores de cremes branqueadores enfrentam: Mutação genética do feto, baixo peso dos recém-nascidos, infeções neonatais, aborto, cancro da pele, cancro do fígado, danos no sistema nervoso central, falha renal, problemas cardíacos e ósseos, cegueira, esgotamento nervoso, diabetes, hipertensão, obesidade, dependência.
Questionada sobre os fins que, para estas utilizadoras, justificam os meios, a presidente da Melanin Foundation referiu que estas mulheres – embora também existam consumidores masculinos – “querem mudar a sua própria aparência”.
“Elas procuram agradar e refletir uma nova imagem de si próprias e uma representação ideal da beleza que não existe”, referiu.
E acrescentou: “A globalização, o poder dos meios de comunicação e da publicidade criam a imagem de um padrão de beleza universal, de uma beleza feminina que foi redefinida de acordo com um modelo ocidental ilusório”.
Se, por um lado, a comunicação social e as campanhas de sensibilização podem ajudar a informar melhor as populações sobre os perigos da despigmentação voluntária da pele, a par da educação dos jovens para “uma melhor representação de todos os tons de pele”, por outro, e “infelizmente, o avanço das tecnologias estéticas democratizou ainda mais a prática”.
“As mulheres já não aplicam apenas cremes, mas recorrem agora a comprimidos, injeções intravenosas e lasers”, lamentou.
Ao longo da pesquisa que realiza há décadas para ajudar estas mulheres a deixarem de recorrer a aclaradores da pele, Catherine Tetteh descobriu a extensão do problema e “especialmente o fenómeno da dependência”, o qual “torna difícil estas mulheres deixarem de utilizar os produtos”.
Do trabalho da organização que criou destaca-se a participação em conferências e ‘workshops’ nos “cinco continentes”, desde 2000.
“Sensibilizamos, informamos e estamos convencidos de que seremos capazes de mudar as coisas, dando um passo de cada vez”, referiu.
Dermatologista alerta para riscos de substâncias proibidas em cosméticos branqueadores
O uso de branqueadores de pele com substâncias como a hidroquinona, proibida nos cosméticos, aumenta o risco de cancro e, por essa razão, apenas os medicamentos a podem conter, refere uma responsável da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia.
Leonor Girão, responsável pelo grupo português de dermatologia cosmética da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia (SPDV), disse à agência Lusa que desconhecia o uso de cremes branqueadores como cosméticos, de uma forma indiscriminada, e sem acompanhamento médico.
Em Lisboa, várias lojas que vendem produtos de todo o tipo – de vestuário a legumes, passando pelo artesanato e bebidas alcoólicas – disponibilizam também branqueadores de pele, nomeadamente cremes, mas também sabonetes e tónicos.
As consumidoras procuram essencialmente obter uma imagem parecida com a que ilustra as embalagens destes cremes, de mulheres negras, mas com uma cor clara e brilhante. O seu objetivo é assemelharem-se a estrelas como Rihanna ou Beyoncé, que recorreram a estes produtos.
Apesar de alguns desses cremes não apresentarem na sua composição produtos perigosos, alguns apresentam hidroquinona, proibida nos cosméticos, precisamente devido ao seu poder tóxico.
Leonor Girão explicou que esta substância, usada em determinada quantidade, em produtos prescritos por médicos e vendidos em farmácias, tem o efeito de minimizar as marcas do acne ou manchas localizadas.
“Precisamente por ser uma substância eficaz, passou a ser utilizado para branquear a pele, por africanas e asiáticas, que a começaram a utilizar em grande quantidade, em grande área de superfície cutânea”, disse.
Mas o seu uso indiscriminado aumenta o risco de cancro ao nível da pele, alertou, considerando “perigosa” a utilização de cremes com este tipo de produtos sem acompanhamento médico.
Em Portugal, tal como em outros países europeus, a hidroquinona está proibida em produtos cosméticos, conforme definido no Regulamento Cosmético Europeu.
Trata-se de uma substância que despigmenta a pele através da diminuição da formação de melanina, responsável pela pigmentação da pele.
Leonor Girão disse ainda que a utilização indevida de substâncias deste tipo pode ter outras consequências, além do seu potencial cancerígeno, como irritação, despigmentação em confete (bolinhas) ou o aparecimento de mais pigmentação.
“Por esta razão, tem de ser utilizada sob orientação médica”, acrescentou.
A dermatologista considerou que as autoridades têm feito “um bom trabalho” no controlo da qualidade dos cosméticos, transferindo, inclusive, para a categoria de medicamento os que, pela sua composição, acarretam riscos e pressupõem vigilância clínica.
“Por alguma razão os medicamentos têm uma legislação, são vendidos em farmácias e controlados”, referiu.
É possível e fácil comprar em Lisboa branqueadores de pele com riscos para a saúde
Cremes branqueadores de pele, alguns com substâncias proibidas na cosmetologia, estão a ser vendidos em Lisboa, expondo a riscos graves de saúde consumidoras que procuram com este aclaramento mais hipóteses a nível laboral e social.
Longe de quererem alcançar a cor da pele caucasiana, as mulheres de pele escura (negras e indianas, principalmente) que recorrem a estes aclaradores pretendem, com a sua aplicação, obter um tipo de aparência mais adequada aos gostos europeus e, dessa forma, alcançar empregos que, acreditam, lhes estariam vedados, segundo um estudo realizado por duas antropólogas.
Em Lisboa, o levantamento dos locais de venda destes produtos, a sua catalogação e entrevistas a consumidoras e profissionais de saúde foi feito por duas antropólogas, Chiara Pussetti e Isabel Pires, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) de Lisboa, no âmbito do projeto Excel, que analisa a busca pela excelência corporal, em vários aspetos.
As antropólogas revelaram à Lusa que encontraram no centro da capital – Martim Moniz, Av. Almirante Reis, Intendente, Rua dos Anjos -, onde vivem e trabalham muitos cidadãos de países africanos e asiáticos, produtos branqueadores de pele vendidos de forma ilegal, a começar pela falta de informações em português.
Alguns desses cremes, na sua maioria indicados para mulheres, mas também em versão masculina, estão proibidos pela legislação europeia de regulamentação de cosméticos, precisamente devido às altas concentrações de substâncias tóxicas.
Questionada pela Lusa sobre estes casos, a autoridade que regula o setor do medicamento disse ter conhecimento de que “estes produtos existem no mercado europeu”.
“Em colaboração com a Autoridade Tributária e Aduaneira, para cosméticos importados, estes produtos ocasionalmente são detetados em encomendas postais e na bagagem pessoal”, prossegue o Infarmed.
Entre os vários produtos, que a Lusa facilmente encontrou em prateleiras de estabelecimentos comerciais nessa zona da capital, constam alguns que têm na sua composição – ou pelo menos isso publicitam - a hidroquinona, proibida nos produtos cosméticos e de higiene corporal para aplicação na pele devido ao seu potencial efeito cancerígeno.
A hidroquinona bloqueia a ação da enzima tirosinase, que tem participação na formação da melanina, conduzindo a um efeito despigmentante sobre a pele.
“A inclusão de hidroquinona em produtos cosméticos é proibida e a única exceção permitida é a sua inclusão em produtos de coloração capilar e para unhas artificiais. A sua presença em cremes não é permitida desde o ano 2000”, referiu o Infarmed.
É provável que as mulheres que utilizam estes cremes desconheçam os riscos que correm, mas facilmente se apercebem que têm de o aplicar de uma forma contínua para que a pele mantenha o tom mais claro.
Nos testemunhos reunidos pelas antropólogas, as utilizadoras assumiram que esta alteração estética lhes abriu as portas a empregos onde a mulher negra é bem-vinda, mas desde que seguindo os padrões de beleza promovidos na (antiga potência colonial) Europa e que, de resto, são visíveis nas embalagens destes cremes.
“É preciso descolonizar a estética, conseguir valorizar, na sua forma mais inclusiva, a beleza, independentemente da ótica ocidental, sem que se tenha de reproduzir modelos branqueados, ligados à indústria do cinema, da moda e da música euro-americana”, afirmou Chiara Pussetti.
A académica defende, o quanto antes, uma campanha de informação sobre os riscos de saúde que estas mulheres, e até crianças, correm, contando que uma das entrevistadas aplicava este creme à filha de 4 anos, porque assim esta ficava “mais clarinha e, portanto, mais bonita”.
Isabel Pires avança no mesmo sentido, ressalvando que a investigação não pressupõe, de todo, uma crítica a quem utiliza os cremes, mas antes ao facto de nos dias de hoje ter um aspeto agradável ao olhar branco significar uma vantagem na hora de aceder a direitos básicos, como o emprego.
“Mulheres negras de pele mais clara têm empregos melhores e salários maiores que se traduzem em possibilidades educacionais melhores para si e para as suas famílias, quando comparadas com mulheres cuja pele seja mais escura”, lê-se no artigo das antropólogas.
Uma das testemunhas, moçambicana de 26 anos, afirmou: “Se eu não tivesse mudado um pouco a minha aparência não teria trabalhado em empresas como (nomes de duas perfumarias). Os europeus gostam de mulheres magras, com a pele não tão escura e os cabelos lisos e brilhantes. As negras que não se adaptam aos gostos europeus ficam a fazer hambúrgueres no (restaurante de ‘fast-food’), mas não a servir, mesmo atrás, na cozinha, onde as pessoas não te podem ver”.
Uma das razões para este fácil acesso a produtos com riscos para a saúde é o seu baixo preço e também por se encontrar quase disponível em dezenas de lojas, só nesta região da capital.
A Lusa adquiriu vários cremes branqueadores, confirmando que o seu custo não vai além dos cinco euros por embalagem. Mas os branqueadores também se vendem em tónicos, sabonetes e outras apresentações.
Segundo o Infarmed, sempre que deteta produtos cosméticos com substâncias proibidas no mercado, como a hidroquinona, “as respetivas embalagens são removidas de venda, o operador económico é notificado para retificar e corrigir essa infração, e pode incorrer em processo de contraordenação social, com coimas associadas”.
Vários países africanos, onde o uso destes produtos é relativamente corrente, tentam há anos proibir o seu uso, como o Quénia, o Uganda, Gana, África do Sul e Costa do Marfim.
No continente indiano, esta prática é ainda mais comum e o branqueamento de pele é o segmento de beleza que mais cresce todos os anos, gerando milhões de lucro.
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